sábado, 29 de fevereiro de 2020

Os meus verdes cabralinos



Por Germano Viana Xavier

"(...)
O coqueiro e a cana lhe ensinam,
sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada."

(João Cabral de Melo Neto, em A Escola das Facas)


Quando atravessei a Chapada Diamantina e me deparei com o Pernambuco do meu pai pela primeira vez, ali ainda em minha infância mais tênue e profunda, senti que aquele chão esbranquiçado e desmentido pelas sortes, de poeira mais fácil que a do solo baiano, impregnaria em mim com muita facilidade e quase nenhuma relutância. E não deu outra. Hoje, já bem crescido em idade e apesar da certidão chapadeira, sinto-me pernambucano em vários detalhes de alma, a começar pelo prazer que desenvolvi em ler a poesia deste “estado-trampolim”, como diria o incomensurável João Cabral de Melo Neto, autor do monumental A ESCOLA DAS FACAS.

Lendo este livro, vi de perto a superação da palavra-imagem em transformação consoante ao que é real. Uma espécie de transposição das águas ficcionais em águas de beber, de viver e, principalmente, em águas de sobreviver. Sobre-ser. Digo por experiência própria que já adentrei os pernambucos por todos ou por quase todos os lados, vez ou outra vindo de Paulo Afonso-BA, outrora descendo pela Paraíba de João Pessoa ou por Campina Grande, e até enfrentando-o de frente pelas rodovias de Alagoas, e aquele mesmo verde-nervoso e balouçante do poeta João Cabral de Melo Neto tão bem traduzido em seus poemas respinga até hoje pelas telas e pelas paisagens do mundo pernambucano-nordestino a todo instante.

Bem verdade, faz-se necessário salientar, um verde já carcomido pela ação do tempo, principalmente em localidades por onde o “progresso” oriundo do funcionamento das grandes usinas de cana-de-açúcar deixou de herança apenas as ruínas de suas construções e o maquinário em ferrugem, como feridas abertas sob o sol. Porém, assim mesmo digo de relance: sou um homem transformado pelas transformações que meus olhos viram, um homem lapidado pela intersecção das caudalosas águas negras diamantinas e a secura latente de um agreste pernambucano aparentemente sempre à beira de um colapso. De um lado, a exuberância divinal das pedras úmidas, do outro o seixo inamovível das artérias agrestinas por onde o Rio Una passou. Una morto, nascituro e natimorto, que quase só existiu em mim sem nem conseguir existir direito.

Em A ESCOLA DAS FACAS, de lírica extremamente cabralina, aceitei-me mais pelo que realmente sou ou pelo que me tornei ao longo da vida e de minhas caminhadas, quase sempre solitárias. Distanciei-me da surrealidade com a qual me afogo em alguns dias de nuvem. E vi o quanto isso foi bom, o quanto isso é bom. Livros assim são como pontes, fontes inquestionáveis de aprendizado e de des-razão. E até mesmo quando Cabral passeia seus versos verdes nada-verdes pela área metropolitana do Recife ou até pela própria capital, locais ainda muito incógnitos para mim, conferi em pessoa uma espécie de confiança nos passos já dados.

Bahia e Pernambuco me inventaram, e eu inventei estes lugares. Por inventá-los, criei estradas e abri picadas no verde dos coqueirais e das canas e também na cor seca de suas paragens. Fui menino ali e acolá, ancorei banguês nos ombros dos dois orvalhos e bebi da melhor garapa dos engenhos múltiplos. Tive e tenho este privilégio. Nasci com dois sangues e duas almas e vivi em dois estados supremos deste gigante país. Vivi. E vivo. Dois povos, os sertões, os rios, os canaviais, os agrestes, as pedras, as cachoeiras, os diamantes, a sombra dos diamantes... E o que há de belo em todo este movimento alargado por minhas pernas é o fato de que beber dessas duas águas me fizeram suportar com serenidade as impostoras belezas que porventura outros mundos emprestaram-me aos olhos.

João Cabral de Melo Neto completaria 100 anos se vivo fosse no dia 09 de janeiro de 2020. Hoje, com o início desta coluna sobre livros, literaturas e afins, um Sergipe aclarado pelo sol da belíssima Aracaju me abre portas para minhas visagens em formato-palavra. Estou implicado em meu dizer crítico-analítico, pois sei que várias são as tradições literárias e encarnados são os badalares do Tempo. Quero que meus leitores se apaixonem pela poesia, que os curiosos se intrometam e que algumas fomes humanas sejam saciadas. Num país que parece regressar às mais grotescas escuridões, trazendo à tona censuras e maldades as mais variadas para com seu já castigado povo, eu aposto na esperança. Aqui, neste espaço, recolheremos a própria Vida estampada nos livros, para que dela aprendamos a reproduzir somente as mais magníficas formas de se rebelar e de se tolerar.

TEXTO ESCRITO PARA O PORTAL SÓSERGIPE.COM.BR.

Referência

NETO, João Cabral de Melo. A escola das facas. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1982.


