domingo, 28 de junho de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte V)

*

Viana, meu amigo, 

Aqui estou eu de volta, mandando as melhores horas de sábado para ti!

O calor de Lisboa é hoje sufocante, embora uma leve brisa se faça sentir de vez em quando. Sob um sol de 33º logo pela manhã já hoje andei muitos quilómetros, por lazer e por obrigação. A humidade é pouca, a gente não transpira, e entrar numa loja de rua pode parecer um oásis. Na azáfama das compras semanais cruzei-me hoje com um senhor idoso, algo libidinoso, conhecido de há muitos anos aqui neste satélite de Lisboa. Eu estava entre as três senhoras encostadas ao balcão de um café, sorvendo uma água geladinha, quando ele exclamou, com os olhos brilhando de volúpia: se eu fosse mais novo, não saberia qual das três escolher. E depois, com um já mais pesaroso e nostálgico, rematou: Quando eu era novo era sempre “a aviar!”. (lembrei-me de um magnífico personagem de um filme brasileiro, que dizia: o problema não é ser velho, o problema é ter sido novo). Olhámos as três com desconforto para o senhor mas depois não pudemos evitar uma gargalhada. A sexualidade na terceira idade já é olhada com desconfiança, mas a sua expressão verbal desta forma tão crua e rude consegue parecer assustadora. Homens e mulheres são realmente bichos diferentes, pois uma mulher de “certa idade” jamais se vangloriaria de ter tido incontáveis parceiros, conquistas, ou o que se lhe queira chamar, durante a juventude, sem parecer promíscua ou leviana. Pelo menos por estes lados, neste recanto à beira-mar plantado! Imagino que aí não seja muito diferente. 

Agora que o calor amainou, eu estou aqui a reler com vagar a tua carta, e de cada vez que a leio aí encontro histórias novas. O que escreveste não mudou, só o meu olhar te altera o texto. Entendo bem essa tua paixão pela Olivetti Lettera, tanto que entendo que até a chamo já também pelo nome. Ela não foi para ti uma simples máquina de escrever, mas uma companheira da qual conheces cada milímetro de pele, cada tecla e cada sílaba, e a quem continuas a dedicar um amor constante e protetor. Eu acho muito curiosa essa fixação que as pessoas têm por certos objetos, já vi muita gente cuidar do carro ou da moto melhor do que da mulher ou marido, já vi um homem adulto gritar em fúria porque descobriu um risco no carro da espessura de um cabelo de bebé e não mais longo do que um grão de arroz. Outros ainda têm esse amor zeloso por computadores – conheço quem não tenha sequer um copo de água ou café a menos de 50cm de um, por medo do líquido se derramar. Eu nunca tive uma proximidade tão grande com objetos, embora perceba. Talvez apenas por alguns livros, por lápis-de-cor e papel de cartas, quando miúda. Ainda hoje gosto de pôr o livro que estou a ler debaixo da almofada e encontrá-lo ao acordar. Concordo plenamente contigo sobre o encanto de certas coisas antigas, tecnologia analógica que na altura não chamávamos assim porque era a única que tínhamos. Mas também acho que isso se deve ao distanciamento no tempo, faz-nos ver tudo de uma maneira romanceada e idealizar certos hábitos, objetos e lugares que se calhar eram banais, mas o tempo tem esse efeito sobre a nossa memória; e, de certa forma, ainda bem, seria muito aborrecido se as recordações viessem carregadas com uma nota de neutralidade. 

Também te digo que para mim a música é essa libertação que descreves. Ela está presente em todos os momentos da vida, contextos alegres, trágicos, formais ou informais. Na vida religiosa ou na vida pagã. Eu canto no banho, canto na minha cabeça, quando espero pela consulta do dentista (às vezes durante, também!). Eu trauteava músicas, muita bossa nova e também Chopin e Beethoven , enquanto esperava, há 23 anos atrás, pela hora do parto. Acho que isso fez a hora chegar mais depressa, infelizmente depois adormeceram-me e tive de parar de cantar! Eu cantei muito para a minha filha durante a infância até que ela me começou a corrigir a desafinação e aí passei a cantar mais sozinha…mas é sim, sem dúvida, uma libertação, que gera vida e dá cor aos dias. Por vezes escrevo ouvindo música e deixo-me empolgar a pontos de me levantar para dançar. Aí mudo de registo, mas sempre acompanhada pela música. 

Olha, sobre a Elba e as festas populares em Caruaru, fiquei preocupada mas não surpreendida quando me relatas a violência ocasionalmente se infiltra nesses ambientes. Aglomerações de gente propiciam roubos e facilitam o trabalho aos carteiristas. Por aqui tive a experiência recente da noite de Santo António: há um lado bonito e muito típico que é o desfile dos marchantes e toda a atmosfera envolvente com cheiro a sardinha assada, entremeada, bifanas e chouriço assado. Mas é impossível controlar as inevitáveis bebedeiras e as tensões e querelas que se geram já na madrugada, quando as pessoas circulam pelas ruas, muitas já bastante “tocadas”, com garrafas na mão e comportamentos agressivos. Eu não sei o que dizem as estatísticas sobre isso, mas há uma diferença entre os dados dos relatórios oficiais e aquilo que é sentido no dia-a-dia das comunidades. Em todo o caso ainda há dias lanchei com uma amiga italiana, e no meio da conversa apareceu-nos uma moça estrangeira pedindo para guardarmos a sua carteira. Nós acedemos, claro, mas a minha amiga disse que no seu país jamais faria isso. Nunca confiaria num estranho para guardar as suas coisas. E o contrário também pode ser ponderado, um estranho que pede para guardarmos a sua mala pode levantar suspeitas nestes tempos paranoicos em que não conseguimos confiar em ninguém com espontaneidade.

E sobre passos respondo-te no mesmo tom: “há passos guardados” e os teus nos meus serão com certeza desses de que falas com tanta beleza. 

Agradeço também por teres partilhado comigo o episódio dessa gentil senhora do supermercado: a idade dá-nos essa liberdade e esse desprendimento das coisas materiais e dos convencionalismos. Com tantas coisas que se perdem, estou certa de que se ganham também algumas, difícil é perceber como podemos tirar partido dessa condição. Mas algumas pessoas já o intuíram, e essa senhora parece ser uma delas. Eu tenho alguns episódios engraçados com velhinhas, saio sempre a perder, um pouco como o gato Tom na história do Tom & Jerry! Quando me pedem para passar e ficam com o meu lugar, por exemplo, na caixa multibanco! Acredita que é verdade, parece sina! E eu juro que dificilmente consigo reclamar diante de tanta matreirice aprendida com a idade. Só fico com inveja e procurando aprender com essas sábias senhoras. Se não viste o filme Duplex, vê-o, vais perceber do que estou a falar. Há coisas que só se aprendem com o tempo, e ser velho é uma delas.

Para terminar deixa-me partilhar contigo um detalhe que te vai deixar curioso. Amanhã eu vou a um encontro de literaturas africanas lusófonas; como eu gostaria que pudesses lá estar! Vão estar escritores de vários países falando sobre o assunto numa tenda do jardim da Fundação Gulbenkian, com a assistência sentada na relva. Se as minhas costas aguentarem acho que vai ser uma coisa bonita. Depois te conto mais pormenores…

Um beijo, já saudoso, cheirando a sábado, com o domingo a despontar no horizonte e nos mil projetos que tenho para amanhã.

Até breve, Vianinha (ops, «vianinha», a título de curiosidade, é um tipo de pão muito apreciado por estas bandas).

Clara
Lisboa, 20 de junho de 2015


*

Minha Clara amiga,

Aqui está frio, acredite. Faz frio no agreste pernambucano. Frio de fazer o corpo tremer mesmo, sem exagero. É inverno. Muita chuva nos últimos dias, fina, mas constante. E ainda em clima de São João, dos festejos, dos pipocos barulhentos e coloridos no céu, da música tradicional, da algazarra mundana, a vida que segue. Penúltimo dia de festa aqui, hoje, neste dia em escrevo a você. Muitos nomes famosos, entre cantores e bandas nacionais, vieram tocar aqui no Pátio de Eventos de Caruaru. Nomes que estão na moda, que frequentam as telas da televisão, mas que nem sempre possuem relação íntima com o tipo de comemoração que se é para fazer nestes dias aqui no nordeste brasileiro. Os jovens adoram. Os mais velhos viram o pescoço, abandonam o sorriso e vão para suas casas. O certo é que o São João de Caruaru foi mercantilizado de tal forma que só o que parece imperar mesmo é a vontade das empresas patrocinadoras. A tradição, aquela raíz bruta que se via em outros anos, está se perdendo aos poucos. Culpa de quem? Não sei. Vejo poucas pessoas acendendo suas fogueiras na frente de suas casas, as crianças não soltam mais fogos pela rua, as ruas estão escuras, não vejo a animação de antes. É apenas o meu olhar, eu sei, mas é bastante visível a mudança. 

