quarta-feira, 30 de junho de 2021

Georges Bataille e a história de nossos olhos



Por Germano Xavier


Quando você termina de ler A história do Olho, de Georges Bataille (1897-1962), você tem, não a impressão, mas a certeza de que o livro, a narrativa, não acabou no último ponto final colocado pelo autor. Isso é um fato que sempre acontece quando uma narrativa literária é realmente marcante. O livro é de tamanha visceralidade que facilmente toma conta de todos os cantos de nosso espírito, até aqueles mais recônditos e aparentemente intransponíveis, o que faz com que se abra diante dele e de nós mesmos um mundo imaginário de proporções antes inimagináveis. Fico imaginando o quanto ele pode representar um conteúdo intragável para leitores não preparados ou ainda fechados em concepções porventura ortodoxas. A obra-prima de Bataille configura-se justamente no seu livro de estreia, hoje tido como um dos maiores clássicos da literatura erótica de todo o planeta.

A narrativa, densa e plástica sem ser cansativa, que é deglutida de um supetão, tamanha a sua força sobre nós, leitores, inclina-se sobre as aventuras e desventuras no mínimo “diferenciadas”, para não dizer escatológicas, fesceninas e altamente libertinas, de Simone e o narrador, este sem nome, mas com muita identidade na voz que opera todos os fatos e não-fatos, e que, porém, possui uma identidade fragmentada e somente esclarecida por completo quando na presença de outra pessoa, no caso Simone ou Marcela, a quem podemos caracterizar como espectros da maioria de seus fetiches, assim como ele, o narrador, também o é observado como um fenômeno de êxtase para as demais, porém em menor sintonia.

O reflexo da alteridade e da empatia é vislumbrado no decorrer de todo o livro, posto que todos os acontecimentos não poderiam se dar na solidão plena de seus praticantes, na alvura solitária do ser, e se assim acontecessem não teriam a potência máxima expressa no tempo dos acontecimentos. É perceptivelmente constante o pedido de Simone àquele que conta a estória para ele não permitir que ela goze sozinha, o que prova mais do que nunca a nuance de importância que a união humana tem no ideário do escrito. Simone necessita do outro para o arroubo fatal do prazer, tanto necessita que dificilmente se entrega a si mesmo sem o outro por perto para lhe satisfazer totalmente. O prazer n’A história do olho é um prazer instintivamente coletivo, mesmo que este “coletivo” queira designar o eu e o imaginário, o eu e o pensamento, o eu e o próprio desejo de ser o eu.

Uma série de encontros e desencontros se sucede a todo vapor e alguns pontos do livro se tornam cruciais para o desenvelopamento do entendimento e do sentido da obra, a citar:

• Logo na primeira página, o leitor é convidado a conhecer um mundo nada dogmático, pleno de sexo e delírio, libertário ao extremo, e a imagem do cu de Simone é logo ovacionada e conclamada pelo narrador como sendo um apetrecho do corpo classificado como mítico e sagrado para os atos praticados nas mais variadas orgias narradas no livro. O cu é o espelho do prazer, local onde tudo entra em ebulição, onde tudo explode, onde tudo acontece, e também onde a paz interna sem domador pode vir a reinar, para depois sobrepujar um novo caos operante. A urina também aparece como elemento importante para a simbologia provocada no livro;

• Os dois, Simone e o narrador, só conseguiam se olhar com mais atenção quando nos momentos de maior envolvimento físico-animalesco-sexual. Longe de seus próprios olhares, os dois se digladiavam com rupturas feitas tão-somente de desejo. Mas mesmo assim ainda eram rixas que os aproximavam de alguma maneira. Há uma falta de estranhamento dos dois quando realizavam o bruto sexo, ou quando tematizavam juntos a ordem da liberdade de ambos a ser executada no próximo ato, ou seja, toda e qualquer forma de delírio e gozo aproximava os dois de si mesmos;

• A chegada de Marcela, terceira personagem da obra, recoloca Simone e o narrador em diferentes postos. Marcela impede que continuem sendo os mesmos de antes porque a partir de seu aparecimento na praia o prazer não pode mais ser vivido em sua completude apenas em par, mas agora em trio. Marcela é o símbolo do desgarre e também do aprisionamento dos sentimentos, mesmo que estes sejam pálidos em profundidade ou pureza. Marcela é quem faz os dois transcenderem, incapazes que são para tal empreendimento;

• A mãe sem autoridade, no caso a de Simone, compartilha com medo o desastre de comportamento que vê, e já nada faz para combater a suposta insanidade da filha, a não ser ficar muda. A mãe de Simone é a porta que dá para a estrada da perdição, ou do encontro, mesmo ela nunca representando muita coisa para Simone;

