Querido amigo Viana,
Eu vou começar por lembrar-te aquele chiste de dois ingleses que jogavam uma partida de xadrez tranquilamente quando um deles exclama, sem tirar os olhos do tabuleiro: “Acaba de passar um Bugatti Chiron”. Ao cabo de dez minutos, o seu adversário, sem tirar os olhos do tabuleiro, responde: “Não era só um Bugatti Chiron… era um Centodieci”. Finalmente, passados mais alguns minutos, o primeiro atalha assim esta promissora conversa, levantando-se e procurando o seu sobretudo: “Lamento, meu caro, mas não vim aqui para discutir. Receio que tenhamos que interromper esta partida”. (Já contei esta história milhentas vezes, e tu não terás escapado a ela, certamente…).
Esta é a maneira como em certa época se caricaturava a fleuma atribuída aos britânicos. Não sei se tem fundamento ou não, porque nunca tive oportunidade de comprovar a visão irónica acerca de um povo que na verdade não conheço por dentro. Em todo o caso estereótipos como este e outros valem o que valem mas não devemos deixar de sorrir apesar dos tempos sombrios que nos cercam. A visão do “homem encurralado” torna-se cada vez mais corpórea. Nós dois adiámos esta conversa por demasiado tempo e por isso me lembrei destes senhores britânicos que aqui tão bem nos representam (não me refiro, obviamente, ao diferendo deles por um motivo que nos pode parecer tão fútil e risível, mas à tranquilidade vagarosa com que interagem, na camaradagem, no esgrimir de argumentos ou nas quase-zangas subtis).
A última prosa (nossa) por esta via ocorreu no “longínquo” ano de 2018. E digo longínquo propositadamente para referir tudo o que ocorreu nas nossas vidas desde então, como indivíduos e peças desta engrenagem maravilhosa que é a humanidade. Desde logo tivemos oportunidade de conhecer-nos pessoalmente no momento pré-catástrofe sanitária. Foi uma bênção para todos, incluindo para as nossas famílias, pois nos dias que correm, tal não seria possível. É um presente raro da vida podermos estar diante das pessoas que tanto admiramos e com quem trocámos já tantas experiências e conhecimento ao longo de vários anos. Acredito que serão muitos mais daqui por diante, os anos, as décadas e as partilhas, como fazedores de literatura e como leitores compulsivos. Em todo o caso na vida tudo acaba por acontecer no momento certo.
Hoje vivemos tempos excecionais de angústia, de prudência, de adrenalina, em que mais do que nunca é importante fazer uma correta triagem da informação relevante para não perdermos tempo com futilidades e desinformação, maldosa ou simplesmente inconsciente. Não me vou alongar muito sobre isso porque é tema de conversa diária inclusive na imprensa e entre pessoas que se estimam. Apesar disso abro um parêntesis para desabafar contigo sobre o quanto me preocupa que a insanidade de alguns, incluindo líderes de grandes nações, possa pôr em perigo milhões de vidas, mais do que já estão. Estes são momentos que nunca vivemos (a tua geração ou mesmo a minha), mas talvez voltemos a conhecer ainda algumas vezes durante a nossa passagem pelo planeta, por isso é bom que aprendamos a agir em situações de risco, atualizando o conhecimento dia a dia em função dos novos dados.
Porém, há coisas que são sempre válidas, que não devem mudar nunca: a solidariedade entre todos e em relação aos mais vulneráveis, a consciência de que todos nós (sim, todos nós, e não apenas os supostos “grupo de risco”, expressão que é infelizmente usada muitas vezes com uma certa condescendência e sobranceria), somos potenciais vítimas e portadores de uma doença que pode causar outras tantas vítimas de gravidade variável.