Sobre o que me contas, penso ser deveras interessante o fato. Ainda não posso me considerar um velho, no auge de meus 30 anos, mas tenho certeza que alguma coisa muda na gente com o passar do tempo, física ou mentalmente. Eu entendo o senhorzinho, entendo você, as colocações. Há muito preconceito envolvido. Parece até que não podemos expressar vida e amor quando temos mais idade. Quem inventou isso? Eu simplesmente não aceito essa ideia. Acho a idade na mulher mais uma forma de beleza que a acomete. Vocês são incríveis. Para o homem, nem sei, mas não somos tão encantantes como vocês, donas de toda a beleza humana. Mas, Clara, o que é mesmo “a aviar”?

Ainda sobre essa coisa nostálgica de se falar do amor por objetos antigos, Clara... digo a você que meu pai sempre gostou de carros. Muito cuidadoso, sempre possuiu um bom gosto para escolher seus possantes. Lembro-me de carros emblemáticos que meu pai teve, a maioria da Chevrolet, marca predileta dele, como a citar uma Caravan Diplomata 1987 e um Opala SS bicolor 1978. Na época, eram verdadeiras máquinas! Era muito amor. Mas você sabe, com os anos, fica mais díficil de manter o que é antigo. Peças ficam mais difíceis de encontrar, especialistas somem das oficinas, enfim. Sem falar que os carros antigos, por terem motores maiores, são beberrões comparados aos “carrinhos de plástico” de hoje em dia. Creio que herdei um pouco desta fascinação nutrida por ele. A garagem lá de casa era um local de encontros e conversas. Quase tudo acontecia por lá durante o dia. Sou apaixonado por motos. Amo mesmo. Tive algumas, andei em muitas outras, motos clássicas como a “Viúva Negra” da Yamaha, motos com os incríveis motores V2, enfim... penso ter sempre uma por perto. Já escapei de quedas, caí duas vezes, venci distâncias incríveis em cima delas. Eu gosto da sensação. Motocicletas são perigosas, ariscas. É preciso respeitá-las ao máximo. De resto, é diversão na certa e vento no rosto.

Então, seu amor pela música consegue embalar você até na hora de escrever! Bonito isso. Confesso que já tentei, Clara, escrever ouvindo canções que admiro. Poucas vezes fui feliz. Perco a concentração parcialmente e a coisa toda não flui como deveria. Não consigo, só se for com muita pressão. Na hora de escrever, preciso de um ambiente silencioso. Eu me dou muito bem com o silêncio. Sou amigo do silêncio. Você já deve saber, não gosto muito de. Você me fez lembrar de um colega meu de 3º Ano do Ensino Médio chamado Paulo Thiago, um craque da física, só tirava dez. Eu, coitado, suava para tirar a média nesta disciplina. Certo dia, marcamos de estudar juntos para uma prova. Quando cheguei ao lar dele, adivinha, Bob Marley às alturas!, e ele lá fazendo cálculos mirabolantes, compenetrado. Já eu, ai, ai!

Eu queria me espantar com a situação relatada por você, Clara, nos termos da violência. Infelizmente, não consigo. É tão comum na atualidade a vista de tais situações que já não nos abocanha a estupefação diante de. Aqui, em Pernambuco, mata-se muito. Falo de homicídios mesmo. É uma questão histórica, desde já há muito revisitada pelos livros. O cangaço é apenas uma das demonstrações. Você já ouvir falar em Virgulino Ferreira, o Lampião? E em Maria Bonita? O povo daqui tem fama de “brabo”. Conhece o filme Abril Despedaçado? Se não, tente vê-lo. A película revela uma entre tantas tradições de morte que por aqui se vivenciava. O nordeste brasileiro tem muitas histórias neste âmbito. Lendas, contos, narrativas. Matar e morrer aqui sempre foi um modo de sobrevivência. Há um certo exagero no que lhe digo, mas há verdade também. Em quase todo lugar é assim, não é mesmo? A história está aí para nos contar. Cada tempo com seus modos.

Prometo que vou tentar ver Duplex. Gosto muito de filmes. De todos os tipos e qualidades! (risos) Eu não sou certo do juízo, eu sei. Vejo cada coisa, que meu deus! A curiosidade que é demais da conta! E me conte mais sobre o encontro de literaturas, Clara. Fiquei realmente curioso. Meus pais estiveram aqui comigo por alguns dias. Quase não saímos de casa. Muita chuva, como falei. Deu para matar um pouco da saudade. Meu irmão não pode vir. Saudade dele também. Foram ontem. Estou aqui só. Faz frio. O coração meio perdido. Meio triste, sabe, com algumas coisas. Muitos passos sem sentido. Eu muito mecânico. Poucos eventos me animando a alma. Vontade de fazer logo a vontade do meu coração. Tentar a verdade necessária da vida. Você me entende, Clara?

Nem sei como pude escrever tanto ainda. Hoje não estou no meu melhor dia. Fica bem, minha amiga. Um abraço em Portugal.

Caruaru-PE, 28 de junho de 2015.

__________________

Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

Poemas de Germano Xavier em Francês (Parte XIX)

*
Por Germano Xavier

"tradução livre"


Sexta-feira, 24/04/2015
Lavoura

Semence

il existe un mot qui ouvre les matins
un mot que rend hommage aux morts
un autre qui bénit les vivants

il y a toujours un mot qui est semence
qui va traverser la rue dans la musique
mêlé aux murmures des fils du Cosmos

Il y aura un mot caché dans l’attente
et un autre qui se perdra dans le frai des heures

pour chacun d’entre eux il y aura un homme
et pour chaque homme un corps fictionnel


* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/Mother-of-the-tribe-542570863

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Memórias Inventadas (Parte IV)

*

Por Luísa Fresta

Mario Benedetti


"Há uma espécie de reflexo automático nisso de falar da morte e, em seguida, olhar o relógio."
Mario Benedetti, excerto de A Trégua


Naquele dia, tu lembraste-me Benedetti e eu lembrei-me de como ele me tinha trazido a uma parte de mim que desconhecia. E disse-te, simplesmente, que ele, Benedetti, era o homem que me tinha trazido de volta à poesia.

De imediato reagiste: "Mas que coisa bonita, Luísa! Já escreveu sobre isso? Escreva!".

Eu levo a sério os desafios dos amigos, as provocações intelectuais. Sempre fui arisca a ordens diretas e nem sempre reajo bem à autoridade imposta pela força, “porque sim”, pela brutalidade, pelos constrangimentos sociais, pelas ramificações das dinastias modernas. Em contrapartida levo a sério os pedidos dos amigos, que me soam como quase-ordem, doces, irrecusáveis, empolgantes. É o caso. O uso do imperativo é aqui tido como o estímulo que me faltava para desencadear o processo de escrita, de reflexão, de busca dentro dos meus arquivos de memória, quantos dos quais recriados.

Mário Benedetti foi o responsável pelo meu regresso ao começo. Eu não gostava de poesia, que tinha abandonado há mais de 30 anos, como leitora e tímida artífice. Nas minhas estantes a poesia tinha um lugar sombrio e apagado, poetas de várias línguas épocas e estilos misturavam-se por ordem alfabética com romancistas e mantinham-me, eles, os poetas, a respeitosa distância. Passava pela prateleira com as pontas dos dedos dançando amedrontadas pelas lombadas dos livros de poesia. Algumas vezes ousei abri-los ao acaso e ler atabalhoadamente um verso. Mas a palavra prendia-se-me na garganta, o sentido colava-se ao papel e eu ficava com as mãos cheios de um vazio inútil difícil de entregar à água corrente. Sempre aquela mancha inglória nos olhos que me impedia de ler e receber a palavra em mim. Eu não estava capaz de acolher essa imensa dádiva e a palavra dos poetas não encontrava eco nos meus olhos, mas apenas um imenso mar de incompreensão e espanto. Uma ausência total de empatia, um assombro, um terror paralisante. Poesia era isso para mim: abismo e fuga, alheamento, arrepio e um gelo na espinha.

