segunda-feira, 17 de junho de 2019

Infarto




Por Germano Xavier


(baseado em fatos surreais)




Enterrei meu pai hoje.

Difícil. Di-fí-cil.

Não estava preparada. A pior dor do mundo. Nem sei descrever.

Peguei o primeiro voo. Ele sempre me esperava no aeroporto. Acenava de longe quando me via. Dessa vez foi diferente. Meu irmão estava no lugar dele. Desolados, abraçamo-nos. Chorei.

A cidade estava diferente. Não, a bem dizer não era a cidade, mas alguma coisa estava fora do lugar.

A casa estava cheia. Muitas pessoas... De várias cidades, o bairro inteiro foi... Ele era muito querido por aqui... Minha mãe, meu Deus!, minha mãe não tinha mais lágrimas. Difícil demais tudo aquilo. O caixão no centro da sala. Pessoas conhecidas e pessoas desconhecidas. Uma confusão dentro de mim.
 
Queria dar uma mesa de sinuca para ele. Pesquisei para o próximo Dia dos Pais. Sei que iria adorar. Cheguei até a escolher o modelo, tecido verde no campo, um de ficha com tacos de madeira nobre. Pena que não foi antes.

Da família, era ele quem mais se parecia comigo. Tínhamos as mesmas ideias. Sobre Deus, sobre igreja, sobre liberdade. “Viva e deixe viver”, ele dizia. Impulsivo e teimoso. Era um homem bom. Fiz de tudo para poupá-lo de meu sofrimento. Fiz de tudo. Mas tudo nem sempre significa o necessário.

Na sexta-feira de manhã ele saiu para buscar um amigo no hospital, no centro. Deve ter passado mal enquanto dirigia. Quando o amigo chegou, ele já estava morto dentro do carro. Foi o que disseram. Fulminante. Ele era assim. Nunca dizia Não. Ajudava todos os vizinhos. O vizinho estava tratando um câncer. Ele era o primeiro a ajudar.

A casa ainda está cheia... Eu não quis olhar no caixão... Não vi o rosto dele... Preferi guardar a memória dele vivo... Eu estou. Estou viva. A pior sensação do mundo é enterrar a vida...

Todos estamos abalados. Isso vai mudar a vida de todos nós. Não sei como será ainda. Estou atordoada.

Comprei a passagem de volta.

Mas como vou voltar?

Obrigada.


sábado, 15 de junho de 2019

A menina congelada



Para o pai da menina da penumbra, in memoriam.
E para a menina da penumbra.



notícia ruim: valsa da Morte.


a menina congelada está só
no mundo e o mundo todo agora espoca
e até o silêncio
é ponto de partida.

veio a morte-levada
com seus instrumentos de cordas pinçadas
a fazer vibrar a onda eterna das eras.

ela tenta compor uma buliçosa polca,
mas a certeira ausência aterra o esforço:
a menina congelada é parte da sinfonia.

pedirão clemência!
estéril, tocará o impulso
e a vocação para a dor.

correrá ao piano,
recordará suas lutas
e sua sorte será o próprio gelo,
já criado e insuperável, do seu coração.

a menina congelada sobreviverá,
assim, ao frio e vadio baile das horas.



domingo, 2 de junho de 2019

Rap do 30 de Maio



Por Muhatu



um dia diferente, luta de frente pela capacitação
há um menino adulto que lê pesadelos no jornal
a morte do ensino em tempo integral
e o espanto boquiaberto da nação

um dia urgente refuta restrição de liberdade
estudantes/professores desamarrem pensamentos!
sois brilhantes como o sol e livres como o vento
ser cidadão é coração maior de idade

jornada prenhe de mil luzes de mudança
em prol das ciências sociais tão humanas
e fundamentais | a reflexão crítica nos irmana
[o desconcerto assusta mas a coerência avança]

jornada de verbo sem verbas – só esperança
não sou panfleto doutrinário sou luta pacífica
minha luta é ética, minha sementeira científica
dizemos sempre e ainda: quem espera sempre alcança

um dia de apaziguamento e chamada à razão
cremos em hospitais e universidades públicas
nossas exigências são pedidos [nunca súplicas]
sonhadas com cabeça, alma e antecipação

será jornada de batalha ideológica
que tempo é este retrátil e inseguro?
educar não é gastar, é construir o futuro
negativismo é destruição | aposta ilógica

no dia trinta a palavra será tinta e voz
pela merenda, pelo transporte escolar
educação inclusiva temos que assegurar
o tempo urge como um rio para a sua foz