Quando ouvia a minha avó materna, ou a minha Mãe, falarem da “pneumónica” de 1918, aquilo para mim era sobretudo uma referência histórica, embora me tocasse tremendamente pela dimensão trágica da doença, arrasadora, impiedosa, que vitimou muitas pessoas da geração da minha avó, nascida em 1885. Hoje a ameaça da “ceifeira” é real, apesar de termos meios tecnológicos e sistemas de saúde razoavelmente sólidos (em alguns países) para nos precavermos um pouco mais do que em zonas do planeta onde não se pode contar com essas estruturas, já frágeis e insuficientes em tempo normal. Quando passar esta imensa crise talvez nos lembremos que na hora da verdade contamos sobretudo com o Serviço Nacional de Saúde e que por isso talvez devêssemos investir mais, muito mais, nesta estrutura que é o nosso suporte, nos seus profissionais abnegados, na formação e equipamento.
O futuro dirá o que aprendemos com tudo isto. Para já digo-te que a minha buganvília cor-de-rosa, indiferente a tudo e a todos e concentrada apenas na sua própria beleza — e na primavera, que teima em revelar-se —, está a florir de dia para dia, junto com uma violeta africana e um aspargo que não para de crescer. Elas são assim mesmo, leves e quase levianas, livres e exuberantes em qualquer circunstância, por mais dramática que se nos afigure. Não sei porquê eu pensei também — e pelas mesmas razões— na Nina e na Lola, sempre belas e sorridentes, porque no mundo delas está sempre tudo bem, desde que existam livros e carinho. Elas são encantadoras e soltas, imunes a tristezas e preocupações, não é?
Entretanto, neste lapso de tempo em que nos calámos um perante o outro saiu para o público um novo “MARÇO Entre Meridianos” e uma “Fabulosa Galinha de Angola” que começou timidamente o seu périplo, este ano, em Lisboa. Projetos que começaram um trajeto agora interrompido porque, como se diz e bem, valores mais altos se levantam. A literatura pode esperar, a vida não. Além disso os livros podem circular de forma alternativa, e para isso cá estamos para tentar conciliar vontades, interesses e prioridades.
Por ora digo-te que estou a frequentar uma oficina de escrita criativa online (gosto da palavra oficina!); surgiu a oportunidade e quis experimentar. Nunca tinha pensado nisso antes seriamente, mas acontece que a pessoa que está a ministrar o curso, pro bono, é uma romancista luso-moçambicana com um vasto conhecimento e experiência como historiadora e ficcionista. Daí o meu interesse, até porque pretendo melhorar as minhas ferramentas de comunicação escrita, sobretudo de textos longos. Não tenho ainda estaleca para escrever uma novela e muito menos um romance, escrever um conto de média dimensão para mim já é um “grande” feito; mas confesso que se um dia conseguir fazê-lo, de maneira a prender um leitor da primeira à última linha, com coerência, rigor, humor e interesse (tal como acontece com muitos e bons autores que leio desde a infância), ficarei muito satisfeita.
Tu és uma daquelas pessoas em que me miro e com quem mais aprendo, e agora falo especificamente das tuas vivências como ficcionista e ensaísta, como poeta também. Porque consegues estabelecer uma fronteira confortável entre prosa e poesia, deixando que uma dialogue com a outra e se entreajudem, sem no entanto perder o fio narrativo e conseguindo sempre adaptar a linguagem e o estilo ao efeito pretendido. Mas nota-se que nada é forçado, e isso é uma coisa verdadeiramente invejável, fruto de um dom natural, certamente, mas também de muito treino, imagino, como leitor e como escritor. Tens também uma grande facilidade de comunicar oralmente com eficácia (aí sobressai o professor!) e fluidez máxima: isso para mim é ainda mais extraordinário porque não me sai nunca espontaneamente, a não ser entre amigos, quando me sinto segura e confortável.
Há também outra forma de expressão que me atrai desde a infância, creio que já comentámos, que é o desenho; embora faça longas pausas injustificáveis nos meus rabiscos e exercícios. Já a nossa Cris vai evoluindo dia após dia, com treino intenso, inspiração e dedicação, procurando superar-se ensaiando novas técnicas e métodos. Por isso vou recorrendo a ela quando preciso de algo mais específico, um certo tipo de traço rápido e realista, com uma interpretação impregnada de humor, colorida e jovial. Assim é a Cris e também os seus desenhos.