Depois veio Benedetti; não sei em que dia terei eu lido isto:

"Hagamos un trato

Compañera
usted sabe
puede contar
conmigo
no hasta dos
o hasta diez
sino contar
conmigo

si alguna vez
advierte
que la miro a los ojos
y una veta de amor
reconoce en los míos
no alerte sus fusiles
ni piense qué delirio
a pesar de la veta
o tal vez porque existe
usted puede contar
conmigo

si otras veces
me encuentra
huraño sin motivo
no piense qué flojera
igual puede contar
conmigo

pero hagamos un trato
yo quisiera contar
con usted

es tan lindo
saber que usted existe
uno se siente vivo
y cuando digo esto
quiero decir contar
aunque sea hasta dos
aunque sea hasta cinco
no ya para que acuda
presurosa en mi auxilio
sino para saber
a ciencia cierta
que usted sabe que puede
contar conmigo."

E depois li "Ustedes y nosotros" e "Historia de vampiros" e "Cuando éramos niños":

"Cuando éramos niños
los viejos tenían como treinta
un charco era un océano
la muerte lisa y llana
no existía.(…)"

Entre mim e ele firmou-se esse sólido pacto que me trouxe até hoje correndo atrás da palavra poética. O trato é simples: sabemos ambos que podemos contar um com o outro. Ele deixa-se ler, serve-me a sua palavra à sobremesa fria dos jantares formais como ao pequeno-almoço matutino dos verões, ele está sempre perto, ao alcance da minha curiosidade e do meu torpor. E eu perco-lhe o medo, sorvo-lhe a música com alegria, com surpresa, embevecida ou atordoada. Mas não fujo mais da voz que se materializa na pancada certeira dos seus versos. Depois Mario foi além do trato: ele trouxe-me outras palavras, distantes, vizinhas, correndo por águas calmas ou jorrando em tsunamis destruidores. Palavras de amor, de arrebatamento e de incredulidade; palavras simples que atam laços e outras que colam asas ao sono. Palavras duras, amargas, provocantes ou delirantes. Aos poucos fui-lhes perdendo o medo a todos: palavras e poetas. De mansinho fui chegando a Mia Couto, percebendo a melodia que desliza pelas histórias cantadas no papel, a José Luís Mendonça, que convida a uma leitura de olhos pasmados e boca aberta de sede, numa angolanidade que se desprende dos frutos, das mulheres desenhadas e das vivências. E fui ganhando coragem e ousando todos os dias um pouco mais: Verlaine, António Jacinto, Vinícius e Drummond de Andrade, meus velhos companheiros de adolescência, ajudaram-me na caminhada. Fui chegando timidamente a Pessoa, Gabriela Mistral, Alda Lara, David Mourão Ferreira e aterrei, por alturas do último natal, num Coração de Lava, de José Luís Tavares, o autor que me trouxe o magma para dentro de casa, enquanto na ilha do Fogo, em Cabo Verde, sete bocas se incendiavam com o vermelho vivo de um vulcão cansado da mansa quietude e do silêncio áspero dos anos de clausura.

Muitos outros poetas me olham agora através das palavras que inventam e que descrevem uma vida como cada um vê e sente. O movimento aldravianista de Minas Gerais; Mariem Mint Derwich, mauritana e francesa, de palavras substanciais e esvoaçantes, que descreve o universo feminino com coragem e uma poesia transbordante de cor e desejo; Edweine Loureiro, esse coração leve e redondo que serve a palavra como uma fruta fresca, uma manhã de sol ou um pão acabado de fazer, um pouco ao estilo do grande José Martí. Tu, Germano Xavier, parceiro de aventuras mil, que reinventaste a minha adolescência literária, esculpes palavras, sílabas e arritmias, narras o insólito do provável quotidiano, escreves o futuro pelas linhas tortas da imaginação, contas o inenarrável pela fluidez líquida da poesia. E muitos outros pintores de textos me abrem as janelas da sua criação a cada instante que passa.

Mas foi Mario Benedetti, e só ele, quem me fez percorrer o caminho desde o início. Logo eu que não gostava de poesia.


* Imagem: http://esquecaumlivro.com/2014/07/08/290/

quinta-feira, 25 de junho de 2015

O julgamento das almas largas (Parte I)

*

Por Germano Xavier e Camila Tebet


E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos 
por aqueles que não podiam escutar a música.

Friedrich Nietzsche

SOBRE A SENTENÇA DO DIA


a hora inversa é o propósito do tempo. ponteiros tentam a todo instante: a fuga. Poe defendia a morte como maior estação de beleza. a loucura dele. nada há de absolutismos no momento, nada de esferas azuis em função especular nos azulejam, nada pode recontar a história como o sangue derramado das crianças invisíveis. o corredor é imenso, a vida finda breve, inda insiste além, vai e vai e o que nos cerca existe mesmo? não compreendo a sentença do dia: continuamos morrendo. continuamos morrendo na tristeza mórbida dos dias, na morte que deixamos em nossas caminhadas matinais, na morte que vasculha todo o império de polifonia. o que há no coração dessas selvas por onde vagamos? se você quiser... saberemos. há um relógio em meu pulso. o que ele marca? eu tenho um segredo: não gosto da morte em você. a morte em você é sensual, furta a cor da vida. o propósito da inversão é a hora do tempo. instantes tentam a toda fuga: o homem. a loucura é uma forma de sucesso. suspeitaremos. empoleirado, o corvo de Poe nos espera. a morte é uma noite no frio, a porta que não abrimos por medo. o tempo nos empareda. nada há de momento nas certezas, nada de reflexo na cara limpa dos agoras. tudo parece acontecer no após, nada pode refugiar a aurora dentro das previsibilidades das poções maquinais: a magia está em quem se despe no quarto mofado e sorri diante do sangue derramado das crianças invisíveis como a estar num museu de carne e ossos. o inferno é constante, a violência não cessa, olhos matam, mãos ferem, mentes deturpam, pessoas gritam seus desvozeamentos, inda insiste o além, vamos e já não podemos voltar. o que existe, afinal? e a sentença do dia: continuamos morrendo. continuamos morrendo nas distâncias que nos delegam contextos de obrigação, nas deixas em quadrinhos proferidas pela mente de Guy Debord, continuamos morrendo nos entusiasmos represados bem no meio de um espetáculo diário. a tensão não justifica a posse. o reino é o sufoco. nossos discursos sociais nos desautorizam. o que há nas vagas desses corações selvagens arquitetados pelo texto de um reles indivíduo? se você quiser, menina... saberemos um dia. deixemos o tempo... o relógio em meu pulso prende meu pulso. qual a razão do pulso, da teima? você tem um segredo? carnavalizo, como todos, o gosto da vida em você. a morte em você é um adeus em mim. eu planejo me descriar. e?

A criança invisível fui eu. O sangue era meu. No museu, a carne e o osso eram meus. E o que fazer agora com isso? Era esse o meu segredo que nem o corvo de Edgard esperava.

Foram tantas vozes, tantos gritos, tantos rolos compressores que acabei nessa polifonia sem limites. Todo sofrimento foi meu e não abro mão dele. Era morte toda noite. Menti acima. Nunca tive onde me refugiar porque sou invisível. Só sangro.

A morte de um momento é mesmo uma estação de beleza. Pelo retrovisor. E continuo morrendo, seguindo a sentença do dia. Num cantar sem batuque. Num canto triste e pausado. Uma voz aveludada e sombria canta minha morte diária. Ela não me deixa esquecer que nasci para isso. Para morrer.

Os panos que envolvem minha vida/morte são sensuais e quando estou visível me escondo atrás deles. Com perfumes, incensos e luzes em cores me revelo a mais poderosa das mulheres. A que sussurra no seu ouvido o risível. Esse que é mal tratado, mas que alegra a noite.

Posso te contar? O reino me sufoca menos. Vivi, hoje, fora dele. Fugi. Como fazem todas as poderosas mulheres do reino. Elas fogem ou se sentenciam contar uma história por noite para continuarem vivas. Eu não conto história pra ninguém. Minhas histórias eu vivo e ah... como as rasgo, como as destrincho... como as alargo. Perco o folego e depois naufrago dentro delas. Faço bolhas coloridas como as que você me negou me chamando de menina.

Nada não. Nada me tira a voz. Eu grito. Eu gosto mesmo de gemer a vida. Gozar cada quilômetro rodado. Eu chego, eu vou e volto a todo minuto. Deixa disso. Esse relógio que a sociedade te deu machuca. A violência não me deixa embaixo da cana. Cresci com ela.

