domingo, 24 de setembro de 2023

Viver sobre duas rodas


 

Por Germano Xavier


Poucas pessoas no mundo sabem ou desconfiam que tomei gosto pela leitura, pela leitura mesmo!, lendo – “devorando”, seria o melhor termo - revistas sobre automóveis e/ou assunto semelhantes, como motociclismo, antigomobilismo, automobilismo... Numa época ainda desprovida de computadores e sem a febre atual dos smartphones movidos à internet de fibras ópticas e bandas largas, ler o que víamos ou tínhamos acesso nas bancas de revista ainda era uma espécie de solução rápida e menos custosa.

            Não sei precisar qual foi o ponto de partida, mas o certo é que era sempre uma espera ansiosa pela próxima revista do mês, que chegava ali no interior baiano um pouco antes que nas bancas. Essa era a grande cartada para se optar pelas assinaturas anuais ou bianuais. Eu tinha as minhas preferidas: Quatro Rodas e AutoEsporte. Foi no fim de minha infância e no início da adolescência que comecei, então, a curtir a ideia da liberdade e da velocidade, como elementos de prazer e de “desobediência civil”, claro, anos mais tarde aflorados no imaginário e nas ações cotidianas.

             Apesar da maior parte das leituras terem sido sobre carros, foi a motocicleta a grande paixão adolescente daqueles idos. A moto era, por assim dizer, um sonho bem mais próximo, diria. Alimentei o desejo de possuir uma até o momento em que comecei a ganhar meus primeiros centavos de Real na vida como professor. Foi quando, num dia bonito de minha juventude, saí com uma motocicleta novinha em folha de dentro de uma concessionária na cidade de Jacobina-BA. Nem bem terminei de assinar toda a papelada, caí na estrada com ela.

            Lembro-me do coração feliz dentro de minha caixa torácica, do vento na pele, da pista passando rente aos meus sapatos gastos, eu me sentindo como a me mover num tapete mágico como daqueles dos melhores e mais famosos contos da Arábia... Aquele dia está, sem dúvidas, entre os dias mais felizes da minha vida. A sensação era quase indescritível e só saberá medi-la quem já passou por algo semelhante envolvendo o mesmo assunto e mesma maquinaria. Podem falar o que quiserem, mas a moto é sim uma invenção fenomenal – e fenomenológica, por que não? - em todos os seus simbolismos intrínsecos, até mesmo quando o debate se cerca dos perigos que envolvem tal veículo.

            Mas não seria tão gostoso andar de moto se não fosse ela, a moto, um risco móvel ambulante. Gostamos do que é arriscado, do que nos causa medo, daquilo que, porventura, tira-nos do sossego ou daquilo que nos apavora, de certo modo. São muitos e diversificados os clichês que englobam moto e motociclista, mas nem sempre precisamos tê-los como manifestações erráticas ou errôneas sobre quem faz do motociclismo parte do seu inteiro-viver. A própria expressão “viver sobre duas rodas” é baliza para inúmeras problemáticas e para egos feridos, óbvio.

            Todavia, acredito que a “vida sobre duas rodas” tem sim os seus encantos e privilégios. No instante em que aceleramos nossas motos, tornamo-nos senhores dos caminhos e enfrentamos ventos, chuvas, todos os tipos de obstáculos ou acidentes geográficos. A possibilidade de nos mover e de transportar nosso corpo e nossa alma para os lugares mais comuns, incomuns ou os mais distantes é por si só uma das maiores maravilhas do estar vivo no mundo, do estar-com-o-mundo e do ser-no-mundo. Sobre uma moto, ouvindo o ronco de um motor cujos pistões sobem e descem logo abaixo de suas pernas, explodindo o combustível que lhe resta, o que impera é apenas o ir e, só depois, o chegar. Cada ida é um medo vencido. Cada chegada, uma nova pessoa feita dentro de si, mais forte e mais poderosa.

