Por Germano Xavier
Dava uma certa apreensão quando a gente resolvia que no fim do ano iríamos passar alguns bons dias em Pernambuco, especialmente no Pernambuco do meu pai, o Pernambuco atravessado pelo castigado Rio Una, revendo parentes, tios e primos, refazendo todas aquelas aventuras infantojuvenis e que, porventura, ainda cabia a nós dar uma continuação. E uma das coisas que sempre passava pela minha cabeça antes mesmo de partirmos para São Bento do Una era saber se o sítio de Tio Didi estaria tão bonito quanto no ano anterior.
Era um lugar de espírito quase mítico, úmido e seco ao mesmo tempo, verde e cinza, com cheiro próprio, de uma atmosfera particular que acabava por contrastar com todo o seu derredor. De um lado, via-se alguns galpões onde ele criava galináceos em grandes proporções para posterior venda (a região é uma das maiores produtoras de frango e derivados do país), uma casa simples ao centro e do outro lado da propriedade uma lagoa, com vistas para a rodovia e seus carros das décadas de oitenta e noventa zunindo e se perdendo na primeira curva, que era quase em sempre multipovoada de marrecos coloridos, onde pássaros e garças pousavam seus voos mais deslumbrantes aos finais das tardes.
Tio Didi era um grandalhão, pra lá dos 1,90m de altura, matuto dos bons, contador de histórias engraçadas, típico homem guerreiro de um Brasil profundo que precisou batalhar pelo pão abençoado de todos os dias com suas unhas e seus dentes. Sem grandes estudos formais, foi um grande mestre na arte de lidar com as coisas da natureza. Os tempos eram outros, as preocupações com os direitos dos animais também, gostava de caçadas na companhia de irmãos e amigos. Todavia, apesar de saber tudo isso hoje, os animais gostavam dele. Lembro de seus vira-latas obedientes a todo tipo de necessidade, de seu papagaio falastrão e de um sofrê (corrupião) que vez ou outra saía do alpendre, voava sua vida de pássaro livremente e voltava para dentro da casa do meu tio como se sentisse saudade daquele homenzarrão. Percebia sua dedicação em dar comida aos cães, aos marrecos, a preocupação com a água da lagoa. Enfim, era um homem integrado ao seu quintal - e que belo quintal!
Mas a vida é muito estúpida, às vezes. E triste foi perceber, aos poucos, o declínio do meu tio, aquela sua vida inteira entrelaçada em problemas conjugais e também com o álcool em forma de bebida. Aquele gigante se rendendo aos poucos às doenças do corpo, aos males da alma, o sítio sendo repassado para os outros e ele logo se encostando à morada do irmão mais próximo, irmão mais velho, meu tio Abdoral, ali do outro lado do asfalto onde a vida parecia ter a mesma densidade de pedra e a peleja diária era a mesma. Gado pouco, granjas que não ofertavam mais nenhum futuro, tentativas e mais tentativas. Muito rapidamente a lagoa se transformou num imenso buraco seco de piso rachado. Veio a secura de anos sem chuva. Veio o outro dono do lugar. Foram-se as garças, os marrecos, os cães. Ficou a desolação em meus olhos adolescentes. Ficou muito mais coisa em mim do que parece. Ficou tanta coisa.
Mas lembrar é uma forma de vencer. A vida. A lembrança é o lugar onde guardamos aqueles que nos marcaram. E quando algo ou alguém nos marca, este algo ou este alguém jamais morre. Fica. Como se na forma de adubo, a ajudar na caminhada da eterna semente perene que somos. Até o fim. Pois no fim há o Tempo. O Tempo coloca tudo em perspectiva. Até a dor. O Tempo voa. E também não passa. É uma gaiola. Como a gaiola do concriz do meu tio Didi. A gente abre e fecha ela, sempre, mas no fim voltamos para nossas casas. E depois de muitas experiências, de idas e vindas, a gente aprende que tudo muda. Então, o inferno de hoje será diferente amanhã. Mesmo que seja outro inferno, outra dor. Mas será diferente. Isso dá um certo conforto.
Ontem liguei para o meu pai. A notícia ainda era recente. A voz do meu pai estava embargada. Tentei escapar do assunto algumas vezes, para não alimentar o instante. Nossas raízes estão indo. E não tem outro jeito. A gente acaba lembrando de tudo que pode lembrar, de tudo que dá. Lembrar é tão importante quanto escrever. Para mim, sinto que as coisas acontecem quando escritas. Para avançar, é preciso escrever. Para finalizar. Para ser. É preciso escrever. Escrevo o que é muito real para mim. Muito vivo. Minha escrita/literatura me movimenta. É bonito ver. Sentir. Por isso estas palavras em memória deste irmão do meu pai, em memória do meu tio Didi, que não morreu. Mas que ficou. Em algum lugar. Dentro. Bem dentro. Um lugar ainda sem nome em mim, onde ponho tudo aquilo que me ajudou a chegar aqui, a ser até aqui. A estar aqui.
Tio Didi, muito obrigado. Muito obrigado.
* Imagem: Acervo Germano Xavier
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