Das noites frias lembro cabeças batendo no vidro, de socos e pontapés. Lembro de noite que de tão escura que acho até que não existiu. Lembro de noites que o ranger dos dentes era medo. Lembro de noites que a mão em riste era a morte. E morri. Morri várias vezes. Até que fiquei louca.

A loucura é um sucesso. Pink! A loucura faz loucuras por mim. E amo cada uma delas. Giro meu vestido e danço frevo quando estou loucura. Loucura é verbo. Eu loucuro, tu loucuras e por aí vai todo mundo loucurando. E viva os maluco!

O que me cerca existe sim. Estou vendo. Olha lá o chão vermelho, a janela azul, a cortina amarela e a cama preta. Olha aí um bolinho saindo do forno. Vem tomar um café. Aí te conto por que à meia noite os ponteiros fazem amor.


* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/umyslnieII-541966115

quarta-feira, 24 de junho de 2015

Apontamentos sobre Pronúncia (Fonologia)

*
Por Germano Xavier


Na seção 37 de seu livro GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO, intitulada de PRONÚNCIA, o professor Mário A. Perini destina a discussão elaborada nas seguintes páginas de sua obra principalmente aos falantes nativos do Português Brasileiro (PB) e decide destacar algumas diferenças na pronúncia do nosso português frente ao português padrão. Para tal elaboração, Perini (2010) escolhe elucidar essas problemáticas da língua falada a partir de como se pronunciam as suas respectivas formas ortográficas.

O autor inicia suas profusões explicando ao leitor um pouco do funcionamento do português, sua organização gráfica geral, além de explicitar alguma parcela acerca das bases de pronúncia das palavras. As bases da ortografia, segundo Perini (2010), são fonológicas e, por serem assim, representam a pronúncia com uma aproximação evidente, com poucos casos que podem apresentar dissonâncias nesta natureza do saber linguístico. 

Algumas exceções imersas nesta pronunciação que fogem à regra podem ser citadas a tomar em vista: 

1) a pronúncia do e e do o tônicos, quando não acentuados nem parte de um ditongo qualquer (pera, fera, sopa, réu, dói, réis); 

2) a pronúncia do e e do o átonos pretônicos (perigo, tesoura, cegonha, telinha); 

3) a pronúncia de s como [s] ou [z], quando depois de vogal nasal (pensar, trânsito, subsídio); 

4) a pronúncia ou não do u depois de q ou g e antes de e, i (tranquilo, aquilo, aguentar, guerra). 

Estes são, para Perini (2010), os casos em que as formas ortográficas não imprimem pistas satisfatórias no intuito de não se apresentar alguma inconsistência na relação direta em ortografia e pronúncia.

Logo após elucidar tais conflitos, Perini (2010) entra em mais detalhes sobre as consoantes – e aqui também os dígrafos -, demonstrando ao leitor as possibilidades de pronunciação das palavras. As representações de pronúncia voltadas ao uso do NH, do T, do D, do R, do L, do M, do N, do X e do W voltam-se para os usos mais empregados no sudeste brasileiro, aliás, região que norteou a análise da maioria das apreciações presenciadas no referido livro, bom salientar.

Feito isso, Perini (2010) envereda-se pelo campo da pronúncia das vogais, agora salientando o sistema de acentos (primário e secundário) como também situações de uso do e e do o, além de se ater ao fenômeno do ensurdecimento vocálico quando no final de enunciados. 

Adiante, na seção 38 de sua GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS BRASILEIRO, Perini (2010) tece investigação acerca dos FENÔMENOS NÃO MARCADOS NA ORTOGRAFIA – título do capítulo -, que nada mais são que situações de uso da língua que são presenciadas na fala, mas na escrita não são representados de nenhuma forma.

Diante de tais ocorrências, o pesquisador deixa claro os contextos de uso diferenciados dos proclíticos (Ele bateu em mim = Ele bateu ni mim), do verbo (es)tar (Ele estava em cima da cama = Ele tava em cima da cama), cuja primeira sílaba é geralmente omitida, da partícula negativa não (com sons diversos), dos sufixos de gerúndio, das formas de 1º pessoa do plural e do pronome pessoal você.

Em última observância, ainda na seção 38, Perini (2010) elabora visões sobre os fenômenos conhecidos como Sândi (junção de palavras), a citar os casos envolvendo elisão (casa amarela = casamarela) e haplologia (Faculdade de Medicina = faculdadimedicina), fechando com uma menção ao uso das contrações na língua portuguesa brasileira. 


BIBLIOGRAFIA

PERINI, Mário A. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2010, p. 339-358.


* Imagem: http://chuvadeideias.concatena.org/2015/04/17/a-escrita-e-a-tecnologia-que-mais-define-e-distingue-o-ser-humano/

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Um olhar sobre ELES ERAM MUITOS CAVALOS, de Luiz Ruffato

*
Por Germano Xavier


AS RELAÇÕES ENTRE COTEXTO E CONTEXTO A PARTIR DE EXPRESSÕES COM MARCAS DE ORALIDADE NA OBRA ELES ERAM MUITOS CAVALOS, DE LUIZ RUFFATO


INTRODUÇÃO

Este ensaio pretende traçar um pequeno panorama acerca das relações existentes entre o cotexto e o contexto em excertos constituídos por marcas visíveis de oralidade presentes na obra literária ELES ERAM MUITOS CAVALOS, do escritor mineiro Luiz Ruffato – no original, o título do livro aparece grafado em letras minúsculas.

O presente estudo ganha relevância por inúmeros motivos, haja vista que a pesquisa dialoga com conceitos e elementos os mais variados que envolvem o imenso campo de investigação da Análise do Discurso, assim como dos mais recentes debates acerca das ligações entre Oralidade e Escrita, passando também pelas preocupações instauradas pelo ramo da Multimodalidade Textual e, por fim, por se tratar da premiada obra deste que é, para muitos críticos da atualidade, um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea.

DESENVOLVIMENTO

É bastante amplo o panorama atual sobre a percepção histórica do “senso de contexto” em voga a partir e, também, durante o florescimento de diversas esferas do saber humano. É isto o que o estudioso holandês da língua Teun A. van Djik (2012) vai propor aos seus leitores logo na introdução de seu livro intitulado de DISCURSO E CONTEXTO: UMA ABORDAGEM SOCIOCOGNITIVA.

A literatura, como campo de produção e sedimentação de discursos – e aqui, a saber, estamos a falar de contextualizações e cotextualizações -, invade, pois, tal discussão e se promove dentro da atmosfera por vezes caótica das ressignificações hodiernas em vista de tudo e de todos, em demandas diversas de ordens também essencialmente plurais. 

Parte inconteste dos textos que são produzidos em nossos mais recentes dias e que são rotulados como sendo textos de literatura ou, ainda, textos literários não podem nem deviam ser taxados a uma caracterização literária apenas e simplesmente, fator que pode prejudicar o olhar sobre o referido objeto, impossibilitando abordagens mais nítidas e eficazes. 

Textos repletos de intertextos, com apetrechos e inserções multimodais, cujas referências extrapolam o senso comum, são cada vez mais visíveis nas estantes das livrarias e, para muitos pesquisadores, representam um verdadeiro jardim de delícias pela potencialidade de imersão e pelas possibilidades de estudo, que são inesgotáveis. 

A obra ELES ERAM MUITOS CAVALOS é dotada de um constructo narrativo repartido, fragmentado em 70 petardo-retalhos textuais, em tributo à cidade de São Paulo, megalópole por vezes inapreensível que acolhe e também expulsa. Quem o lê, logo percebe que se trata de um livro com estrutura singular, diferenciada, organizada num espaço de e para a fomentação de desordens estilístico-semânticas. 

O livro em questão, por natureza dinâmico e múltiplo, faz do leitor mais um personagem da possível trama, como se a inscrevê-lo automaticamente num retalho extra: o de número 71. Para a sua composição, o autor se vale de registros literários e não-literários, por assim dizer, sendo possível entrar em contato com textos ao melhor estilo publicitário, cinematográfico, musical, descritivos, narrativos, poéticos entre outros moldes.

Incontáveis são os teóricos e pesquisadores que se aninham ou se aninharam pelo mundo afora na tentativa de desvendar os segredos do texto plurilinear, ou seja, do modelo textual detentor de múltiplos sentidos, dotado de ramificações, conexões extras e possuidor de competências e aberturas próprias e várias, tanto ao que meramente tange o suporte quanto aos processos de significação utilizados em sua produção.