            Sou motociclista desde os meus tenros anos de adolescência, agora muito mais compenetrado e sabedor de todas as consequências e temores que abarcam tal prática e gosto. Menos eufórico, mais consciente. Mas ainda louco pela estrada e por todas as suas bifurcações, metafísicas e metafóricas. A estrada é o inimaginável, o esconderijo dos destinos incertos, a mãe de todas as paisagens. Para se chegar a algum lugar, é preciso sempre atravessá-la. De preferência, sem pressa, claro. A estrada, como uma lei, atinge-nos, ataca-nos, sem piedade. A estrada pede, dia após dia, que a vençamos. E, principalmente, que não a menosprezemos. Ser a estrada, eis o segredo.


* Imagem: https://blog.pantaneirocapas.com.br/estradas-para-andar-de-mota/

terça-feira, 12 de setembro de 2023

CRIANÇAS NA ESCURIDÃO, de Júlio Emílio Braz


 

Neste vídeo, o professor e escritor baiano Stenio Erson fala sobre o livro CRIANÇAS NA ESCURIDÃO, de Júlio Emílio Braz.

#criançasnaescuridão #júlioemíliobraz #stenioerson #canalliterário #oequadordascoisas

sábado, 9 de setembro de 2023

Novos movimentos


 

Por Germano Xavier


Conto para todos - quando tenho a oportunidade, óbvio - que saí de casa com 14 anos de idade. Numa tarde já bem distante no tempo, esperei meu pai terminar o expediente em seu consultório odontológico situado numa pequena cidade da Chapada Diamantina, e pedi que escutasse o que eu tinha para lhe dizer naquele momento. Era um pedido. “Painho, quero estudar em um lugar que ofereça uma educação melhor do que a daqui”. Eu queria realmente sair, rumar mundo, criar novos movimentos. Estava entrando no Ensino Médio e a hora era justamente aquela.

Lembro-me do meu pai ali sentado, cansado de um dia cheio de trabalho, mas escutando meu incomum pedido. “Tudo bem, Germano, vamos pensar sobre esta possibilidade”, disse-me, levantando-se para ir tomar o seu banho e se preparar para o jantar. Meu pai não era de mentir. Se ele havia dito que ia pensar sobre o caso, é porque ele realmente iria pensar sobre o caso. Aquilo me apascentava, acalmava-me os ânimos de menino desejoso por bons estudos e um melhor “futuro”. A situação que meu irmão mais velho enfrentava na escola estadual da minha cidade natal à época, com muitas aulas vagas e muita falta de estrutura educacional, fizeram-me atentar para o desejo de sair dali e querer estudar em um local mais bem aparelhado para tal.

Sair de casa cedo me fez aprender que o mundo é muito diferente e bem mais hostil que o mundo existente de dentro de nossas casas, quando temos tudo ou quase tudo que queremos, sempre muito perto de nosso alcance ou do alcance de nossos genitores. Por falar nisso, agradeço aos deuses dos caminhos por ter tido uma infância razoavelmente tranquila e poder falar isso aqui agora sem grandes complicações. Mas, como eu estava dizendo, sair de casa me fez acordar para a vida real que havia e que pulsava longe dos holofotes de minha mãe e do meu pai.

Fui, então, para uma cidade maior, mas ainda próxima da que eu nasci e morava. Encarei aquilo como uma espécie de fase intermediária. Quando a barra pesava, era sempre possível, e nada custoso, solicitar os auspícios da mãe e do pai, que sempre foram pais incríveis e prontos para o embate, seja ele de qual natureza fosse ou se apresentasse. Anos depois, viajei para mais longe, sertão nordestino agora, para passar cinco anos da minha vida entre faculdades e primeiros trabalhos. Tudo só, na companhia de alguns poucos amigos, mas geralmente só no mundo e pelo mundo.

Estar e ser só no mundo me proporcionou muitos aprendizados e algumas dores, também. Engolir dores, sem dúvidas, é um dos melhores aprendizados que temos quando somos sozinhos na jornada. Durante boa parte de minha vida, já adulto e crescido, foi sempre preciso tomar conta das coisas todas da vida de um jeito muito semelhante aos tempos de antanho. Coisas da vida, não? Quem nunca?

