terça-feira, 26 de outubro de 2010

2011, dia primeiro



Por Germano Xavier

Eu acordei meio grogue. Não dormi bem, o que não é nenhuma novidade. Levantei. Quase uma vertigem. Libei um gole d'água. O cobertor estava no chão, o travesseiro todo amassado. O ventilador girando lento no quarto abafado. Meu irmão resfolegando seu sono de seixo.

"2010 acabou", disse alguém. E aquilo me soou estranho. “Como assim, acabou?”, perguntei aos meus botões. “E tudo que aprendi "naquele" ano, também se acabou? E a lembrança de certas coisas que fiz em 2009, não existe mais? Os 187 livros que li - batendo meu próprio recorde, que foi de 172 em 2006 -, não valeram de nada? As inesquecíveis viagens de moto que fiz por aí, cortando O LUGAR MAIS LINDO DO MUNDO, também sublimaram? As pessoas que conheci, os suores que senti, os aprendizados, as aulas que lecionei, os poemas que escrevi... tudo isso, "acabou"?”, insisti.

Não arrumei a cama, fato insólito. Caminhei pelo corredor, fui ao banheiro. Meu pai já havia acordado. Minha mãe ainda estava deitada e pronunciava meu nome imperativamente: “Você não disse que ia viajar hoje?", bradava. Respondi que sim.

Estava de malas não-arrumadas. Destino: Algum Lugar. Decidi isto, desde que entrei de férias. Preciso espairecer a mente, pois 2010 não foi um ano fácil. E se escrevo este texto, neste exato momento, é porque perdi o ônibus que passa aqui pela manhã com destino a. Mas, tudo bem, o tempo passa e não existe apenas um ônibus no mundo. Vou sozinho, levando na mochila um livro.

Eu não sei onde quero chegar escrevendo este texto, mas sei que não é no que é "acabado". Quero, sim, que ele seja recomeço, que balbucie ventanias por mundos distantes, que me sirva de alento sempre, que me encaminhe por paraísos não descobertos nesses idos iniciados novamente. O que eu quero, na verdade, é que seja ele, só. Um texto, por simplesmente ser ele mesmo, e que eu, aqui, o seu escritor, pudesse calçar palavras por muitos "onzes" que, sei, ainda vingarão.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Leituras


Por Germano Xavier

Para começo de conversa, é preciso salientar que o poeta Gregório de Matos tinha absurda e considerável ciência acerca do que produzia. É necessário uma boa dose de vivência para que um determinado escrito consiga elevar-se como obra e conquistar outras dimensões de significação e representatividade. Ele, o "Boca de Brasa", é um retrato fiel da idéia de que a vida imita a arte, ou o inverso. Gregório viveu, comeu e bebeu do seu tempo. Para Alfredo Bosi¹, o bardo "é mais do que uma figura e um autor porque retrata, sob muitos aspectos, e tipifica, em quase toda a sua obra, o meio e o tempo". E quando voltamos o nosso olhar à retratação da figura feminil em sua obra, cuja autoria é ainda bastante polemizada, não acontece de modo discrepante. Analisando os poemas propostos para o devido estudo ("RETIRA-SE DESDENHOSA DO POETA PARA HUM SOLDADO DE CUPIDO A TEMPO, QUE ELLE FAZIA O MESMO COM ANNICA" e "EPITAFIO À MESMA BELLEZA SEPULTADA"), percebe-se claramente um posicionamento ideológico baseado em extremismos. De um lado, a visão essencialmente preconceituosa da mulher negra - diante da questão, Gregório não titubeia, e escreve com a inicial maiúscula o termo "mulata". O destinamento e a evidência de um racismo é por demais escancarado. O poema tem como enredo, se assim pode-se aferir, um troca-troca envolvendo duas mulheres e dois homens. As mulheres, aqui, são negras e vêem-se traduzidas à míseras mercadorias ou produtos de negociação. O poema primeiro se desenvolve, do início ao fim, numa atmosfera densa, marcada por uma tensão que envolve os paradigmas do "ter", do "poder" e, mormente, da eternidade das relações humanas. Comparado ao segundo poema, este apresenta-se totalmente encaminhado sobre um território ameno, livre de aturdimentos e tensões, fluido e mais contemplativo, uma vez que o seu destinatário é uma mulher de pele alva, portanto digna1 dos mais altos congraçamentos. O poema expõe uma linguagem mais coloquial, chegando a beirar a vulgaridade, aproximando-se de um erotismo encadeado por expressões e jogos de palavras por demais singulares. Para corroborar da idéia de aproximação do que é popular através do uso de uma linguagem diferenciada, Bosi² vai dizer que "não menos interessante é o estudo da contribuição de Gregório de Matos para a aproximação entre a linguagem literária e a linguagem popular, pela maneira como introduziu em suas composições não só palavras até então proibidas ou vedadas ou mal-aceitas como expressões de uso comum". Dedicado à Dona Ângela, a comparação elogiosa concebe à personagem um caráter de gigantismo e de inesgotável estima. D. Ângela, mesmo morta, é possuidora de uma beleza quase inefável. Aqui, a dualidade temática "vida X morte" faz-se demasiado presente. Eis, pois, poemas comprimidos em antagonismos, dum poeta-marco do Barroco, que pouco soube fingir a inverosimilhança das relações, das coisas e do mundo do e no seu tempo. Já no poema árcade "VI", de Cláudio Manoel da Costa, o homem consegue, após consideráveis embates, encontrar-se. E é a natureza, o ambiente bucólico, o fator que ilumina o ser. Nela, sendo-a e estando inteiramente entregue a ela, o homem encontra a necessária paz e a vida harmoniosa, pautada numa lida ponderada, racional, sem aflições. Já no poema barroco "AO BRAÇO DO MESMO MENINO JESUS QUANDO APPARECEO", o humano confunde-se com a própria parte e o próprio todo conflituoso. O linguajar, o modo como a palavra e a imagem são confeccionadas transforma-se em mais um entrave para a compreensão, impedindo o suave transcorrer da leitura por parte do leitor. E assim vamos...

1- P. 86/ 2- P.87
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo. Cultrix, 1970 – 44ª ed., 2007.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Comunidade


Por Germano Xavier

Homens de norma.
Homens de morna língua,
cobras-Norato sem escamas.
Homens sem amas, sem peitos, sem mamas.

Homens sem camas,
na lama.

Homens sem gana, descamados.
Desengrenados, homens-ladeira.
Homens-engano. Homens sem peixes,

homens-aquário

sem o riso dos rios, sem a obediência
das lágrimas. Homens sem Natal,
sem

a fatal idade das sortes.
Homens fardados. Homens fortes?
Homens pardos, enfadonhos,
parcos, poucos, porcos,
passam

imunes.
Homens pastos, homens pastam.
Homens ignorando homens,
homens deixando de ser
o que tem.

Homens armados. Homens amados?
Homens sem alma, sem arma
alguma.