Assim, numa observação inicial, o texto de ELES ERAM MUITOS CAVALOS, nutre uma característica marcante do texto – e também do homem - contemporâneo, muitas vezes ligado apenas aos textos de suporte informático-digital, já que se encontra e se move dentro de um arcabouço de multimodalidade, posto que é um material produzido em camadas e por conseguinte tido como um produto segmentado, composto por etapas de construção bem definidas.

Todo texto carrega em si um projeto de inscrição, isto é, ele é planejado, em diversas camadas modais (palavra, imagem, diagramação, etc) e sua materialidade ajuda a compô-lo, instaurando uma existência, desde a origem, multimodal. Um texto é resultado de seleções, decisões e edições não apenas de conteúdos, mas de formas de dizer (RIBEIRO, 2013, p.21).

Na profusão e difusão de novas modalidades e de modos de produção textuais, híbridos e transversais, cada vez mais vivos dentro das sociedades, a escrita de Luiz Ruffato em ELES ERAM MUITOS CAVALOS termina por fazer, também, com que o leitor enverede por uma nova experiência de leitura, pronunciada nas ideias dos multiletramentos - e das polifonias -, visto aqui não apenas no âmbito do hipertexto, mas do texto impresso também.

Como bem aponta Dijk (2012), entender o discurso é antes realizar a compreensão texto/conversação-em-contexto. Com base nesta premissa, vejamos os excertos abaixo, retirados do livro de Ruffato:

“- Num falei?” (p. 17)

“- Dá dinheiro, né?” (p.17)

“E gente inda consegue dormir; meu Deus, a bocona jacaroa, até ronca!, até baba!, comé que?” (p.18)

“indignação ah ah ah” (p.26)

“Estraga o teclado... Esse farelinho aqui ó, trava tudo, uma bosta! E se cai Coca-Cola então, puta!, aí fodeu!” (p.43)

“Falei com a patroa, ela disse, Quê isso, Claudionor!, Claudionor sou eu. Quê isso, Claudionor!” (p.74)

“A gente vinha lá dos lados dos Perus, da casa de um mano nosso, aí a gente veio andando, porque já num tinha mais busão, a gente veio andando e papeando, tá ligado?, aí a gente viu aquela montoeira de caixote empilhado, desacreditamos, aí o Esqueleto falou, vamos derrubar?, aí o Ziquinha falou, vamos nada, vai dar merda (...)” (p.116)

Tomando como ponto de apoio os excertos supracitados do livro de Luiz Ruffato, logo corroboramos da ideia de Djik (2012), que defende que a natureza do contexto é múltipla. O pesquisador em destaque salienta que não há uma maneira eficaz para elucidar e identificar um conjunto cotexto-contextual de único nascedouro. 

As bases da criação de Ruffato são diversas, baseadas em vivência única e momentos particulares de observação. Portanto, um movimento essencialmente de interação social e, ao mesmo tempo, profundamente individual.

Em defesa de questões ligadas ao fator interação social dentro das ambientações de gênero e de escrita, BAZERMAN (2007, p.119) vai dizer:

Todo momento insere e revigora momentos prévios. Isso é verdade também sobre este momento em que eu escrevo e você lê, e a tênue conexão entre eles. Definir um momento é perceber uma estrutura para o antes e o agora e agir sobre essa percepção, compreendendo-a, assim, como um ato social que influencia o futuro. O ato momentâneo implica intencionalidade dentro das construções pessoais de uma situação histórica em evolução. O escritor ou falante apresenta um universo dinâmico para o leitor ou ouvinte reconstruir ativamente dentro do universo dinâmico do receptor.

Por ser um elemento que tanto pode atender às demandas subjetivas de cada indivíduo que se sujeite estar diante de um dado fenômeno de uso da língua quanto a qualquer formação de elaboração linguística de construção sociointeracional de base coletiva, a concepção de contexto aqui envolvida – leia-se, na obra de Ruffato - tende a arrecadar condições de atuação não simplórias. A natureza do contexto, nesse ínterim, pode ser facilmente considerada como mutacional.

Os excertos da obra de Ruffato, escolhidos e supracitados neste ensaio, reafirmam que os fenômenos de uso da língua que relacionam os cotextos aos contextos dentro da relação oralidade-escrita são, como na visão de Dijk (2012), realçados no que dizem respeito aos seguintes modelos de entendimento: Os contextos que podem/poderiam ser identificados para estudo mais detalhado são construtos subjetivos dos participantes - neste caso, produzidos pela participação ativa do autor frente ao mundo que o cerca. 

Os contextos, vistos assim, sob o prisma da relação autor-leitor, podem ser entendidos como sendo experiências únicas. Os contextos, pelo caráter experimental que abarcam, são também modelos mentais de desenvolvimento progressivo. 

Sobre o momento individualmente percebido que ajuda na construção de todos os principais elementos da relação cotexto-contexto, BAZERMAN (2007, p. 128) afirma:

Para cada indivíduo, a vida desdobra-se em uma série idiossincrática de momentos dos quais se participa da melhor forma possível e de onde se parte com percepções sobre o mundo, eventos e consequências das ações. A partir da sequência de momentos, desenvolvem-se hábitos, práticas e concepções que dão forma a comportamentos futuros e constrói-se a um senso do self, uma autobiografia e uma visão do lifeworld.

Lifeworld, para constar, é um conceito de Husserl que significa o mundo “como vivido” antes de alguma representação ou análise reflexiva.

CONCLUSÃO

Os contextos em diálogos com seus enunciados escritos (cotextos) com marcas de oralidade na obra ELES ERAM MUITOS CAVALOS, de Luiz Ruffato, devem ser percebidos como um tipo específico de modelo da experiência do autor. São também, por conseguinte, esquemáticos, pelo fato de obedecerem a um regimento elaborativo, de nuances múltiplas, variadas e variantes, controlam as suas próprias produções, suas respectivas compreensões do discurso e ainda apresentam bases sociais de conflito. 

Os contextos possíveis para estudo a partir da obra acima citada são dinâmicos, amplamente planejados, o que contorna qualquer indício de obviedade na construção discursiva da narrativa, fator que a coloca em patamar avançado em termos de caracterização literária. O presente ensaio, dessa forma, lança um tanto de luz para futuros e prováveis estudos sobre as problemáticas aqui debatidas.



REFERÊNCIAS

BAZERMAN, C. Escrita, Gênero e Interação Social. São Paulo: Cortez, 2007.

CAVALCANTE, M.M. Os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2014. 175p.

RIBEIRO, Ana Elisa. Multimodalidade e produção de textos: questões para o letramento na atualidade. Santa Cruz do Sul, v. 38, N. 64, p. 21-34, jan.-jun. 2013. Disponível em http://online.unisc.br/seer/index.php/signo. 

DIJK, Teun A. van. Discurso e Contexto: uma abordagem sociocognitiva. São Paulo: Contexto, 2012.


* Imagem:  http://www.deviantart.com/art/Releitura-Digital-280067367

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Olhares e percepções sobre intertextualidade

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Por Germano Xavier


BAZERMAN, C. Escrita, Gênero e Interação Social. São Paulo: Cortez, 2007. [Cap.03]


O capítulo 3 do livro Escrita, Gênero e Interação Social elucida, com destreza metodológica e consciência transdisciplinar, a grandeza e a relevância das questões ligadas ao conceito de intertextualidade – ou melhor, de intertextualidades – observado no todo do complexo ideário de um dos maiores nomes referentes aos estudos dos constituintes do texto na contemporaneidade, o professor Charles Bazerman, hoje pertencente ao quadro profissional do Departamento de Educação da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, Estados Unidos da América. As pesquisas lideradas por ele encontram-se, em sua maioria, voltadas para a prática e para o ensino da escrita, vista aqui numa totalidade conceitual, em um contexto de ordenação histórico-social. 

No referido capítulo, Bazerman (2007) traça de início, em diálogo com os autores que fundaram avanços importantes no quesito do entendimento das engrenagens do texto em si, a citar Mikhail Batkhtin e Voloshinov, um panorama expositivo das visões acerca dos conceitos de intertextualidade que preponderam ao longo dos avanços linguísticos gerados no seio da sociedade e, também, na esfera acadêmica. 

O autor é partidário da ideia de que o texto não é uma matéria de cunho original, mas o contrário, para ele todo texto porventura produzido é antes um elemento que se banha na existência de outros textos, precedentes e motores das e para as novas formulações textuais. Neste viés de entendimento, Bazerman (2007) estipula a condicionante de que tanto a leitura quanto a escrita relacionam-se entre si ao passo em que se escreve, numa resposta explicita e/ou não-explícita ao movimento de leitura realizado anteriormente pelo sujeito escrevente.

