sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Assim escreve André Balaio | ou Olhos sobre "Quebranto"




Por Germano Xavier


Tenho feito um exercício bastante peculiar nos últimos anos e isso não é novidade para ninguém que acompanha este O Equador das Coisas há algum tempo: ler ao máximo a nova literatura pernambucana para, primeiramente, entender um pouco mais acerca deste espaço territorial nordestino que, antes de ser o estado natal do meu velho pai, é hoje o lugar onde gasto a minha vida desde o fim de 2013, quando vim morar em Caruaru, cidade do interior situada à região meridional do setor agreste. E, em sendo assim - não tinha como ser diferente -, o Prêmio Pernambuco de Literatura (agora Prêmio Hermilo Borba Filho), assim como as publicações da Cepe Editora, sempre foram dois grandes norteadores para esta minha atividade, convenhamos, ainda recente de pouco mais de 5 anos. 

Todavia, alguns autores locais, terminaram por fincar raízes em editoras além-Pernambuco, como é o caso de André Balaio, autor de QUEBRANTO (Patuá, 2018), seu premiado livro inaugural, eleito Melhor obra de ficção escrita em 2018 pela Academia Pernambucana de Letras - APL.  Para minha grata surpresa, QUEBRANTO se mostrou um livro bastante convincente dentro de uma seara temática por demais explorada na literatura brasileira e, também, universal, e que possui grandes representantes espalhados pelos séculos e séculos da tradição literária. Mistério, quase-terror, segredos sombrios, desvendamentos, ilusões, revelações e manobras que beiram ou beijam o surreal-real são alguns dos líquidos preciosos que dão vida ao corpo de um dado corpúsculo engendrado nas teorias do fantástico e do noir impresso no papel pelas mãos treinadas, lúcidas e operantes de André Balaio. 

QUEBRANTO é um livro simples (eu disse simples, não simplório), bom de ser lido, que conta com um forte apego e um amplo prestígio ao rápido endereçamento do leitor ao clímax das narrativas expostas, sem deixar de causar um alumbramento necessário ao interlocutor ao longo da leitura transcorrida, como se feito a partir da melhor receita para brumas e névoas: a desfaçatez. O "nocaute" cortazariano é dado por Balaio aos flancos, de leve, quando menos se espera dele um soco ou um chute, com golpes lentos porém contundentes, nunca de frente, escancarados feito jebs desfloradores e nada criativos. O significado é o que parece importar ao fim, ou o rumo a uma dada cosmovisão, mas o caminho, justamente a graça de todos os percursos, é a ordem máxima dos passos dados pelas personagens, verossímeis de tão reais - ou vice-versa.

A respectiva obra é um alerta para nossos sonos diários, nossas malemolências vitais, nossos desacreditamentos. Humanos que somos, introjetados num sistema de vida de trejeitos nefastos e soturnos, maquinados dentro de afazeres sem sentido pleno, perdemos a capacidade de ver além, como se fôssemos acometidos por uma catarata eterna que nos oprime e nos cega dia após dia, noite depois de noite. Destarte, deixamos de ver a Beleza, o Real, o Mítico, o Filosófico, o Rude, a Bondade, o Desperdício, a natureza de todas as coisas e de todos os sentimentos... aí vem e se alteia e se altera Balaio e nos devolve o fantasmagórico de nossas jornadas que um dia chegarão ao fim - mesmo tudo permanecendo -, o que está pelas nossas costas, um tempo de olhos bem abertos, em brasa sempre acesa. 

André Balaio, nos 13 contos do livro, tende sempre a tirar a pelagem das inúmeras civilizações alheias a nós-todos, que vagam pela vida e pela morte e por todas as outras dimensões possíveis, populações inteiras construídas a partir da mesma matéria do escuro, da noite, do breu total, do que é ainda opaco ou translúcido e de tudo aquilo que não enxergamos ou que certo dia deixamos de vislumbrar. Sabedor de toda a jogatina e de toda a lida contista, Balaio age feito um alfandegário: bole-bole, separa-separa, escolhe-escolhe e, de quebra, ainda nos desloca desses "mundos-todos" para cenários bem pernambucanos, como sítios, fazendas, usinas... Resultado de tamanha arquitetura? Um livro com virtudes próprias, exato, ativo e leal ao que se propõe. Enfim, mais um belíssimo exemplar desta nova literatura pernambucano-nordestina que está aí a vencer fronteiras outrora tidas como intransponíveis e/ou irredutíveis, apesar de nossa larga tradição (a dos escritores do Nordeste) em derrubar todos os muros que, porventura, teimaram em nos atravancar o caminho.