Os dias são pequenos para encaixar neles tudo o que queremos: partilha familiar, trabalho criativo e rotineiro, atividade física, higiene e desinfeção redobrada dos locais e dos objetos…mas nunca pode faltar o tempo para nós mesmos, para fazermos alguma coisa prazerosa, e quem gosta do que faz pode multiplicar esses momentos em cada atividade, em cada pequeno gesto, por mais simples que pareça.
Não vou cansar-te mais, Viana, com as trivialidades às quais já te habituei e que escutas há anos mercê de uma inesgotável paciência e generosidade.
Aguardo notícias de ti, do Brasil, esse país-mundo tão próximo dos nossos afetos e preocupações.
Um abraço fraterno e gigante,
Clara
Lisboa, 28 de março de 2020
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Clara,
paramos a prosa, sim, para olhar melhor para além da poesia do mundo, das pessoas, das nossas atitudes, para além de nossos engraçamentos ou desaforos individuais. É sabido, nunca paramos por completo, apesar de nossos encurralamentos diários, sazonais, temporais, quase que ritualísticos. Nesse ínterim, absorvemos todas as dores do universo, os amores, cumprimos as ordens dos dias e tentamos, quando necessário, burlar os movimentos naturais do ser e da vida. Paramos, sim, mas nos movemos.
Eu mesmo me fui em navegâncias, Clara, a correr mares inóspitos, mesmo trilhando, por vezes, o trivial das rotas dos destinos insondáveis. Eis o segredo. Ir. Ir apenas. Sobreviver para ir apenas. Ir apenas para viver. Se não consegui por completo chegar aos locais por ora pretendidos, eis aí um outro detalhe, ou melhor, um mero detalhe. Um mero detalhe, sim. O importante é que andei tentando, mesmo deixando pelo caminho atalhos antes prazerosos por conta das paisagens bonitas. Necessário seguir a trilha que escolhemos. Escolhemos, sempre.
Outra coisa não, mas explorar todas as nossas tolerâncias e capacidades de resiliência foi o que fizemos durante todo este tempo em que nos dispomos a estancar nossos diálogos, mesmo que inconscientemente. Muita coisa aconteceu, muita coisa nos aconteceram. Você sabe. O Brasil é um país que, vira e mexe, surpreende-nos, tanto positivamente quando negativamente. Nos últimos tempos, negativamente em 90 % das vezes. Sim, claro que estou citando aí o campo político nacional. É de se suspeitar que, com um sujeito desse naipe “comandando” esta nau desvairada o assunto não poderia ser outro. Mas bem que poderia, sim. Pode, sim. Esquivar-se é também um golpe artístico, por vezes.
Sem zanga nem nenhum sentimento de desperdício de tempo ou qualquer coisa de culpa no ar, cá estamos, ressuscitados de nós mesmos, de nossas próprias mortes diárias, mensais, anuais. Bom notar o quanto nos reerguemos, o quanto nos refazemos mesmo diante de tantas quedas ou travessias abortadas no meio dos passos. Precisamos passar. Somos passantes.
Sim, Clara, encontrar você às margens do Tejo, aos som dos sóis e dos frios imemoriais de um janeiro de ventos, foi tão bom quanto me sentir vivo até o prezado instante de encontrá-la. Eu que, timidamente, insisto na ideia de que fora um reencontro. Digo a você e exponho aqui a todos os nossos leitores: você é igualzinha à persona que imaginei em mente. Mesma força e mesma beleza. Também creio que nossos laços de amizade e parceria se incluam em campos temporais bem mais distantes que os visíveis a olhos nus. Então, isto só está a começar. Fomos sortudos. Ainda deu tempo de podermos nos abraçar. Se demorasse mais, nem isso.
Temo, Clara. É incrível saber que a história está sempre a se repetir diante do Tempo e quase não percebemos. Mais, e pior, e daí vem meu temor maior, incrível é saber o quanto nós, seres humanos, recusamo-nos a aprender com os erros cometidos no passado. Uma espécie de eterno retorno Não foram poucas as chances que tivemos para deixar de errar, Clara, e também de nos precaver diante de situações desta natureza. Você bem sabe. As consequências serão devastadoras, principalmente para os mais desfavorecidos Por que diabos insistimos tanto nos erros, Clara? Para onde vamos com tamanha ignorância ou desprestígio ao saber real? O temor é crescente e se expande. O que é mesmo o futuro?
