Minha mãe e Tio Jânio.
ou A vida é uma mala Caterpillar que se quebrou na primeira grande viagem
Por Germano Xavier
Para Tio Jânio, in memoriam.
Passei a manhã inteira limpando o quarto de hóspedes do apartamento onde moro, pois no próximo fim de semana uma amiga de velha data de minha esposa virá do Rio de Janeiro para passar um fim de semana conosco aqui no Agreste Meridional de Pernambuco. Arrumei pilhas e pilhas de livros que estavam fora do lugar devido, revistas, velhas apostilas sobre assuntos diversos. A Menina do Sorriso Cacheado preparava um pequeno almoço de domingo. Finalizada a arrumação do quarto, peguei uma mala pequena de rodinhas que possuo para tentar consertá-la. A última viagem que fiz acabou rachando uma de suas laterais plásticas. De quatro dedos era o tamanho da fenda. Fui à geladeira e peguei a cola Super Bonder que deixo lá para quaisquer eventualidades desta natureza. Depois de já uns dez minutos tentando grudar um lado no outro, fui meio que desistindo. Os plásticos não se juntavam. Comecei a pensar em alguma maneira mais grosseira, com arames finos ou outro material que fosse possível retorcer ou grampear as partes. Enfim, não queria perder a mala. Eu estava sentado no sofá da sala de estar quando o meu telefone celular começou a tocar. Era minha mãe, chorando. Nem precisei perguntar, no fundo eu já temia, eu já sabia. Mainha foi de pronto me dizendo, entre soluços: "Jânio morreu, Geu".
Não falei nada, quase nada. Não há muito o que se dizer numa hora dessas. Deixei minha mãe falar e respirar. A dor é grande. Perder um ente querido é sufocante, sabemos. Depois de um certo tempo, pedi para falar com meu pai. Meu pai ainda não estava muito por dentro do assunto. Desliguei o celular. Comecei a pensar. Passa um redemoinho de lembranças na mente da gente. Imagino o quanto deve ser dolorido perder o pai, o esposo, o filho, o irmão. Para cada parente ou familiar, a dor tem um tom, uma cor diferente, uma intensidade. Mas, como disse antes, não há muito o que se fazer numa hora dessas. Penso que o melhor a se fazer é devolver o corpo ao pó dos tempos da maneira mais digna possível, com as simbologias e as homenagens necessárias. A alma do meu tio, acredito piamente nisto, já foi endereçada para o melhor dos caminhos além-olhos.
Tio Jânio foi o tio mais próximo que tive, já que ele viveu grande parte de sua vida na mesma cidade em que nasci: Iraquara, Chapada Diamantina. Natural de Canarana, cidade a 68 km de Iraquara, era comum vê-lo pelos corredores lá de casa, principalmente aos sábados após a feira livre da cidade e durante a semana na hora do café da tarde. Ele mesmo se prontificava a tomar as rédeas da cafeteira e pelas bandas da cozinha da casa dos meus pais deixava sempre preparado um delicioso e cheiroso café vespertino. Tio Jânio teve uma vida simples, sem grandes movimentos, casou-se, teve dois filhos e terminou seus últimos dias trabalhando como motorista do município de Iraquara. Com sua destreza ao volante, ajudou muitas pessoas enfermas encaminhando-as com segurança aos hospitais da capital baiana a fim de iniciar seus respectivos tratamentos.
Num dia como o de hoje, escolho relembrar de momentos alegres que vivi com meu tio. Lembro dele sempre a me fazer perguntas bastante engraçadas e inteligentes. Dizia ele que havia "pegado" as charadas via programas de rádio que costumava ouvir horas adentro pela madrugada. A imagem dele a sintonizar aparelhos de rádio ficará comigo para sempre. Onde houvesse um rádio, lá estava Tio Jânio a tentar sintonizá-lo. O noticiário radiofônico o deixava a par de todos os principais acontecimentos mundanos, e isso bem antes da internet ganhar as casas brasileiras. Tio Jânio era uma espécie de porta-voz de tudo lá em casa. Era chegar por lá e sempre um novo acontecimento vinha à tona. O rádio também o fez acompanhar com enorme entusiamo o seu time de futebol do coração: a Sociedade Esportiva Palmeiras, de São Paulo. Tio Jânio foi a pessoa mais apaixonada pelo esporte bretão que conheci nesta vida. Neste quesito, foi um grande influenciador para toda a família.
Tio Jânio tinha a alma dos teimosos, dos arredios, dos que faziam por vezes aquilo que lhes dessem na telha, sem pensar muito nas consequências. Talvez, para mim, esta foi a grande mensagem deixada por meu tio em vida: viver intensamente, mesmo quando a vida não parecer boa o suficiente. Bebeu e fumou desde muito novo. Quando eu era pequeno não entendia bem o porquê de tudo isso. Mas agora, nos anos de mais madureza, entendo com mais clareza os prazeres e as fugas buscadas por meu tio. A vida nem sempre é tão simples de se entender. Não podemos fazer nenhuma espécie de julgamento a quem se atira de tal forma a vícios e/ou fetiches. Só ele saberia dizer onde a dor da vida doía mais. A gente se afoga em tantos outros vícios... cada dia mais, cada qual à sua maneira. O certo é que eu sei que meu tio viveu as delícias desses prazeres que matam como um profissional, não como um amador. Isso se traduziu, para mim, como rebeldia e coragem: outro ponto que destaco na personalidade do meu tio. Tio Jânio foi um pequeno grande rebelde destemido e vejo isso hoje como um ponto muito positivo.
Chega uma hora que a vida desgruda de nós, feito uma mala quebrada durante uma viagem que teima em não juntar mais as suas partes, mesmo usando para isso a cola mais forte do mercado. Chega uma hora que aquela mala reforçada e aparentemente eterna desmancha-se em ilusão e verdade. E pensar que ao comprar a mala e pagar um valor alto por ela em sete prestações, imaginei que ela fosse inquebrantável e que estaria em minha companhia para sempre. Todavia, fui muito ingênuo. Para sempre, nem sempre a vida será. Muito menos uma mala de plástico Caterpillar (CAT) onde no adesivo de sua propaganda um homem imenso aparecia pulando em cima de seu arcabouço para demonstrar toda a resistência de sua engenharia voltada para viagens.
Aos parentes e familiares, meus sentimentos.
Siga em paz, "Canarana"!
Meu pai e Tio Jânio.
Vovó Isaura e Tio Jânio.
* Imagem: Acervo Germano Xavier
4 comentários:
Adorei o texto.Meus sentimentos!!
O vi poucas vezes em minha vida, mas sempre escutava meus tios contar histórias do primo Janio!! Siga em paz!
Meus sentimos a todos da família.
Uma dor incalculável, que só será amenizada com as lembranças.
Obrigado pelo texto.
Meus sentimentos a você também.
Postar um comentário