Destarte, pode o fator intertextualidade nos encaminhar ao desenvolvimento e ao aprimoramento de nossas práticas enquanto indivíduos e enquanto coletividade, tendo com ponto basal a produção dos inúmeros modelos textuais? Eis uma pergunta que perpassa toda a preocupação exibida no capítulo em questão. 

Ao discorrer sobre as contribuições bakhtinianas e, também, de Voloshinov, o professor busca refazer ou reestabelecer uma definição mais concreta e uma compreensão notória em cima do que realmente seja intertextualidade, suas funções e seus desdobramentos, a fim de que constructos notadamente embasados nas conjecturas histórico-sociais possam, sem titubeações ou enfraquecimentos, corresponder às mais recentes demandas dos educadores, dos pesquisadores e dos estudiosos do letramento em geral.

Apesar de algumas discussões de ordem não fundamentais para as análises aqui consequentes, Bazerman (2007) salienta a importância de Julia Kristeva para a profusão do ideal contemporâneo de intertextualidade. Ao cunhar pela primeira vez o termo intertextualidade, Kristeva acaba por ligá-lo ao conceito de rede/mosaico de citações, o que faz abrir um imenso caleidoscópio interpretativo-conceptual, porém um tanto já direcionado e devidamente realizado em suas primárias contextualizações.

Assim feito, para o autor, a intertextualidade terminaria por se conectar ao pensamento que incute ou se une a uma engrenagem por meio da qual o sujeito escrevente acaba por se escrever a si próprio dentro do fenômeno do texto social. Assim posto, seria bastante lógico pensar que é justamente o texto social que nos escreve, ou ainda, que nos escreve a uma dada noção de coletividade a partir da noção de texto.

Contraponto algumas perspectivas ora semelhantes ora diferenciadas de Voloshinov, Saussure, Bakhtin, Barthes, Riffaterre, Vygotsky e Genette, o pesquisador trilha um caminho de reconhecimento inerente aos fatores que não dissociam ou liquefazem a perspectiva de intercâmbio textual. Bazerman (2007) desautoriza-se quanto às preocupações concernentes ao status do autor e, por conseguinte, no tocante aos modos de consciência expressamente fixos à ficção, também. 

Não obstante o prezado pesquisador realizar uma espécie de reflexão a partir dos tipos de competências/habilidades e debruçar-se sobre escaramuças técnicas necessárias ao desenvolvimento dos indivíduos no interior do mundo textualmente complexo e diverso da modernidade, o autor pronuncia-se em visão confortavelmente desenvolvida e sedimentada, servindo-se de mensageiro de todo um prisma intertextual que pretende auxiliar o leitor a interpretar, avaliar e utilizar mais eficazmente um respectivo material textual.

Numa última abordagem, de natureza mais prática e visando ao auxílio frente à categoria dos estudantes e dos escritores, mormente, Bazerman (2007) imprime ênfase ao que resolveu chamar de dimensões de intertextualidade, cada qual se servindo de menções aos usos, funções e usufrutos do texto diante de suas dadas demandas sociais. Percebem-se nesta instância teórica de análise, claramente, revisitações aos campos da semântica, do cotexto-contexto e, também, da retórica e do argumento, entre outros aspectos de relevância considerável ao entendimento da gama de conteúdos que abarcam a intertextualidade. 

Num indicativo teórico que defende a intertextualidade da escrita e da retórica como processos constituídos de eventos/fenômenos múltiplos e díspares, contíguos e unidos aos agenciamentos os mais contemporâneos possíveis das necessidades e oportunidades sociais e humanas, e tudo dentro de um compêndio complexo de textos historicamente evoluídos e em transformações contínuas, Bazerman (2007), confronta-se e é confrontado ao se definir em tais encaixes, sem deixar de enunciar que se faz deveras importante a busca pela autoridade textual no momento criativo, como se para nos redimir de quaisquer espectros de ilegitimidade de ordem existencial e/ou de legado.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Apontamentos sobre o Sistema Gráfico do Português

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Por Germano Xavier


No capítulo intitulado de CARACTERÍSTICAS DO SISTEMA GRÁFICO DO PORTUGUÊS, presente no livro LINGUAGEM ESCRITA E ALFABETIZAÇÃO, de Carlos Alberto Faraco (2012), o autor explicita três objetivos pretendidos a partir da discussão gerada nas páginas aqui referenciadas. São eles: 1) revelar os princípios que estruturam o sistema gráfico do português; 2) descrever o sistema gráfico da língua portuguesa; 3) fornecer subsídios para a construção de um sistema voltado para a promoção do seu ensino.

Com os objetivos de análise traçados, Faraco (2012) começa a delimitar o seu estudo colocando em xeque a base de pensamento linguístico que dialoga com a ideia de que a língua portuguesa tem em sua representação gráfica do tipo alfabética um dos alicerces de segmentação mais básicos, o que quer dizer que toda unidade gráfica resultaria em uma unidade sonora, fator que pode variar em diferentes idiomas. Esta relação de resolução “resumir-se-ia” ao modelo dual GRAFEMA x FONEMA ou vice-versa.

Ainda neste contexto, o autor elucida que o sistema gráfico do português pressupõe também o princípio da memória etimológica e, por isso, admite como forma de fixação da forma gráfica as unidades sonoras funcionais e, também, sua procedência. 

Por funcionar assim, Faraco (2012) delimita a relação grafema x fonema e deixa margens arbitrárias para representações que fogem um pouco da mecânica normal desta engrenagem. E, segundo o autor, são justamente estas exceções à regra, que terminam por exigir estratégias cognitivas diferenciadas e apropriadas, as maiores responsáveis pelas dificuldades do aluno com relação ao processo de apropriação da grafia da língua portuguesa.

Outra característica a se notar no que tange aos elementos de estruturação do sistema gráfico da língua portuguesa diz respeito a sua neutralidade diante da pronúncia. De acordo com esta noção, as nuances da memória etimológica ficam ainda mais destacadas, o que pode representar alguma insólita situação envolvendo as aproximações entre grafia e pronúncia. 

Para entender melhor esta neutralidade do sistema gráfico, basta entender que para uma grafia pode haver inúmeras formas de pronunciação. Esta característica é tão fundamental à língua que, segundo Faraco (2012), a não uniformidade gráfica causaria um entrave à utilidade de todo o sistema de representação conhecido por nós hoje.

Sendo assim, as mudanças de ordem da pronúncia dentro do citado sistema distanciam o espectro sonoro das representações gráficas, ampliam o fator neutralidade gráfica e, por conseguinte, crias dificuldades para com os usuários da língua, porventura acostumados com situações menos “anormais” de utilização do português. 

Faraco (2012) ainda aponta algumas observações sobre as mudanças de ordem da pronúncia que podem afetar um grande contingente de pessoas ou até a população de um país inteiro, o que faria com que tal movimentação significasse uma dificuldade generalizada, sem escape para nenhum usuário da língua.
Após tal referenciação, o autor expõe sobre os dois tipos de relações comportadas pelo sistema gráfico da língua portuguesa: as relações biunívocas (para uma unidade sonora, uma unidade gráfica) e as relações cruzadas (uma unidade sonora pode ter mais de uma unidade gráfica ou, ainda, uma unidade gráfica pode representar mais de uma unidade sonora).

Deste modo, e depois de fazer uma abordagem mais geral, Faraco (2012) elabora alguns quadros de representação das consoantes, partindo da análise de relações biunívocas (as mais naturais), passando pelas relações cruzadas previsíveis (de oscilação com base nos contextos de uso) e indo até uma exposição sobre as relações cruzadas parcialmente previsíveis e parcialmente arbitrárias e terminando nas relações cruzadas totalmente arbitrárias. Por fim, elabora esboços panorâmicos acerca das representações gráficas das vogais e dos ditongos, subdividindo-os em grupos parelhos para uma melhor demonstração do todo das configurações possíveis ao sistema gráfico do português. 



BIBLIOGRAFIA


FARACO, Carlos Aberto. Linguagem escrita e alfabetização. São Paulo: Contexto, 2012, p.121-163.

sábado, 13 de junho de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte IV)

*

Viana, caríssimo amigo,

Enfim um momento a sós, entre mim e este papel virtual que te será levado por uma pomba virtual também! Cada vez temos mais dificuldade em distinguir o real do virtual, dificuldade acrescida quando se fala em “realidade virtual”. Não é preciso partilharmos o mesmo espaço físico para falarmos nem vermos alguém em tempo real, muito menos para a conversa escrita, sendo que isso já deixou de ser novidade há muito tempo. Porém, creio que restam dois desafios a superar para que a comunicação seja uma simulação perfeita da vida, da vida tangível: transmitir o cheiro e o toque à distância! Talvez neste preciso momento já se esteja algures a trabalhar nessa possibilidade, em todo o caso gosto de imaginar que nenhuma aplicação vai substituir a sensação do abraço e a mistura de cheiros quando duas pessoas se encontram e se tocam, amigavelmente ou amorosamente.