breve entrevista com o autor



Germano Xavier – “Os homens de imaginação – eles vibram facilmente demais e são de sua natureza tempestuosos”, frase presente em Correspondência, de Eça de Queiroz, datado de 1885. Você concorda com tal afirmação? Quem é e como se porta o escritor André Balaio perante as possibilidades de vida e de morte ante o caos criativo?

André Balaio – A vibração existe, é necessária, vem do pathos criativo e do atrito com a vida. O caos surge diante da incerteza e da inevitabilidade da morte. Mas é preciso dar forma. Escrever é uma tentativa de organizar o caos. Extrair dele algo novo e questionador.

Eu, como escritor, busco uma conexão baseada na identificação e no encantamento. Preciso que o leitor sinta o que os meus personagens sentem, que os compreenda, que as histórias dos personagens de alguma forma o atinjam. Uma vez uma pessoa que leu o Quebranto, que aliás um ótimo poeta, me disse que não conseguia tirar um conto da cabeça. Ele não explicou o motivo, mas esta informação se bastou para me deixar contente. Não existe maior recompensa para um escritor do que marcar a lembrança de um leitor.


Germano Xavier – O mesmo Eça de Queiroz, neste mesmo livro supracitado, disse que “um livro de contos é um livro ligeiro de emoções curtas”. O que você pensa sobre esta assertiva, Balaio? E por que o conto? Quais os motivos para esta escolha?

André Balaio – Não acho que as emoções sejam curtas. Elas são condensadas, reprimidas. Precisam ser moldadas num espaço curto. Talvez por isso mesmo sejam tão intensas: estão a ponto de explodir, de fazer a tampa voar.

A opção pelo conto foi justamente essa capacidade de acertar o queixo e levar a nocaute (obrigado, Cortázar). O arrebatamento. Também influiu o fato de serem histórias surgidas quase na mesma época e que, apesar de tão diferentes entre si, tinham a mesma ideia do sobrenatural e do fantástico como ruptura diante da normalidade.


Germano Xavier – Lendo o seu QUEBRANTO, remontei-me a uma tradição muito peculiar a nós, amantes da boa literatura, produzida por nomes como J. J. Veiga, Horacio Quiroga, Isabel Allende, Guy de Maupassant, H. P. Lovecraft e, claro, o grande mestre Edgar Allan Poe. De onde veio a matéria-prima do seu primeiro livro de contos, Balaio? Quais as tuas fontes primárias de inspiração? E de que forma você se deixa influenciar por elas?

André Balaio – “Os Cavalinhos de Platipanto” de J. J. Veiga é uma fonte à qual sempre retorno. O mesmo acontece com vários contos e poemas de Poe. Maupassant e Lovecraft são referências importantes da minha formação. Há também Shakespeare, com a erupção emocional dos personagens. Na busca de uma linguagem precisa e cortante, Graciliano Ramos precisa ser lembrado. Cortázar vem com a sensação de estranhamento frente ao insólito, da quebra da realidade em pedaços que não mais se colam. “A Casa Tomada”, aliás, é um dos contos estrangeiros que mais gosto. Existem muitos outros autores como Raimundo Carrero, Herman Melville, Juan Rulfo, Guimarães Rosa (“A terceira margem do rio” é meu conto brasileiro preferido), Lygia Fagundes Telles (o “Seminário dos ratos” é grande lembrança) e Hilda Hilst. Todos também estão por ali, espreitando de alguma forma.

Talvez seja um enorme lugar comum dizer que a matéria-prima da minha escrita esteja nos livros que li, nos filmes e peças que assisti e nas pessoas com quem convivi, mas é isso mesmo, são essas as principais fontes. Hamlet inspirou o conto “O resto é silêncio”. Paulo Honório de “São Bernardo”, personagem que muito me assombra, foi referência para um personagem de “Eu sou o filho do homem”. Uma história maravilhosa da família da minha esposa foi a base para “O lado de lá”, e quando a ouvi pela primeira vez parece que ela pedia para ser escrita. Por fim e não menos importante estão minhas relações familiares e meus demônios que de um jeito ou de outro se entranham no que escrevo.