• O pânico de Marcela quando é levada por si mesma para dentro de um armário e lá efetua seu gozo solitário recoloca a questão da alteridade e da empatia em voga novamente na narração. O gozo solitário é signo de sofrimento, de dor, de desgraça. Enquanto acontece um bacanal em seu quarto, com a participação de Simone, o narrador e alguns amigos, Marcela tenta se encontrar num lampejo desesperado e caótico, desejo este mal sucedido. Marcela, por sofrer, não consegue despistar o sentido de erro e logo é tomada pelos pais como ser débil e doente;

• A orgia na casa de Marcela com todas aquelas pessoas faz evidenciar a atração causada por ela aos demais, principalmente ao narrador e em menor grau em Simone. Marcela torna-se o elo-mor entre o ato e o gozo anímico-corporal. Sem Marcela, o prazer é pouco, fraco, alquebrado. Sua ausência começa a ser sentida em todos os momentos a partir dali;

• A masturbação à distância de Simone e Marcela na casa de saúde, esta levada até o local à força depois de os pais terem presenciado a orgia feita em seu quarto, pode configurar-se como metáfora para a inoperância de psicologismos vários ou na verdadeira eficácia de centros de reabilitação, não relativizando a falha geral desse tipo de sistema operacional nas sociedades de todo o globo terrestre;

• A volta para casa e a queda de Simone da bicicleta não representam apenas um retorno e uma queda normais, mas também o começo de uma derrocada sentimental-do-agir, que parece entrar em desgaste ao longo das páginas, mas que logo sofre um revertério;

• A brincadeira com ovos no hospital enquanto Simone se recuperava da queda e o resgate de Marcela da casa de saúde corrobora a ideia de que para o narrador, ainda sem entender nada sobre a atração que ela lhe causava, a vida é simples e não prescinde de esforço de entendimento. A impressão que se tem é a de que nada pode ser mais banal e supérfluo do que perder tempo pensando nas raízes quem fundem as coisas da vida. Em nenhum momento os personagens refletem sobre suas atitudes, nem se ressentem de nada. Tudo é feito no calor da hora, na sobrevida do instante, e por isso mesmo tudo eclode em fronteiras sem limites;

• O enforcamento de Marcela promove a indiferença dos dois para com o fato, o que soa contraditório, já que tanto Simone quanto o narrador eram aficionados por ela. Os colhões do touro, crus, tão desejados por Simone, simbolizam também a figura do olho, que perdura por toda a obra. A ida ao confessionário e o sexo com o padre dentro da igreja até sua morte é símbolo iconoclasta, de desprendimento e fervura vital. Por fim, o olho de Marcela imaginado numa espécie de miragem dentro da boceta de Simone, resgata a façanha e o fascínio da visão, tal como manda o figurino do voyeurismo.

É importante salientar que a essência dos comportamentos adquiridos pelas personagens é intrínseca a cada um deles, sendo mais um descomportar-se que um comportar-se propriamente dito. Tal fato é o motor para as fugas de quaisquer amarras ideológicas ou gaiolas sentimentais. Os personagens de A história do Olho são como pássaros silvestres, viajando em bando, mas piamente sabedores de serem proprietários de uma unicidade plástica que vivifica as passagens e portais para o outro passar a existir também, mesmo que essa existência dure as frações de segundos de um gozo físico e mecanicamente temporal.

Ao final do livro, convidado desde o início ao contato com o excêntrico ao extremo, o leitor vê-se preso numa orgia múltipla e única de si mesmo, feita com ingredientes que remetem ao saber e à consciência. Aliás, a consciência pode muito bem ser a palavra que mistifica o sentido do “olho” dentro do enredo de Bataille, assim como o significa. O saber consciente da visão e sua operação de tradução do mundo e dos acontecimentos são o que torna o livro tão impactante, a ponto de nos produzir desgovernos internos. Ou vai dizer que a visão, vez ou outra em nossas vidas, também não nos presenteia uma abrupta e inconfessável cegueira?

3 comentários:

controvento-desinventora disse...

Bataille é um desbravador do erotismo, que alcança uma dimensão profunda e polêmica àqueles que amarrados, encegueirados, jamais entenderiam ou sentiriam o desconforto de aventurar-se por prazer. Ele faz isso in texto e no intermezzo nos põem a redimensionar perspectivas nunca dantes experimentadas, por isso creio que cause essa orgia intra-sexual, que diverge e converge em gozos explícitos ou ocultos.

Adoro esse autor, usufrui muito de O Erotismo, para fins de pesquisa, todos deviam lê-lo, para entender como diz Barthes: "O prazer do Texto".
bj

QUINTAL DE MIM disse...

fiquei com vontade de ler...

Ana Rosa, SP disse...

Fiquei com medo de ler o livro, já que a análise do Germano corre o risco de ser melhor: crua, forte e deliciosa.