Por Germano Xavier
Este texto pretende traçar um pequeno panorama acerca das relações existentes entre o cotexto e o contexto em excertos constituídos por marcas visíveis de oralidade presentes na obra literária ELES ERAM MUITOS CAVALOS, do escritor mineiro Luiz Ruffato – no original, o título do livro aparece grafado em letras minúsculas.
É bastante amplo o panorama atual sobre a percepção histórica do “senso de contexto” em voga a partir e, também, durante o florescimento de diversas esferas do saber humano. É isto o que o estudioso holandês da língua Teun A. van Djik (2012) vai propor aos seus leitores logo na introdução de seu livro intitulado de DISCURSO E CONTEXTO: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA.
A literatura, como campo de produção e sedimentação de discursos – e aqui, a saber, estamos a falar de contextualizações e cotextualizações -, invade, pois, tal discussão e se promove dentro da atmosfera por vezes caótica das ressignificações hodiernas em vista de tudo e de todos, em demandas diversas de ordens também essencialmente plurais.
Parte inconteste dos textos que são produzidos em nossos mais recentes dias e que são rotulados como sendo textos de literatura ou, ainda, textos literários não podem nem deviam ser taxados a uma caracterização literária apenas e simplesmente, fator que pode prejudicar o olhar sobre o referido objeto, impossibilitando abordagens mais nítidas e eficazes.
Textos repletos de intertextos, com apetrechos e inserções multimodais, cujas referências extrapolam o senso comum, são cada vez mais visíveis nas estantes das livrarias e, para muitos pesquisadores, representam um verdadeiro jardim de delícias pela potencialidade de imersão e pelas possibilidades de estudo, que são inesgotáveis.
A obra ELES ERAM MUITOS CAVALOS é dotada de um constructo narrativo repartido, fragmentado em 70 petardo-retalhos textuais, em tributo à cidade de São Paulo, megalópole por vezes inapreensível que acolhe e também expulsa. Quem o lê, logo percebe que se trata de um livro com estrutura singular, diferenciada, organizada num espaço de e para a fomentação de desordens estilístico-semânticas.
O livro em questão, por natureza dinâmico e múltiplo, faz do leitor mais um personagem da possível trama, como se a inscrevê-lo automaticamente num retalho extra: o de número 71. Para a sua composição, o autor se vale de registros literários e não-literários, por assim dizer, sendo possível entrar em contato com textos ao melhor estilo publicitário, cinematográfico, musical, descritivos, narrativos, poéticos entre outros moldes.
Incontáveis são os teóricos e pesquisadores que se aninham ou se aninharam pelo mundo afora na tentativa de desvendar os segredos do texto plurilinear, ou seja, do modelo textual detentor de múltiplos sentidos, dotado de ramificações, conexões extras e possuidor de competências e aberturas próprias e várias, tanto ao que meramente tange o suporte quanto aos processos de significação utilizados em sua produção.
Na profusão e difusão de novas modalidades e de modos de produção textuais, híbridos e transversais, cada vez mais vivos dentro das sociedades, a escrita de Luiz Ruffato em ELES ERAM MUITOS CAVALOS termina por fazer, também, com que o leitor enverede por uma nova experiência de leitura, pronunciada nas ideias dos multiletramentos e dos intertextos – assim como da polifonia e da polissemia-, visto aqui não apenas no âmbito do hipertexto, mas do texto impresso – será possível? – também.
Como bem aponta Dijk (2012), entender o discurso é antes realizar a compreensão texto/conversação-em-contexto. Com base nesta premissa, vejamos os excertos abaixo, retirados do livro de Ruffato:
“- Num falei?” (p. 17)
“- Dá dinheiro, né?” (p.17)
“E gente inda consegue dormir; meu Deus, a bocona jacaroa, até ronca!, até baba!, comé que?” (p.18)
“indignação ah ah ah” (p.26)
“Estraga o teclado... Esse farelinho aqui ó, trava tudo, uma bosta! E se cai Coca-Cola então, puta!, aí fodeu!” (p.43)
“Falei com a patroa, ela disse, Quê isso, Claudionor!, Claudionor sou eu. Quê isso, Claudionor!” (p.74)
“A gente vinha lá dos lados dos Perus, da casa de um mano nosso, aí a gente veio andando, porque já num tinha mais busão, a gente veio andando e papeando, tá ligado?, aí a gente viu aquela montoeira de caixote empilhado, desacreditamos, aí o Esqueleto falou, vamos derrubar?, aí o Ziquinha falou, vamos nada, vai dar merda (...)” (p.116)
Tomando como ponto de apoio os excertos supracitados do livro de Luiz Ruffato, logo corroboramos da ideia de Djik (2012), que defende que a natureza do contexto é múltipla. O pesquisador em destaque salienta que não há uma maneira eficaz para elucidar e identificar um conjunto cotexto-contextual de único nascedouro.