Germano Xavier – Albert Camus disse, certa vez: “Não desejo mais ser feliz, e sim estar mais consciente”. Entendo que a literatura tem esse papel, também, o de despertar consciências. Você acredita nisso, Balaio? Se sim, que tipo de consciência o seu livro QUEBRANTO ou a literatura em si pode despertar nos leitores?

André Balaio – Escrevo para tocar algum nervo do leitor. A emoção, se não é superficial, pode levá-lo a uma pequena revolução interna. Esta revolução deve despertar a consciência. Não acredito que a arte tenha outro papel que não seja o impacto estético. Este impacto pode levar à reflexão e à consciência.

Apesar dos meus contos serem narrativas fantásticas o que mais procurei foi a dimensão humana dos personagens. As inadequações dos personagens, diante das vidas que levam e da morte, geram a tensão. E é no momento no momento da ruptura que surge o elemento fantástico. São quase sempre pessoas comuns colocadas em situações limite. Situações geralmente provocadas por quem está próximo: o pai, a mãe, o filho. Meus fantasmas não são distantes e misteriosos, são próximos, muito próximos, e estão sempre à espreita.


Germano Xavier – Fale-nos um pouco mais sobre o processo de elaboração, de escrita e de publicação deste teu QUEBRANTO. Como você enxerga o cenário atual da literatura brasileira? Em quê apostar daqui para frente?

André Balaio – Quebranto foi escrito durante aproximadamente três anos num processo de aprendizagem e de amadurecimento como autor. Foi quando passei a ver a escrita de uma forma mais intensa e várias questões surgiram. Os contos não são fotografias antigas que encontrei numa gaveta e colei no álbum. Foram pensados com uma ideia de unidade. Quase todos têm o conceito que o téorico Tzvetan Todorov apresenta em seu “Introdução à literatura fantástica”: o fantástico baseia-se na dúvida. Aquilo de fato está acontecendo ou é fruto da perturbação do personagem? Coloquei essa questão em pessoas que podemos encontrar na rua, no banco, num consultório médico. Meus personagens são agricultores, advogados, mendigos, jornalistas, fazendeiros, estudantes, office boys, comerciantes, usineiros. Todos se encontram em situações limite. E é aí que o fantástico se apresenta.

Com relação ao cenário atual da Literatura no Brasil, vivemos um momento interessante de mudança. Há muitos autores publicando por editoras independentes ótimos livros que não se encontram nas livrarias. Mas há uma falta absurda de leitores, principalmente os de boa ficção. Ainda lembro de quando O Nome da Rosa e Memórias de Adriano eram bestsellers e falávamos deles como hoje falamos de uma série de sucesso da Netflix. O grande desafio é formar novos leitores e chegar aos que existem. Para isso, é preciso colocar o livro debaixo do braço e partir para o corpo a corpo.




Obs: o livro pode ser encontrado no site da Editora Patuá.


* Imagens: https://zinebrasil.wordpress.com/2018/03/09/andre-balaio-lanca-quebranto-na-casa-cultural-villa-ritinha-em-recife/

VÍRUS, de Monja Coen


 

Impressões sobre o livro VÍRUS, escrito por Monja Coen. #vírus #monjacoen #pandemia #oequadordascoisas

domingo, 23 de outubro de 2022

Sobre os livros que não lemos



Por Germano Xavier


Tenho muitos livros. Li muitos livros em bibliotecas espalhadas pelas cidades onde residi ou passei alguma temporada (quase nenhum no interior de livrarias - não consigo, mas acho bonito quem realiza esta prática). Li muitos livros que nunca tive em minha casa, em minha biblioteca particular. Do mesmo modo, li muitos dos livros que possuo. Houve uma época em que meu quarto quase não me cabia mais, de tantos livros que eu guardava dentro dele. Muitos outros livros que li, doei e/ou sigo doando. Outros que nem li, também resolvi passar adiante, por um ou outro motivo. Apesar de entender que os nossos livros ajudam a contar a nossa própria história, acredito hoje ser repugnante a ideia de privar outras pessoas do maravilhoso contato com os livros, ainda mais em se tratando de livros que, talvez, você nem se interesse mais em ler e que certamente ficariam em suas estantes por longos anos em processo de hibernação, inativos, como forças mortas.