Imagem: http://www.bvl.org.br/aniversario-de-joao-cabral-de-melo-neto/

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Eu ensino para os outros




Por Germano Xavier



É comum, confesso. Alguém chega e diz: "Professor, por que você não trabalha em uma faculdade?" Ou assim: "Professor, não sei como o senhor aguenta ser professor desses meninos. O senhor nunca pensou em fazer outra coisa, não?" Vez outra isso assim, desta forma dita, chega até os meus ouvidos. Posso até fazer que entendo o porquê das pessoas me questionarem, mas por dentro eu rio delas e sinto um pouco de tantos sentimentos... Não sabem elas que tenho plena consciência de onde estou e o que quero para mim. Sou feliz. Sou rico. O que é a riqueza para você? É verdade que ser professor "desses meninos" por vezes é deveras cansativo, a gente fica esgotado, sem forças, enfim. Mas eu repito: estou no melhor dos lugares para uma pessoa como eu estar. Ao lado de, comandando um certo grupo de peregrinos, sedentos (ou quase sedentos) pelo desconhecido, pelo que pode vir a ser.

Penso a educação para a Vida, e o ambiente escolar tem muito a ver com isso. Há quem duvide, mas teimo que sim. O componente curricular ao qual me dedico, a Língua Portuguesa/Literatura, é também sinônimo de Cidadania, Fruição e Autoria. É muita responsabilidade, camarada. Muita mesmo. Precisamos dar conta de um bocado de coisas: interdisciplinaridade e concepção de linguagem, texto, leitura do texto escrito, leitura do texto falado, produção de textos escritos e orais, questões envolvendo identidades, ambientes, gêneros e discursos, formulamos planos de trabalho, mexemos em acervos textuais para serem pontos de partida na hora do jogo ensino-aprendizagem, só para citar alguns. E depois ainda temos de pensar num modo de avaliar todo este pessoal e todo um potencial.

Aí a gente começa o ano e pá! Construção. Levantamos paredes. União. Se não tiver união, não vai para lugar algum. É barra! Tem hora que a coisa parece não querer andar, fluir, mas de repente algo acontece. Nem sempre irá acontecer. Mas com esforço acontece. Kabum! Aproximações se dão. Preparamos a meninada para as mais diversas leituras e compreensões de mundo, estudamos textos, focamos em outras referências, escrevemos individual e coletivamente, reescrevemos mais e mais. Efetuamos a reflexão linguística. Tentamos formar leitores literários e, depois de uma longa caminhada, fechamos um ciclo. Eu sei, pode não ser tão lindo assim o caminho. Mas para mim, sempre há de ser.

Entre nós, alunos e professores "desses meninos", deve haver sempre uma vontade de integração. Para que possamos criar. A criação é o que, no fundo de tudo, ainda vale a vida. Para que serve a escola hoje? Para aninhar. Para agrupar. Para que sintamos que ainda temos forças suficientes para alterar o estado "confortável" das coisas, apesar de tantos males que nos rodeiam. Como fazer? Querendo. Nós formamos o cidadão intervindo, sensibilizando, compreendendo, responsabilizando. A escola pode ainda mais. O professor pode ainda mais. O aluno pode ainda mais. Muita coisa ainda pode mais. Eu estou nessa de acreditar e me iludir, e nessa de acreditar de novo, há 15 anos. Eu ensino para os outros. E você?


domingo, 9 de fevereiro de 2020

Tio Jânio

Minha mãe e Tio Jânio.

ou A vida é uma mala Caterpillar que se quebrou na primeira grande viagem



Por Germano Xavier


Para Tio Jânio, in memoriam.



Passei a manhã inteira limpando o quarto de hóspedes do apartamento onde moro, pois no próximo fim de semana uma amiga de velha data de minha esposa virá do Rio de Janeiro para passar um fim de semana conosco aqui no Agreste Meridional de Pernambuco. Arrumei pilhas e pilhas de livros que estavam fora do lugar devido, revistas, velhas apostilas sobre assuntos diversos. A Menina do Sorriso Cacheado preparava um pequeno almoço de domingo. Finalizada a arrumação do quarto, peguei uma mala pequena de rodinhas que possuo para tentar consertá-la. A última viagem que fiz acabou rachando uma de suas laterais plásticas. De quatro dedos era o tamanho da fenda. Fui à geladeira e peguei a cola Super Bonder que deixo lá para quaisquer eventualidades desta natureza. Depois de já uns dez minutos tentando grudar um lado no outro, fui meio que desistindo. Os plásticos não se juntavam. Comecei a pensar em alguma maneira mais grosseira, com arames finos ou outro material que fosse possível retorcer ou grampear as partes. Enfim, não queria perder a mala. Eu estava sentado no sofá da sala de estar quando o meu telefone celular começou a tocar. Era minha mãe, chorando. Nem precisei perguntar, no fundo eu já temia, eu já sabia. Mainha foi de pronto me dizendo, entre soluços: "Jânio morreu, Geu". 

