quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Marguerite Duras e a memória amante

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Por Germano Xavier


Amigos, leitores de literatura ou não, é já sabido, pois: a palavra é um ser vivo, como a parafrasear o grande Victor Hugo. “Tão vivo que se transforma, se ajusta, se articula, se combina, de acordo com os humores do seu manipulador ou ante as exigências do texto (oral ou escrito)”, como diria Maria Teresa Gonçalves Pereira em seu texto A Língua Portuguesa e a leitura: Convergências no ensino e na vida. A palavra é também o tempo. E foi, sim, o tempo de Marguerite Duras. “Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já era tarde demais. Entre dezoito e vinte e cinco meu rosto tomou uma direção imprevista. Aos dezoito anos envelheci” (DURAS, 1985, p. 7).

Assim, assaz, muito é o tempo e muito é a palavra. Demasiado é o tempo para Marguerite Duras, que confessa a nós um tanto-imenso de sua adolescência em O Amante, livro dos mais-mais saídos de sua verve. O tempo que revela o próprio tempo das coisas, das coisas que também são as palavras. Palavras. Como acontecimentos. O tempo que elabora e desvela a vida. O tempo que ilumina. A palavra que abarrota. Mas quem terá sido a menina amada pelo amante do livro? Seria ela mesma, a autora? A narradora duvida de seu próprio tempo enquanto ser vivo: “Aquele rosto, novo, eu o conservei. Foi o meu rosto. Envelheceu também, é claro, mas relativamente menos do que devia. Tenho um rosto lacerado por rugas secas e profundas, sulcos na pele. Não é um rosto desfeito, como acontece com pessoas de traços delicados, o contorno é o mesmo mas a matéria foi destruída. Tenho um rosto destruído” (DURAS, 1985, p.8).

A face destruída da menina é o retrato do tempo. Um portfólio de suas palavras. Mas que rosto é esse que tanto viu e viveu? Quem é a dona da palavra vida? “Não, aconteceu alguma coisa quando fiz dezoito anos que moldou este rosto que tenho agora. Devia acontecer durante a noite. Eu tinha medo de mim, tinha medo de Deus” (DURAS, 1985, p.11). O medo fala? O que fala a treva de nós mesmos? O que cala? “A história da minha vida não existe. Ela não existe. Jamais tem um centro. Nem caminho, nem trilha” (DURAS, 1985, p.12). Só pelo centro da vida é que contamos nossa vida? O que está no centro? Duras fala o que quer falar, quer o que vive: enredo, história, o modo como se narra a memória, a escolha das palavras que tecem o texto, sem limite, limpo, rígido, sem constrangimento, doce.

Cuidado. Pode não ser o que você pensa. “Comecei a escrever num ambiente que me obrigava ao pudor. Escrever, para eles, era ainda moral. Hoje, muitas vezes escrever pode parecer não significar nada. Por vezes sei disto: a partir do momento em que não for, confundidas todas as coisas, ir ao sabor da vaidade e do vento, escrever é nada. A partir do momento em que não for, sempre, a confusão de todas as coisas numa única por essência inqualificável, escrever é nada mais que publicidade. Mas na maioria das vezes não tenho opinião sobre isso, vejo que todos os campos estão abertos, que não haverá mais muros, que não haverá mais muros, que a palavra escrita não saberá mais onde se esconder, se fazer, ser lida, que sua inconveniência fundamental não será mais respeitada, mas nem penso mais nisso” (DURAS, 1985, p.12). Mais dúvida: escrever é nada? Quem lê não enxerga além? A leitura é uma prática que faz pensar, falar, comunicar, sentir. Quando lemos, muito além do conteúdo, estamos a observar a forma das coisas, as palavras do tempo, as disposições das frases, dos parágrafos, os demais elementos, todos, unidos, constituídos e constituintes. Para Marguerite, escrever não era nada. Escrever era tudo. Por isso, escreveu. Por isso, principalmente, viveu, amou. Suponho.

A menina do livro não responde nada. Ela antevê. Ela é prisma. Assim como a palavra de Duras, que deflagra todos os processos, que explora todas as possibilidades. “A palavra age quando encontra (quem) outra que a provoque, obrigando-a a livrar-se do conformismo, se (re)descobrindo em novos sentidos. Não há vida onde não há luta”, regozija Maria Teresa Gonçalves Pereira. Estará certa? A menina no livro luta. Ferve. O amor é um lutar, quando não um luto. Descreve. “A pele é de uma doçura suntuosa. O corpo. O corpo é magro, sem força, sem músculos, podia ser o corpo de um doente, de um convalescente, ele é imberbe, sua única virilidade é a do sexo, é muito fraco, parece estar à mercê de um insulto, parece sofrer. Ela não olha para o rosto. Não olha. Só o toca. Toca a doçura do sexo, da pele, acaricia a cor dourada, a novidade desconhecida. Ele geme, chora. Dominado por um amor abominável” (DURAS, 1985, p.44). Eis o amante. Eis o amor?