Quem gosta de ler sabe que um dos grandes dilemas da vida de um leitor é saber-se incapaz de ler todos os livros supostamente imprescindíveis apenas numa vida, ainda mais diante dessa aligeirada relação vital contemporânea à qual estamos todos imersos, quase sempre baseada em trabalho, afazeres diversos, culpas, mea-culpas, tempo, dinheiro, sobrevivência e curtos espaços de nós-para-dentro-de-nós-mesmos. Em assim sendo, a gestão do conhecimento é uma habilidade cada vez mais importante em nosso dia-a-dia de seres-amantes do objeto livro, até porque bolinar com elementos não-concretos, que estão muitas vezes em formato de pensamento ou de imagem-representação, requer bastante cuidado e atenção.

O professor de literatura e psicanalista francês Pierre Bayard, em seu livro COMO FALAR DE LIVROS QUE NÃO LEMOS (OBJETIVA, 2007), retrata um pouco das experiências positivas de não-leitura ao longo da história do pensamento e da literatura, suas concepções, suas validades e seus respectivos entendimentos de uso na direção contrária a de uma sociedade que ainda sacraliza a prática da leitura, que tende a gerar uma obrigação por se ler tudo e de tudo, desmistificando um pouco a ideia de que é realmente necessário ter lido um determinado livro para se poder falar dele com o mínimo de destreza e efetividade. Para isso, Bayard enumera algumas maneiras de não-ler que temos disponíveis, traçando alguns paralelos acerca dos livros que não conhecemos, os livros que folheamos, os livros de que ouvimos falar e os livros que esquecemos, tudo envolto em exemplos vividos por grandes escritores de todos os tempos.

Bayard ainda recomenda algumas dicas ou estratégias para que o bom leitor, ou melhor, o bom não-leitor, consiga escapar de algumas situações de apuros quando interrogado acerca de algum livro de que não tenha feito a devida leitura até então. O professor declara que fazer confrontar nossas “bibliotecas interiores” em momentos desta natureza, conflitantes ao extremo, é uma boa técnica para se sair por cima nos debates ou para se escapar deles, bem como aliar os poderes dos nossos “livros interiores” e dos “livros coletivos” que circulam por nós e pelo mundo no intuito de se construir novos focos de referenciação discursiva em instantes. Portanto, não ter vergonha, impor as próprias ideias, inventar os livros e até falar de si tornam-se configurações de saber, de acordo com Bayard, completamente úteis para o fazer crítico ligado às artes em geral, e em especial ao trato da literatura em seus círculos de fogo, de discussão e de atuação.


domingo, 16 de outubro de 2022

SINCORÁ - SER PEDALANTE NA CHAPADA DIAMANTINA, de Evandro Torezan


 

Impressões sobre o livro SINCORÁ - SER PEDALANTE NA CHAPADA DIAMANTINA, de Evandro Torezan. Ainda neste vídeo, mais uma participação preciosa de Angélica Carem.

#sincorá #evandrotorezan #ciclismodeaventura #oequadordascoisas

Resistir pela água: por uma literatura viva



Por Germano Xavier


O homem é um ser literário, acreditem ou não. A literatura, por sua vez, é como a água do tempo, da vida. A água que alimenta a alma humana, e também o corpo humano, que nos preenche de cor, dor, força, medo e esperança. A água, no interior da literatura, pode ser também o território, o habitat, o próprio espaço dos fenômenos que nos constroem. “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (CANDIDO, 2011, p.182). A literatura, pois, pode representar o caos. O caos pode significar tudo. E a água, como parte integrante do todo do imaginário literário, é este deserto das coisas e também o oásis dos movimentos. A literatura, enfim, pode esboçar a paz. A literatura é o próprio mundo. A literatura é, enfim, o homem. O verso. O inverso. O reverso. De tudo. De todos.