As nossas cartas, as nossas trocas de impressões escritas, são a única forma de comunicação que usamos. Por isso temos que ser bastante criativos, explícitos e até uma e outra vez um tudo- nada exuberantes para compensarmos a falta de outros tipos de comunicação, não achas, Viana?

Perdoa-me por isso algum exagero nas descrições, que seriam feitas apenas por meias-palavras e algumas boas gargalhadas se estivéssemos agora os dois diante de um café fumegante.

Agora, falando do que me contas, quando falas de Luiz Gonzaga, sabes o que me vem à mente? (canta comigo!):

"Aquela sanfona branca
Aquele chapéu de couro
É quem meu povo proclama
Luiz Gonzaga é de ouro
Aquele tom nordestino
A voz sai do coração
É ele o rei do baião, é Luiz
É cantador do sertão
É filho de Januário
É quem canta o Juazeiro
É festa, é povo, Luiz alegria
Luiz Gonzaga é poesia"

Benito di Paula. Infância. Angola. Milho. Rádio. E o mesmo cheiro a milho assado que referes…não consegui ler a tua carta sem cantar. Porque será que a música é tão importante para nós, para a nossa maneira de descrevermos a vida um ao outro? Luiz Gonzaga e todo o universo a ele associado traz-me à memória cheiros de infância, de comida, de bebida, de terra molhada da chuva, de calor. Crescemos ambos no hemisfério Sul (tu e eu) e os mecanismos que nos movem, as chaves emocionais, são bastante parecidos; sempre tive essa suspeita que venho confirmando a cada dia. 

Agora, Viana, sinto-me um pouco culpada por teres perdido uma festa para me escreveres. Preferia que tivesses estado lá, ouvindo a Elba, comendo aquelas coisas coloridas das feiras, bebendo a cor dos fogos, cheirando o ambiente. Chegarias a casa provavelmente com cheiro de fritos, de carvão e açúcar e com pássaros na cabeça, e talvez me escrevesses noutro dia, noutra noite. Talvez fossem só breves palavras, mas eu ficaria feliz por imaginar-te passeando entre O Maior São João do Mundo. Promete que não falharás outra vez contigo e deixarás solta a criança que existe em ti, na próxima festa, na próxima oportunidade. Essa comunhão com as pessoas reais, que podes tocar e sentir à tua volta é tão importante como a fusão com a natureza, que mencionas, e bem, referindo-te à Chapada Diamantina. 

Dizes-me também que amarias Portugal e eu tenho a convicção de que Portugal te retribuiria com o mesmo amor, constante e respeitoso, pela forma delicada e curiosa como abordas as pessoas e os outros, mesmo que Portugal, para ti, não seja “os outros”, mas apenas uma parte de ti mesmo com a qual ainda não te confrontaste. Quando estiveres por cá, não sei como nem quando, levo-te a beber uma mini ou uma imperial e a comer um bacalhau à lagareiro. Ou uns choquinhos com tinta, ou uma dourada escalada. “Topas?”. Depois, para digerir, um passeio a Sintra, onde descobriremos ambos, pelos teus olhos, uma vila que é património da humanidade, com múltiplos recantos dignos de interesse, o Palácio da Pena, a Quinta da Regaleira, capazes de criarem só para ti os abismos que sugam e que tanto te seduzem. Traz a família, traz o teu amor, venham todos, quero servir de cicerone e aprender a conhecer também a minha terra pelo vosso espanto e pelo vosso riso.

Irlanda e Itália? Sem dúvida belas escolham também. Fazendo uma pequena brincadeira vou dizer-te as primeiras palavras que me ocorrem, sobre um e outro país: Whisky e …ópera! 

Eu acrescentaria ainda Cuba, Cabo-Verde (Praia, Mindelo, ilha de São Nicolau…para começar)… será que estou a ser abduzida pelo encanto da insularidade? E voltar a São Tomé, logo que possa. Enquanto os ilhéus sofrem dessa vontade de partir para além do mar, poderemos nós, continentais, ser vítimas da síndrome oposta? Hummm, caberia aqui um estudo antropológico, não achas?

Gostei da tua forma de definir o meu estado de espírito, que me “estou a cabo-verdear na alma”. (Na alma e no corpo, isso sim!) Palavras bonitas e perspicazes. E não é que estou mesmo? Obrigada pela explicação sobre língua e dialeto. São questões que me perseguem ou vice-versa. De tanto nos perseguirmos mutualmente parecemos uma pescadinha de rabo na boca. Mas esta questão do crioulo cabo-verdiano é complexa e apaixonante. Ontem mesmo conheci uma senhora encantadora, que me disse com uma exclamação cheia de certezas (eu tenho muito poucas mas os meus interlocutores vivem quase sempre cheios delas): “O crioulo não é língua, é dialeto! O crioulo não tem regras, tal como o amor. Não se pode aprisionar o crioulo, nem se pode amarrar o amor”. Esta frase poderia ser confundida com um quase-preconceito algo poético e isento de maldade. Curioso é o fato de ser a opinião de uma falante nativa. Fiquei arrasada e fascinada ao mesmo tempo com tais declarações. Eu sou estudante, e os estudantes precisam de regras e de certezas, e têm pavor de ambiguidades. Eu, em todo o caso. Aqui percebi que este posicionamento é o de muitos falantes, porque não querem que a sua língua, ou dialeto, como alguns chamam, seja acorrentada a um conjunto de regras. Ânsias de liberdade ou desvario poético? Fiquei parte da noite a matutar nestas palavras, eu sou assim, que fazer? O meu professor vai soltar uma sonora gargalhada quando eu partilhar esta conversa com ele.

O amor não tem regras. Será? Amor e crioulo serão uma e a mesma coisa? Agora percebes porque por vezes tenho dificuldade em adormecer.

Olha, Viana, eu não te disse ainda que gosto do teu estilo de escrever cartas, sei que é natural, surge como a espuma de uma onda, obedece a um ritmo não estudado. Mas eu gosto, a sério. Tu não tens noção de que frases como “Sabemos.” têm para mim um impacto fortíssimo. Em tempos conheci uma pessoa que se exprimia assim e me assustava. Achava parcas as palavras, uma fuga, uma cobardia, quase um desafio. Mas agora eu gosto porque sabes usar essa economia de recursos para dizeres, sugerires e concluir. Creio que sabes dançar muito bem com as palavras e eu aprendo contigo. “Sabemos.” Quanta coisa contida nesta palavra feita oração. Talvez um dia a arrume na gaveta das coisas resolvidas. A memória das palavras pode ser dolorosa, confusa e libertadora também.

Mas o mundo dos poetas e dos sonhadores como nós alimenta-se também de fatos concretos. A lei aprovada esta semana na Nigéria proibindo a mutilação genital feminina parece-me um enorme passo positivo. Uma lei não resolve tudo mas é um começo e um compromisso com uma ideia. Uma atrocidade deste calibre não pode nunca legitimar-se por uma suposta tradição. Enfim uma lufada de ar fresco num mundo imerso em dramas e interrogações.

Viana, lembrei-me de te contar um episódio engraçado, para terminar esta nossa conversinha saborosa: um amigo meu de longa data contou-me, a propósito de cartas, que manteve até há poucos anos, com um amigo de infância, uma troca de cartas regular entre a França e o Senegal; imaginas do que falavam eles? Pois bem, jogavam damas por carta e em cada carta avançavam uma jogada. É preciso dizer que no Senegal esse jogo é muito difundido e apreciado, e através dele estes dois amigos separados geograficamente cimentaram uma relação muito próxima ao longo dos anos e das gerações. Achei comovente, esta história.

Agora eu deixo-te nas mãos do sábado esperando que possas usufruir plenamente do teu fim-de-semana, com milho, com pipocas, sol e muita música. Eu amanhã vou à feira do livro, local mágico onde se lê, se comem farturas e se sente o cheiro dos livros de alfarrabistas.

Um beijo luso e tropical para ti.
Até muito em breve,
Clara.

Lisboa, 6 de junho de 2015.