Não falei nada, quase nada. Não há muito o que se dizer numa hora dessas. Deixei minha mãe falar e respirar. A dor é grande. Perder um ente querido é sufocante, sabemos. Depois de um certo tempo, pedi para falar com meu pai. Meu pai ainda não estava muito por dentro do assunto. Desliguei o celular. Comecei a pensar. Passa um redemoinho de lembranças na mente da gente. Imagino o quanto deve ser dolorido perder o pai, o esposo, o filho, o irmão. Para cada parente ou familiar, a dor tem um tom, uma cor diferente, uma intensidade. Mas, como disse antes, não há muito o que se fazer numa hora dessas. Penso que o melhor a se fazer é devolver o corpo ao pó dos tempos da maneira mais digna possível, com as simbologias e as homenagens necessárias. A alma do meu tio, acredito piamente nisto, já foi endereçada para o melhor dos caminhos além-olhos. 

Tio Jânio foi o tio mais próximo que tive, já que ele viveu grande parte de sua vida na mesma cidade em que nasci: Iraquara, Chapada Diamantina. Natural de Canarana, cidade a 68 km de Iraquara, era comum vê-lo pelos corredores lá de casa, principalmente aos sábados após a feira livre da cidade e durante a semana na hora do café da tarde. Ele mesmo se prontificava a tomar as rédeas da cafeteira e pelas bandas da cozinha da casa dos meus pais deixava sempre preparado um delicioso e cheiroso café vespertino. Tio Jânio teve uma vida simples, sem grandes movimentos, casou-se, teve dois filhos e terminou seus últimos dias trabalhando como motorista do município de Iraquara. Com sua destreza ao volante, ajudou muitas pessoas enfermas encaminhando-as com segurança aos hospitais da capital baiana a fim de iniciar seus respectivos tratamentos. 

Num dia como o de hoje, escolho relembrar de momentos alegres que vivi com meu tio. Lembro dele sempre a me fazer perguntas bastante engraçadas e inteligentes. Dizia ele que havia "pegado" as charadas via programas de rádio que costumava ouvir horas adentro pela madrugada. A imagem dele a sintonizar aparelhos de rádio ficará comigo para sempre. Onde houvesse um rádio, lá estava Tio Jânio a tentar sintonizá-lo. O noticiário radiofônico o deixava a par de todos os principais acontecimentos mundanos, e isso bem antes da internet ganhar as casas brasileiras. Tio Jânio era uma espécie de porta-voz de tudo lá em casa. Era chegar por lá e sempre um novo acontecimento vinha à tona. O rádio também o fez acompanhar com enorme entusiamo o seu time de futebol do coração: a Sociedade Esportiva Palmeiras, de São Paulo. Tio Jânio foi a pessoa mais apaixonada pelo esporte bretão que conheci nesta vida. Neste quesito, foi um grande influenciador para toda a família. 

Tio Jânio tinha a alma dos teimosos, dos arredios, dos que faziam por vezes aquilo que lhes dessem na telha, sem pensar muito nas consequências. Talvez, para mim, esta foi a grande mensagem deixada por meu tio em vida: viver intensamente, mesmo quando a vida não parecer boa o suficiente. Bebeu e fumou desde muito novo. Quando eu era pequeno não entendia bem o porquê de tudo isso. Mas agora, nos anos de mais madureza, entendo com mais clareza os prazeres e as fugas buscadas por meu tio. A vida nem sempre é tão simples de se entender. Não podemos fazer nenhuma espécie de julgamento a quem se atira de tal forma a vícios e/ou fetiches. Só ele saberia dizer onde a dor da vida doía mais. A gente se afoga em tantos outros vícios... cada dia mais, cada qual à sua maneira. O certo é que eu sei que meu tio viveu as delícias desses prazeres que matam como um profissional, não como um amador. Isso se traduziu, para mim, como rebeldia e coragem: outro ponto que destaco na personalidade do meu tio. Tio Jânio foi um pequeno grande rebelde destemido e vejo isso hoje como um ponto muito positivo. 

Chega uma hora que a vida desgruda de nós, feito uma mala quebrada durante uma viagem que teima em não juntar mais as suas partes, mesmo usando para isso a cola mais forte do mercado. Chega uma hora que aquela mala reforçada e aparentemente eterna desmancha-se em ilusão e verdade. E pensar que ao comprar a mala e pagar um valor alto por ela em sete prestações, imaginei que ela fosse inquebrantável e que estaria em minha companhia para sempre. Todavia, fui muito ingênuo. Para sempre, nem sempre a vida será. Muito menos uma mala de plástico Caterpillar (CAT) onde no adesivo de sua propaganda um homem imenso aparecia pulando em cima de seu arcabouço para demonstrar toda a resistência de sua engenharia voltada para viagens. 


Aos parentes e familiares, meus sentimentos.



Siga em paz, "Canarana"!


Meu pai e Tio Jânio.

Vovó Isaura e Tio Jânio.




* Imagem: Acervo Germano Xavier