A literatura é, antes de tudo, linguagem munida de significado, como requer Pound (2006). E tudo elevado à décima potência. Sem a presença da linguagem, nada pode funcionar com plenitude, o ser humano total não é construído muito menos reconstruído, o mundo não alcança seus refinamentos racionais de existência. Sem linguagem e sem literatura, a renovação da vida não é garantida. A água, por sua vez, é também uma linguagem. Linguagem dos que ribeiram os rios da vida e da morte, colo dos amargores e fonte das saciedades mais intensas. Literatura é, também, imagem, repertório de imagens.

No livro de Luís Alberto Brandão, intitulado Chuva de Letras, e que é, juntamente com o livro Cartas do São Francisco, de Nilma Gonçalves Lacerda, matéria central do presente texto, a imagem é explorada com demasiada intensidade, tanto é que a chuva de letras na tela da televisão, que acompanha todo o desenrolar da trama e que marcam as ações e os pensamentos do protagonista, provoca fortemente o imaginário do personagem, criando inúmeras possibilidades de ideias e suposições plausíveis, fato que evidencia o poder que a imagem televisiva exerce na capacidade criadora das crianças e dos adolescentes.

Há momentos, no livro Chuva de Letras, em que o receio de interagir com algum fantasma preocupa o personagem, de modo que tais imagens interferem no seu cotidiano, e ele passa a refletir sobre o que vê, tenta interpretar e procura compreender o significado de tudo que é retratado na chuva de letras reverberada na imagem televisiva propriamente dita. É possível perceber que, após essa preocupação inicial, ele se encanta com o que as imagens provocam no seu imaginário e passa a viver melhor, mais feliz, isso porque, como afirma Fittipaldi (2004, p. 103), “toda imagem tem alguma história para contar. Essa é a natureza narrativa da imagem. Suas figurações e até mesmo formas abstratas abrem espaço para o pensamento elaborar, fabular e fantasiar”.

O mero fato de o protagonista se abrir ao novo o faz se sentir melhor. Sendo assim, percebe-se que tudo que o personagem contempla gera um oceano de significados, possibilitando novas maneiras de explorar a realidade e capacidade para perceber o mundo ao seu redor, a partir da fantasia e do imaginário da chuva (água) a percepção se amplia e se consolidada a construção de novos saberes. Em retorno ao inventário temático que abriu este texto, Candido (2011, p.176) retoma o conceito de literatura e o traduz relacionando-o a “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura”. Em consonância com este refletir, há suspeitas naturais de que um mundo sem produção de significados em cadeia seria um cabal desastre, do mesmo modo que um homem que vive sem ter o devido contato com a literatura, ou com os textos de natureza literária, tornar-se-ia um impostor corpo disforme, pálido em termos de representatividade e de expressividade.

Não há homem sem água. Não há humanidade sem literatura. A água que é derramada em dias de chuva é o alento para o sertanejo, o fator de judiação para o favelado da grande cidade. A água esmaga o coração sofredor, assim como retira o amargo das secas. O povo é a água da literatura. A maior história de todos os mundos e tempos. “Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação” (CANDIDO, 2011, p.176). A literatura, pois, assim como a água, “é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente” (CANDIDO, 2011, p.177).

A humanização pelo fator literatura, para Candido (2011), deve ser entendida como todo processo que incute no ser humano rotas de reflexão, aquisição de saber, desenvolvimento do senso de alteridade, refinamento dos sentimentos e habilidade para enfrentamento das problemáticas do viver. Mas, por que a literatura seria tão importante para o homem? Qual o seu segredo? A literatura seria mesmo uma espécie de água, de líquido vital para a existência? No livro Cartas do São Francisco, escrito por Nilma Gonçalves Lacerda, a água figura no livro como o mote-mor da trama. A autora, fazendo um paralelo com a famosa obra do poeta alemão Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, faz arvorar algumas unidades de cartas expressas direcionadas a um aspirante a escritor de histórias infantis e juvenis. Com sede por transmitir saberes, a autora faz um pequeno, porém apurado, apanhado do fazer literário relacionado à literatura infantil e juvenil, elencando informações tanto precisas quanto preciosas sobre tal atividade.