O vir-a-ser, o depois-de, como será? Como seremos após isto tudo cessar? Haverá mesmo alguma mudança na maneira de pensarmos a engrenagem vital? Alguma incrível e transformadora novidade que valha a pena a espera? Ou tudo continuará freneticamente a remoer os nossos últimos alicerces e ossos? Temo, temo, temo. Não sei como isso irá se dar. O que serei? O que serás? Eu preciso mesmo pensar sobre isso? E se for perda de tempo? O que fazer? O que é o melhor a se fazer? O que é o pior a se fazer? Estamos sucumbindo?
O Brasil não está preparado, Clara. Verdade seja dita. O Brasil nunca esteve preparado para lutar contra uma dor geral invisível tão aterrorizante e alastrante. Acho até que nunca estaremos preparados para algo do tipo, nunca mesmo. Mente quem diz o contrário. Mente o presidente, este idiota partícipe da necropolítica que assola o mundo hoje. Bolsonaro é o lixo do lixo, a coisa mais degradante. Aqui, neste país de meu deus, não sabemos qual mal é maior e mais perigoso, se é o vírus ou se é o presidente. Enfim, nós que lutemos para derrotar estes males. É o que nos resta.
Mudando de assunto. Nina e Lola são, sim, imunes a tudo isto. São nossas criaturinhas que nos acordam em pulos sobre a cama ou em ranhuras na lateral do lençol. Ideia de minha esposa tê-las em nossa companhia. Onde morava antes, eu tinha o Sam, um vira-lata branco que muito alegrou minha família. Acabei me despedindo dele muito cedo quando por outras paragens citadinas tive de aportar. Nina e Lola meio que resumem meu amor para com o meu velho Sam. Não esqueço dele. E elas me fazem recordá-lo.
Nina é calma, inteligentíssima e é de esquerda também, como Lola (risos). Lola é mais nervosa, gosta muito de passear e de correr. Lola é mais dependente, sempre quer carinho. Nina é mais autossuficiente. Mas não fica muito atrás de Lola no quesito apego. As duas se completam, as duas se complementam. Por termos horários de trabalho bastante diferentes, a companhia delas supriu um pouco de nossas ausências mútuas. São excelentes companheirinhas, fofinhas e não dão nenhum trabalho. Gostam de brincar e até conversam com seus sinais já compreensíveis por nós.
Seus livros são essenciais, Clara. Daqui os observo, guardo, compartilho impressões e leituras. E muito obrigado por ter tido a oportunidade de lê-los. Suas inquietações referentes à aprendizagem do fazer literário são oportunas e válidas. Aqui também estou sempre de olho em algumas oportunidades de aprimoramento, apesar do tempo que às vezes nos parece escasso e faltante. Escrever é o que somos. Precisamos continuar. Por isso, cuide-se. Cuide de tudo que importa a você e aos seus. Precisamos continuar, apesar do mundo e das pessoas. Apesar das histórias que a História insiste em nos contar. Precisamos. Por isso, vamos.
Um beijo.
Caruaru, 14 de abril de 2020
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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.
Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.
Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
As imagens são da queridíssima e talentosa Cristina Seixas.
2 comentários:
O gênero carta sempre me fascinou! E com a internet as pessoas disseram que ele já estava ultrapassado, que o volume de cartas no correio diminuiu bem e que o carteiro seria uma das primeiras profissões a serem extintas no século 21. Mas os especialistas não contavam com a astúcia da literatura que sempre encontra uma maneira de subverter a ordem e mantém viva uma das formas mais instigantes de comunicação. Adorei os heterônimos assumidos na correspondência "Entre Marés e Marés: Conversas Epistolares". Já vi que preciso me organizar para dar conta das leituras de Clara e Viana, pois há outros 16 escritos me esperando. Parabéns pelo projeto!
Tudo está vivo, Rozana.
Estou feliz por lhe encontrar aqui.
Abraço forte.
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