“Juro por minha vida que nada aconteceu, nem mesmo um beijo. Como é possível, eu digo, com um chinês, como quer que eu faça alguma coisa com um chinês, tão feio, tão raquítico?” (DURAS, 1985, p.66). Seria o amor possível assim pensado, possível? Seria o amor capaz de ir além-muros? Que tipo de amor é o ilustrado por Marguerite Duras em O Amante? Quem, afinal, ama? “O amante de Cholen perdia-se no prazer da adolescência da menina branca. Esse prazer que desfrutava todas as noites tomava todo o seu tempo, toda a sua vida” (DURAS, 1985, p.108). O que é, deveras, o amor? Explica-se? Mede-se? “Ele a abraça como abraçaria sua filha. Abraçaria a filha do mesmo modo. Brinca com o corpo da filha, faz com que se vire, cobre-lhe de beijos o rosto, a boca, os olhos. E ela, ela continua a se abandonar, seguindo a direção exata determinada por ele no começo do jogo” (DURAS, 1985, p.110).

Sentir não é uma decisão. Sentir é uma ordem. Uma ordem do instante. Se não for assim, simples, não é sentir. Necessário, faz-se, jogar-se. Banhar-se. Afundar-se. “Penso que minha vida começou a desvendar-se para mim. Penso que já começo a me conhecer, tenho já o vago desejo de morrer” (DURAS, 1985, p.113). O amor é um espanto. Rota. Amores. Sempre díspares. Quem ama? O que ama quem ama? Quantos tipos de amor existem? “O corpo do meu irmão havia morrido. A imortalidade morrera com ele. E assim caminhava o mundo agora, privado desse corpo visitado, e dessa visitante. Todos tinham errado completamente. O erro percorreu todo o universo, o escândalo” (DURAS, 1985, p.114).

Quantos tipos de amor são possíveis? “Seria preciso avisar as pessoas dessas coisas. Ensinar que a imortalidade é mortal, que ela pode morrer, que já aconteceu, que acontece ainda. Que ela não se anuncia por si mesma, nunca, que é a duplicidade absoluta. Que não existe no detalhe, mas somente no princípio. Que certas pessoas podem contê-la em si, desde que ignorem o fato. Assim também outras pessoas podem descobrir sua presença nos outros, com a condição de ignorarem seu poder. Que é enquanto se vive que a vida é imortal, enquanto ela está viva. Que a imortalidade não passa de uma questão de mais ou menos tempo, que não se trata de imortalidade, mas de outra coisa ignorada” (DURAS, 1985, p.115).

Em O Amante, livro vencedor do Prêmio Goncourt de 1984, Duras esclarece parte de uma memória extremamente particular invadida pela própria vida, que teima em violar os laços aparentemente inquebrantáveis do ser que tecem o novelo de todas as criações humanas, feitas de passos, fugas e revelações. Um livro singelo, rude, com gosto de vinho e cheiro de mar. Mar-alto.


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/Marguerite-Duras-412423150

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

As coisas cegas e inteligentes de Matheus Rocha (uma entrevista)

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Por Germano Xavier


"Quem diria que naquele espaço estéril, encardido e pálido do apartamento aquilo ia acontecer – não sei o que aconteceu, e se aconteceu. Tudo isso podia ser só invenção, mera especulação descarnada do plano físico. Mas sabia, desde já, que aquela coisa ia virar referência: ia ser tatuagem, cicatriz, mancha, massa sem fermento ou qualquer coisa que o valha. Eram os olhos abertos, a boca pronunciando e provocando, os lábios se chocando maciamente, e tudo isso se avolumando, se encorpando – condição humana. Não era amor, não é e não será. Amor desumaniza. Era o que tinha que ser. E o que podia ser?”

Impossível não citar o excerto supracitado. A autoria é do Matheus Rocha, um “caba” novo lá de Garanhuns, Pernambuco, e seu livro de estreia na literatura é o INTELIGÊNCIA DAS COISAS CEGAS (u-Carbureto, 2015). Novo de idade, o sujeito parece bem mais velho na escrita. Velho, sim, mas velho de se dizer experiente. A obra é um pequeno compêndio de “onze contos e uma narrativa mais longa”, como o próprio autor definiu na apresentação.

O retalhe posto em evidência é apenas uma demonstração da escrita madura do autor, caminhante-camarada de dois outros grandes nomes da literatura garanhuense, Mário Rodrigues, que recentemente ganhou o Prêmio Sesc de Literatura 2016 com o livro de contos RECEITA PARA SE FAZER UM MONSTRO, e Hélder Herik, que levou o Prêmio Pernambuco de Literatura de 2014 com o livro A ARTE DE RUMINAR PALAVRAS. Tais nomes ainda se juntam ao de Dominguinhos e ao de Luís Jardim, dois fenômenos artísticos da cidade.