Aí, repentinamente encontramos uma pessoa que muda todos esses parâmetros. Uma pessoa cuidadosa ao extremo, que gosta de zelar e agradar, termina por fazer revolução e muda o modo como lidamos com tudo e com todos. Acredito que estar só no mundo por muito tempo me proporcionou sensibilidade suficiente para entender o valor que pequenas ações de cuidado possuem na vida do outro. Uma companhia que cuida de verdade é algo muito prazeroso, para citar apenas um adjetivo. Tem sido bom sentir novos movimentos em minha vida. Tem sido sereno e leve. Não ser ou estar só é bom também. Tão bom que já começo a esquecer como era mesmo ser sozinho ou estar sozinho. A vida não para mesmo de girar. A vida é incrível!


* Imagem: Google

LITERATURA BRASILEIRA DOS ANOS 1930, 1940, 1950, 1960, 1970, por João Fernando André


 

Neste vídeo, o professor e escritor angolano João Fernando André faz uma incursão pela história da Literatura Brasileira, mais especificamente dos anos 30 até os anos 70 do século XX.

#históriadaliteraturabrasileira #joãofernandoandré #séculoxx #canalliterário #oequadordascoisas

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Os versos grávidos de Maíra Ferreira

*
Por Germano Xavier


“os velhos que um dia
seremos estão pedindo
perdão”

Excerto do poema face a face, de Maíra Ferreira

Maíra Ferreira é o nome da poetisa que estreia sua inaugural fatalidade no mundo das palavras impressas. A PRIMEIRA MORTE é o nome do livro da poetisa e é também o nome do poema que abre seu livro de poemas: “quando era criança tinha um medo/de borboletas como quem não suporta/tamanha delicadeza desde sempre”. Poema-fala de uma grandiosidade perigosa gerada a partir do que é sutil e mantido entre ternuras.

Figuras infantis brincando de ofuscar nossas fatigadas vistas são encontradas nas ladeiras que as estrofes não ousam subir nem descer, como em “entre os instantes e eu vejo pensando que é tudo/na verdade simples e o mundo é no fundo/isso mesmo só isso tudo isso”. Melhor deixar tudo intacto no meio do percurso. Esplendores alheios fazem o papel dos arruaceiros derrotadores de silêncios e iconoclastas.

Cantos de erros em datas importantes que maculam as imensidões, tal qual no trote “e logo é tarde e já se perdeu tudo/o que nunca se teve”. Parece poesia feita em rota marginal, apesar da nítida presença dos saberes universais de ordem. A veia de Maíra discute a pressa das horas sem construção, a vida gasta sem ter motivo real. E pede autorização para romper cada vez mais.

Poema lindo é “pequena princesa”, versos com sal. Referências depostas e provadas no abrir das rimas inexistentes, o livro de Maíra é um exemplo de paraíso caótico. Cada poema é uma viagem, cada um é uma chegada e cada qual uma partida. Somos atingidos. A poesia vence no final da escaramuça, eis a única certeza que o desavisado leitor tem logo no passeio das páginas primeiras.

A palavra como artefato. Arma para dizer, mesmo que nada se compreenda ou mesmo que nada sofra incorporações. A PRIMEIRA MORTE dá vida a uma voz nova que tem vez no singular mundinho das frases quebradas com sanha que todos os poetas inventam de inventar. Outra coisa: poesia que debocha e quem ri não é o leitor. O leitor antes sofre sabendo-se infame e partícipe de todas as peripécias devotadas. O leitor dessas primeiras mortes de Maíra é parte do cortejo. O funeral é de espantos.

Assim: “quando me perguntarem vou ser/completamente aberta/horrivelmente honesta/e por isso aviso/nenhuma verdade vai sair/de mim”. Maíra Ferreira, pois, é o nome da poesia que tem autoridade para ser inaugural, não decepcionar e, ainda mais, para ser horizonte no universo das palavras que mancham papéis de preto em tipos misturados. Falseia tudo cobrindo os equadores (centro) das coisas com o limão das bocas em ira. Palavras grávidas: logo nascerão outras de seu ventre. Favor, não duvidar. Favor, desejar.


* Imagem: Google.