sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Como O HOMEM ENCURRALADO chega a L’HOMME ACCULÉ, omnipresente e atemporal


 

A série de textos que ora vos é apresentada, da autoria de Germano Xavier, poeta, contista, professor e jornalista, reflete as andanças atribuladas do homem pós-moderno, as suas incongruências e fragilidades. Na visão do poeta, este homem encurralado por um sistema do qual ele é também uma ínfima parte, simultaneamente vítima e cúmplice involuntário, tenta, a duras penas, desfazer-se das teias poderosas que o envolvem, como tentáculos. O materialismo excessivo e sufocante é parte da condenação deste personagem sem saída, moldado por angústias e dúvidas, como a grande maioria dos seres humanos; dir-se-ia que é um homem excluído, transparente, desenquadrado e inclassificável, que não se pode etiquetar.

Identifiquei-me plenamente com a poíesis de Germano Xavier, empolgante e reveladora, peculiar e depurada desde o primeiro verso, como se observa na atmosfera densa que rodeia este homem tão completamente cercado; por isso propus-me traduzi-lo para francês, atrevimento que rapidamente se transformou numa doce rotina até se converter numa necessidade pessoal ou inapelável tentação.

O maior desafio com que me deparei, para proporcionar uma viagem, entre a língua fonte e a língua alvo, e um destino condignos, foi garantir que a mensagem chegava intacta. Nem sempre terá sido o caso em virtude das singularidades de cada idioma e cultura mas o objetivo foi sempre, ao longo do processo, acercar-me desse ideal. Outro escolho – estimulante – foi o facto de eu não ser brasileira, embora falante nativa de português. Germano, como autor brasileiro com ligações a dois Estados, inclui também alguns regionalismos ou marcas culturais muito específicas e singulares. Todos esses aspetos se tornaram numa inesgotável e fascinante fonte de aprendizagem para mim, uma vez que a cultura do Brasil me é muito próxima, por via dos afetos, da literatura, da gastronomia, do cinema e da música, mas não me é inata nem intrínseca; e a nossa aproximação tem sido filtrada no decurso da vida, como é natural, por uma sucessão de eventos inclusive extra literários. Tampouco sou francófona não obstante ter começado a construir, na infância, uma relação de intimidade e respeito com a língua francesa, desenvolvida posteriormente pela via académica, profissional e social. Assim sendo, questiono-me frequentemente sobre o seguinte: será imperativo que o tradutor seja nativo da língua fonte ou da língua alvo? A primeira hipótese garantiria uma compreensão total do contexto e da mensagem, mas a segunda criaria a expetativa de um texto sem mácula, à chegada. Fazer as escolhas tradutórias mais sensatas e adequadas pressupõe também alguma sensibilidade, experiência, conhecimento dos ambientes e intuição por forma a assegurar que a beleza e a força de um texto não saem prejudicadas nessa metamorfose, que se pretende inócua, discreta, invisível ou pelo menos translúcida. No nosso caso, o conhecimento prévio do autor e de parte da sua obra facilitou a familiarização com o texto. Devemos ter sempre presente que uma tradução é uma leitura, uma interpretação, uma proposta, sujeita a ser polida, que não exclui outras soluções igualmente válidas.

Entendo que O Homem Encurralado, “desautor” da sua vida, é submetido à narração diagnóstica do poeta através de versos livres como de prosa poética, assumidamente “engagée”: começa por mostrar-se um homem esvaído de si, caracterizado pela falta de opções, pelas condicionantes externas, pela voz que lhe é roubada, pelos sonhos que não pode ter. Germano deu-lhe forma corpórea e uma condição estável dentro de um conjunto de poemas porventura biográficos. Mais do que um homem ele é sobretudo sociedade, despojos, mundo, presente, alterações climáticas, uma espécie de cicatriz na Terra, com um futuro incerto e muito nebuloso. Em francês procurei manter-lhe o significado, o ritmo, a música abrupta e áspera. Mas sobretudo a emoção, a voz surda, as pausas, os silêncios, a inação. Traduzir o dito e o não dito, os momentos de introspeção, a mágoa cansada da permanência orbital em torno de uma pobreza inconsciente e nua próxima da miséria humana. Ao traduzir procuramos outra voz para expressar o mesmo ambiente. Talvez as palavras não estejam todas lá, talvez algumas sobrem. Outras irão mancando pelo poema até chegarem ao término, que não é um desfecho, mas um recomeço intermitente.

É justificado e legendário o “medo” ou “desconfiança” de alguns autores em relação à tradução das suas obras. Todavia, Germano concedeu-me liberdade total para trabalhar os seus textos e prepará-los para esta viagem inaugural, deixando o homem encurralado à minha guarda com tal naturalidade que fez com que o sentido do dever se acentuasse, como sua primeira tradutora. Oxalá não tenha excedido os limites implícitos dessa liberdade. Se for o caso os leitores perdoarão as eventuais zonas textuais controversas, assim o espero, as derivações da tradução, que é tanto uma adaptação como uma recriação pontual. Ora literal, ora livre, tão dissemelhante ou inconsistente aqui e ali como este homem que agora se diz acculé, l’homme acculé, o tal cuja única esperança reside na força fraterna, indivisa, da empatia do leitor e da poesia.

 

Luísa Fresta

Queluz, 28/12/2020


Imagem: Marcel Gama

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