*

Clara,

O dia aqui é frio, num Pernambuco de Garanhuns, conhecida também como Suíça Pernambucana ou, ainda, Cidade das Flores. Gosto muito daqui, do clima, das lembranças que tenho de quando menino. Sabe que um dia, lá nos tempos de eu-pequeno, meu padrinho Tibiro me deu uma quantia em dinheiro como presente de aniversário, alegando que assim era melhor, pois eu poderia comprar o que eu realmente quisesse e ele, de pronto, eliminaria qualquer risco de eu não admirar o presente que ele porventura me desse – meu padrinho dizia que quando comecei a crescer, ficou mais difícil de escolher presentes... - e aí, eis que guardei o valor até o fim daquele ano, em longos 6 meses, para que quando viajássemos para o estado natal do meu pai, trajeto que fazíamos todos os anos nos meses de dezembro e janeiro, neste mesmo Pernambuco de hojes, pudesse eu comprar algo interessante para mim. 

E sim, naqueles idos queria eu comprar uma carabina de pressão para sair atirando em lagartixas no quintal – não se espante, Clara, eu não sou tão mal assim! Até que, passeando pelas ruas do centro desta cidade que nos agoras me acolhe para estudos em nível de mestrado, pude entrar em uma grande loja de departamentos. Corri para a sessão de carabinas de pressão da marca CBC. Todavia, para se chegar até as prateleiras desejadas, era preciso atravessar uma gôndola inteira repleta de máquinas de escrever das marcas Olivetti e Facit. Você já suspeita o que pode ter ocorrido naquele exato instante? Paixão à primeira vista, Clara! Paixão com amor, os dois e tudo o mais, juntos! Levei feliz para casa uma Olivetti Lettera 25 portátil de cor bege que até hoje tenho e cuido, com a qual ainda datilografo algumas linhas mais especiais. Enfim, sempre temos aqueles lugares que marcam e mexem com a gente. Garanhuns, para mim, é um.

Meu amor pela escrita foi muito incentivado pelos sons daquele teclado plástico movido pela belíssima engrenagem de metal, de som avassalador, tocado pelos dedos em movimentos firmes e calorosos, do mesmo jeito que gostava que assim o fosse nosso querido Jorge Amado. A tecnologia digital, para mim, não tem o encanto das coisas analógicas. Coisa de gente da cabeça antiga, podem alegar. Sou assim e gosto de velharias. Amo a coisa de outros tempos e a alma dessas coisas. Você fala em novos meios, e aqui estamos em carta - claro, em novas congruências midiáticas -, vivendo a mais nossas vidas, numa comunicação composta de fluidos de vanguarda e ares retrô. Vivas às relíquias humanas, aos legados, às resistências! Nossas cartas acabam se tornando nosso momento de respiro, a última pegada eterna de nossos olhos, o desejo pelo contínuo da vida que não se pode viver. Estamos, sim, num café, à deriva. E que jamais cheguemos a lugar algum!

Incrível esta ligação gonzagueada pela voz musical deste que a quem considero um mito brasileiro, o filho de Seu Januário dos Oito Baixos. Luiz Gonzaga lembra o meu pai, a quem amo com devoção em seus bem aproximados 70 anos de idade. Aquela coisa da universalidade da música, do poder de tocar as almas e os corações os mais longínquos possíveis. A música, a música!, grande beleza... conheço muitas pessoas que defendam a música como sendo a mais significante e expressiva das artes, Clara. Defendem bonitamente, com argumentos demasiado interessantes. Eu escuto, faço sim com a cabeça, mas fico meio assim, meio acolá-pra-lá, pensando, pensando se. Mas é mesmo uma coisa linda sem a qual a vida seria bem menos atrativa. A música é, como muitas outras manifestações de arte, movimento de elevação, vento que nos leva para, que nos tira de onde estamos enraízados, presos. Vejo a música como libertação. 

E não, não se preocupe, mesmo. Eu não perdi a festa. Elba Ramalho sempre vem por cá dar o ar de sua graça. Sempre tenho a oportunidade de vê-la entoar seus cantos e encantos. Está tudo bem, e mais, escrever-te é também uma festa, das mais queridas por mim. Falar a verdade, Clara, não gosto muito de muvucas, sabe, sou de preferir movimentos menores, com ares de mais novidade para mim, sem falar dos riscos de se ir para uma comemoração dessas proporções aqui em Caruaru-PE. É muita, muita gente mesmo, de todas as partes do Brasil, ladrões saem das tocas, mortes acontecem, vejo nos noticiários... o negócio não está muito tranquilo por aqui em termos de segurança social. E aí, como vai seu lindo Portugal em quesito tão fundamental, Clara?

E essas nossas errâncias mundanas, querida minha, a nos mexer nos nervos da vida? Eu que já parti para tantos futuros que nunca me aconteceram, que já vivi sonhos que nunca se realizaram, que já tombei dentro de penhascos do mundo que me imundaram, que tiraram de mim parte de minhas forças, mas que por incrível que possa parecer não me impediram de sempre me erguer com uma vontade de não ser para sempre um perdedor. A vida foi me guiando em minhas perdições, e sempre, sempre mesmo, logo quando eu menos esperava, luzes me iluminavam os caminhos. Eu, só tinha de ir. Quando você me fala de seu Portugal, eu me animo. É partida. Sou feito delas. Assim como de permanências. Partir é sempre em mim. Quero, digo logo, quero conhecer sua terra, que é também parte da minha terra, e parte importante! Não sei quando nem se com alguém, mas pisar meus pés aí não será de tanto o maior dos esforços. Haverá o dia de me espantar contigo, bote fé. Há passos guardados.

O sono, quando mais jovem, não me servia de nada. Passava 20 das 24 horas dos dias acordado, quase sempre lendo e escrevendo. Não me faziam falta as horas. Hoje, sinto falta dos sonos. Tenho muita dificuldade em dormir, Clara. E quando durmo, é muito levemente. Muitas vezes não dormia por conta de minha mente estar em outros mundos, conectada a fios invisíveis da mãe-literatura que me desautorizavam o desligamento e dificultavam consequentemente meu retorno à Terra. Por isso, entendo perfeitamente os seus estados insones. 

Este meu jeito de escrever, Clara, vem de minhas tentativas as mais simplórias de me enveredar por este meu Amor: a Literatura. Aprendo tanto lendo, e nesse aprendizado incluo você e seus textos, que me ensinam. Li tanta coisa, mas li tão pouco ainda. Minhas palavras são somente vontades e esforços. Elas dizem muito de mim, acredite. Fico extremamente feliz por suas observâncias, Clara. Tudo é tão comum em mim que confesso a você não suspeitar de tais detalhes por vezes. Mas não é bem assim que fica interessante? Sigamos, pois, e um salve aos nigerianos, pela conquista. É tanta coisa maligna neste nosso mundo que pequenos alívios assim devem ser comemorados como se fossem míticas vitórias. Torcer agora para que a lei seja cumprida. Torcer.

Termino minhas linhas de hoje, Clara, oferecendo a você uma visão bonita que tive esta semana: ao me direcionar ao caixa de um supermercado num começo de noite lá na Cidade-Jardim, outro nome de Garanhuns, posicionei-me logo atrás de uma senhorazinha ali no auge de seus oitenta e tantos anos de idade, vestes de lã devido ao frio intenso, pequena bolsa de couro em umas das mãos, óculos de lentes grossas, daquelas vovós da gente bem apertáveis em carinho. Ela, pagando suas compras, começou a reclamar não sei do quê com a moça que estava no caixa. Foram longos segundos ali, entre olhares e dedos em riste, gerente da loja se aproximando pelas beiradas e eu lá, de observador indiscreto. O bonito foi o depois, quando ela enfim virou-se e começou a sair do estabelecimento. Como não suportava o peso das sacolas, por gentileza o empacotador se ofereceu em auxílio até onde pudesse ir. Ela, nem aí para nada, parou na última pilastra do grande galpão, olhou para o céu nublado e em chuviscos, tirou do bolso lateral um maço de cigarros e acendeu com gestos bem lentos e singelos, como a dizer ao moço que a aguardava já do lado de fora com as sacolas: “A pressa, meu gentil amigo empacotador, a pressa não é nada diante deste céu denso repleto de mistérios que agora povoa nossas cabeças!”

Jogaremos nossas damas, Clara, como seus amigos. 
Palavras são pedras de damas em xadrez de sentidos. 

Abraço você daqui.

Num 13 de junho de 2015, num Pernambuco em fogos de artifício.
Caruaru-Brasil.


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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.