As bases da criação de Ruffato são diversas, baseadas em vivência única e momentos particulares de observação. Portanto, um movimento essencialmente de interação social e, ao mesmo tempo, profundamente individual.
Em defesa de questões ligadas ao fator interação social dentro das ambientações de gênero e de escrita, BAZERMAN (2007, p.119) vai dizer:
Todo momento insere e revigora momentos prévios. Isso é verdade também sobre este momento em que eu escrevo e você lê, e a tênue conexão entre eles. Definir um momento é perceber uma estrutura para o antes e o agora e agir sobre essa percepção, compreendendo-a, assim, como um ato social que influencia o futuro. O ato momentâneo implica intencionalidade dentro das construções pessoais de uma situação histórica em evolução. O escritor ou falante apresenta um universo dinâmico para o leitor ou ouvinte reconstruir ativamente dentro do universo dinâmico do receptor.
Por ser um elemento que tanto pode atender às demandas subjetivas de cada indivíduo que se sujeite estar diante de um dado fenômeno de uso da língua quanto a qualquer formação de elaboração linguística de construção sociointeracional de base coletiva, a concepção de contexto aqui envolvida – leia-se, na obra de Ruffato - tende a arrecadar condições de atuação não simplórias. A natureza do contexto, nesse ínterim, pode ser facilmente considerada como mutacional.
Os excertos da obra de Ruffato, escolhidos e supracitados neste ensaio, reafirmam que os fenômenos de uso da língua que relacionam os cotextos aos contextos dentro da relação oralidade-escrita são, como na visão de Dijk (2012), realçados no que dizem respeito aos seguintes modelos de entendimento: Os contextos que podem/poderiam ser identificados para estudo mais detalhado são construtos subjetivos dos participantes - neste caso, produzidos pela participação ativa do autor frente ao mundo que o cerca.
Os contextos, vistos assim, sob o prisma da relação autor-leitor, podem ser entendidos como sendo experiências únicas. Os contextos, pelo caráter experimental que abarcam, são também modelos mentais de desenvolvimento progressivo.
Sobre o momento individualmente percebido que ajuda na construção de todos os principais elementos da relação cotexto-contexto, BAZERMAN (2007, p. 128) afirma:
Para cada indivíduo, a vida desdobra-se em uma série idiossincrática de momentos dos quais se participa da melhor forma possível e de onde se parte com percepções sobre o mundo, eventos e consequências das ações. A partir da sequência de momentos, desenvolvem-se hábitos, práticas e concepções que dão forma a comportamentos futuros e constrói-se a um senso do self, uma autobiografia e uma visão do lifeworld.
Lifeworld, para constar, é um conceito de Husserl que significa o mundo “como vivido” antes de alguma representação ou análise reflexiva.
Os contextos em diálogos com seus enunciados escritos (cotextos) com marcas de oralidade na obra ELES ERAM MUITOS CAVALOS, de Luiz Ruffato, devem ser percebidos como um tipo específico de modelo da experiência do autor. São também, por conseguinte, esquemáticos, pelo fato de obedecerem a um regimento elaborativo, de nuances múltiplas, variadas e variantes, controlam as suas próprias produções, suas respectivas compreensões do discurso e ainda apresentam bases sociais de conflito.
Os contextos possíveis para estudo a partir da obra acima citada são dinâmicos, amplamente planejados, o que contorna qualquer indício de obviedade na construção discursiva da narrativa, fator que a coloca em patamar avançado em termos de caracterização literária. O presente ensaio, dessa forma, lança um tanto de luz para futuros e prováveis estudos sobre as problemáticas aqui debatidas.
REFERÊNCIAS
BAZERMAN, C. Escrita, Gênero e Interação Social. São Paulo: Cortez, 2007.
CAVALCANTE, M.M. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2014.
DIJK, Teun A. van. Discurso e Contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Contexto, 2012
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