A literatura tem desses movimentos particulares. A água já foi território para várias importantes obras universais, desde as epopeias homéricas até Moby Dick, de Herman Melville, passando por Joseph Conrad, João Guimarães Rosa e tantos outros. Em Cartas do São Francisco, o Velho Chico é a matéria que gera a fluidez do conhecimento compartilhado, tal qual um espelho d’água que reproduz as faces de todo um organismo vivo, neste caso a literatura dita infantil e juvenil. Ao mesmo tempo em que a desloca do comum convívio frente a outras disciplinas relacionadas ao saber humano, como já citado anteriormente, Barthes (2001) faz da literatura, aqui em todas as suas acepções, uma caixa de guardados, um baú capaz de zelar atemporalmente por incomensuráveis saberes. Este, para ele, é justamente o aspecto que faz da literatura um fenômeno exclusivo quando comparado às demais áreas do saber. Para o referido autor, a literatura é a própria realidade, bastião da vida em si, o que a impulsiona a estar continuamente em vantagem perante as outras formas de conhecimento.

“Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles” (CANDIDO, 2011, p. 177). Para a literatura, um dos principais ingredientes a ser colocado em análise quando entrada, ela, em julgamentos por sua real e definida relevância é, de longe, o potencial conjunto de ferramentas de que possui para que o irreal seja desbastado, volatilizado e até expulso do que é caracterizado como sendo propriamente humano. A literatura, portanto, ao ser o real ou parte do real, ou até mesmo a força motora e gestora de tudo que é real, termina por ser o local onde tudo se alimenta do todo, em prol do todo e semelhante ao todo.

Tendo como ponto de apoio a citação acima, há de se considerar a inestimável importância da literatura para que seja fomentada, no seio das sociedades, uma espécie de cultura letrada sobre a qual a palavra é sempre apresentada nos centros das significações e das virtudes mundanas. Por ser uma expressão artística milenar, a literatura atravessou várias fases de contemplação reflexivo-existencial e hoje é um território de proporções inestimáveis onde bailam os ventos do fator resistência. E um dos seus efeitos cruciais é a linguagem, com suas mil e uma potencialidades. Língua e literatura, portanto, não sobrevivem separadas.

A Literatura, por sua vez, acaba por refletir no conjunto de suas verdades e de sua natureza universal toda a plasticidade de expressão que se vincula à linguagem. Também utilizada como ferramenta de comunicação, a literatura, embora circunscrita num contexto histórico mais recente que o da língua em si, consegue manter suas interconexões comunicativas demasiado objetivas e sem maiores afetações. Como é de se suspeitar, sem grande esforço, uma sociedade sem a presença da arte literária certamente exprimir-se-á com menor correção, nitidez e criticidade. A palavra, escrita ou lida, decerto desfruta de um poder único, largo, fator que não a limita, já que não sendo simples figurante, beira a fomentação do que é real, isto é, a natureza existencial acerca do que é realidade.

A literatura não está parada, assim como a água de um córrego não é um corpo-objeto que possui uma forma única. Pelo contrário, ela está constantemente em trânsito, a passear por várias paragens do conhecimento humano e a pegar carona em diversos veículos de mídia num efeito dinâmico que surpreende até os mais céticos estudiosos do ramo. Em uma sociedade acostumada a reprimir seus viventes por conta de inúmeros fatores geradores de desigualdade, e que, em pleno século XXI, ainda teima em conviver com máscaras flutuantes de segregação social, de intimidação e de terror, a literatura passa a se cobrar mais, como a exigir-se de si mesma em direção ao posto ocupado pelo outro, o leitor, baseando-se para isso num complexo argumento de alteridade, fomentadora de identidades e valores impagáveis.



REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, s/d.

BRANDÃO, Luis Alberto. Chuva de letras. São Paulo: Scipione, 2008.

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

COSSON, Rildo. Círculos de leitura e letramento literário. São Paulo: Contexto, 2014.

______________. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2014.

FRANTZ, Maria Helena Zancan. A literatura nas séries iniciais. Petrópolis: Vozes, 2011.

JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

_____________. Por que estudar literatura? São Paulo: Parábola, 2012.

LACERDA, Nilma Gonçalves. Cartas do São Francisco. São Paulo: Global, 2003.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. 6. ed. São Paulo: Ática, 2002.

POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo. Cultrix, 2006.

WALTY, Ivete Lara Camargos. O que é ficção. São Paulo: Brasiliense, 1986.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

TANTOS NÓS, de Mailson Furtado


 

Impressões sobre a peça teatral TANTOS NÓS, do escritor cearense Mailson Furtado. Ainda neste vídeo, mais uma participação preciosa de Angélica Carem.

#tantosnós #mailsonfurtado #teatro #dramaturgia #oequadordascoisas

sábado, 1 de outubro de 2022

Sobre o peso de nossos pássaros mortos



Por Germano Xavier


"A cura não existe."



Quanto custa para uma pessoa ter de conviver com as suas negações de vida, os seus infortúnios, as suas farsas, as suas danças mirabolantes em prol do Nada, suas angústias e destemperanças, suas aflições e suas impossibilidades? É possível sair ileso de uma perda significante? E de duas? E de três? E de infinitas perdas? Até onde se pode ir com tamanho peso nas costas? E que tipo de lacuna se configura na alma de um ser humano quando ele não mais enxerga em si força suficiente para sonhar, ou simplesmente para continuar? Quanto custa para desentalar de dentro de nosso corpo (que vai morrendo) o caroço dos trágicos fins cotidianos que nos afetam sem pena? É possível estancar a dor que dói lá no fundo de nós?

São perguntas ríspidas demais, sabemos. Mas são perguntas muito reais, e necessárias. Reais porque vivas e presentes. Porque elas simplesmente perambulam por aí, no centro da vida de muitos de nós. E é manipulando a narrativa de dores e perdas de uma mulher (sem nome), dos seus oito aos 52 anos de idade, que a escritora paulista Aline Bei se apresenta para a literatura em seu livro de estreia O PESO DO PÁSSARO MORTO (um dos vencedores do Prêmio São Paulo de Literatura 2018) de modo muito sutil e certeiro.

O livro (Editora Nós, 2017) tem 168 páginas de uma prosa bastante diferenciada, recortada incontáveis vezes como fatias de expressão que muito se assemelham à estilística voltada para textos poéticos. Tal estratégia faz com que a leitura flua com uma velocidade deslizante. Ponto positivo também para as marcas de oralidade bem definidas e bastante evidentes como centros de todo o discurso das personagens.

(Cuidado, contém spoilers) Numa análise rápida, a sequência que condensa a jornada da protagonista pode ser explicada da seguinte forma: Logo na infância, perde sua melhor amiga, com quem mantinha uma relação de afeto incomensurável. Aos 17, é estuprada pelo próprio namorado. O pai da criança some de sua vida. O filho não corresponde, a mãe não corresponde, ninguém corresponde. Bete, que ajudou na criação de seu filho desde sempre, é a única que mantém um contato mais verdadeiro com o garoto até então. Bete morre. O filho vai para uma cidade mineira para cursar uma faculdade. Filho e mãe não se entendem. Ela se encanta por um cão durante uma viagem. Leva Vento (nome que deu ao cão) para sua casa. Vento parece entendê-la mais que seu próprio filho. Há acolhimento entre os dois. Fica sabendo que seu filho vai ter um bebê. Torna-se avó. Seu filho vai morar no estrangeiro. Ela regressa para a antiga casa. Memórias são revisitadas. A solidão segue assombrando-a. Vento morre atropelado na frente da velha casa. Triste e desamparada, morre por conta de um forte engasgo (?). Sabedor da morte da mãe, o filho demonstra indiferença. Por conta de negócios, o filho retorna ao Brasil e decide ir ao cemitério onde sua mãe está enterrada. Algo inusitado acontece neste exato instante.

É desta maneira, com um enredo aparentemente muito simples, que Aline Bei esmiúça o interior da alma humana, não só da personagem sem nome, mas a minha e a de quem quer que seja. Interessante mesmo foi perceber que, por diversos momentos, fui transportado para a figura ímpar de Macabéa, de Clarice Lispector, força-mor da obra A HORA DA ESTRELA e, também, de cenho-alma-expressão das dores incuráveis do viver (não me pergunte o porquê disto, mas assim se deu). Destarte, que fique claro que o livro pode pesar uma tonelada nas mãos dos leitores mais desavisados. Assim sendo, bucaneiros e bucaneiras, venham preparados para O PESO DO PÁSSARO MORTO!


um registro ao lado da autora no II Letras em Barro (Caruaru-Pernambuco)


* Primeira imagem: https://livreopiniao.com/2017/09/12/aline-bei-lanca-o-romance-o-peso-do-passaro-morto-em-sao-paulo/