No trato do conteúdo do livro, o autor parece revisitar um conjunto de memórias dolorosas da vida, de uma vida, real ou não, e não se importa em nos revelar tudo com detalhes. O tom geral dos contos é de angústia. Algo parece não estar bem com as personagens e, por consequência, com o todo das narrativas. O leitor embarca, assim, numa viagem por dentro de brumas nada epifânicas. Como se Matheus não quisesse ensaios ou, como ele mesmo escreve na décima quinta página, “como se eu quisesse viabilizar uma estranheza permanente em cada linha...”.

Muito gentilmente, Matheus concedeu uma pequena entrevista a este que vos fala. Segue...


ENTREVISTA COM O AUTOR

Germano Xavier - O canal Redemunhando, do Youtube, listou uma sequência de temas ligados ao INTELIGÊNCIA DAS COISAS CEGAS, seu primeiro livro, a citar “solidão, insegurança, incerteza, morte, amor, desejo, desamor”. Do que trata o seu livro, Matheus?

Matheus Rocha – Inteligência das Coisas Cegas é um livro angustiado, sim. Pesado, inclusive. A Natasha acertou demais quando usou Back to Black, da Amy, como um eco do livro. É muito de como ele aconteceu. Foram três anos escrevendo, reescrevendo, mexendo nos contos. Eu diria que é um livro sobre dar adeus apenas com palavras – usando uma frase da própria música. É tudo isso em latência. Tá ali, às vezes explícito, às vezes implícito.

Germano Xavier - Helder Herik, escritor garanhuense, diz num vídeo-resenha no Youtube que a sua literatura provoca um “buscar”. Afinal, o que sua literatura busca?

Matheus Rocha – Não sei bem, ainda. Meus contos são muito pessoais – obviamente, a única experiência que posso ter é a minha própria e isso acaba sendo indissociável da literatura que produzo. E, geralmente, eles me tomam completamente e não dão espaço pra outras coisas. Passo semanas cozinhando histórias, convivendo com personagens até que eles se escrevam. Não paro muito pra saber ou perguntar o que busco, ou o que os contos buscam. É um processo muito vasto. Acho que essa busca é uma ressonância em quem lê. Talvez os leitores saibam mais disso do que eu.

Germano Xavier - Fale-nos de seu blog, o NA SOLIDÃO DAS VEIAS...

Matheus Rocha – O Na solidão das veias é um blog (parado, no momento) que criei pra colocar algumas impressões de leitura. Leio sempre e bastante, colocando metas de leituras mensais e anuais. Tenho pais professores, cresci rodeado de livros. Então, nada mais certo do que continuar com esse movimento. Geralmente, escrevo sobre livros que me afetam e me movem. Isso de elaborar literatura sobre literatura é um exercício interessante e importante. Hoje não tenho feito muito isso – acabo tragando todas as referências para os contos do próximo livro, e não numa coisa mais resenhista, mesmo.

Germano Xavier - No conto intitulado DUAS EPÍSTOLAS, você escreve: “Enquanto a distância for maior que o alcance das mãos, sim vou escrever”. A literatura tem alguma serventia, Matheus?

Matheus Rocha – A rigor, não. Nenhuma. E acho que isso é o mais importante, mesmo. Ela não é uma coisa que precise ter serventia. Ela é um caminho possível – que não tenho ideia da onde vai levar, isso só se sabe caminhando, mesmo.

Germano Xavier - Alberto Moravia, certa feita, disse que toda literatura é antissocial. Concorda com essa afirmação?

Matheus Rocha – Penso que sim. Escrever é algo muito solitário. Leitura também. Você tá sozinho, de cabeça baixa, lendo. Ou escrevendo. A forma como te afeta, como te move, já é outra coisa. É outro momento, já. Então, enquanto prática social, é sim terrivelmente antissocial.

Germano Xavier - Por que escreve?

Matheus Rocha – Por pura necessidade. Uma hora, é como se a literatura aprisionasse, segregasse e obrigasse à ter uma espécie bem dark e herege de vida. Pra ter o que produzir. Necessariamente, não é doloroso e nem precisa ser. Mas não é legal, não é feliz escrever e precisar disso. Eu escrevo, inclusive, por excesso. Tiro todas as referências da minha vida, mesmo. Claro, existem as homenagens que vou deixando nos textos. Apesar de transportar a sensibilidade pros contos – impregno tudo com afetos -, o texto é pensado. É possível viver o caos e escrevê-lo ao lada dessa organização estranha que chamam de razão. No fim das contas, tudo acaba sendo artifício – a própria vida, inclusive.

Germano Xavier - Como avalia as obras de Clarice Lispector e de Caio Fernando Abreu, que parecem figurar como grandes inspirações para o seu INTELIGÊNCIA DAS COISAS CEGAS?

Matheus Rocha – O Caio F. é o meu grande amor literário. Conheci sua literatura quando tinha 15 anos. A biblioteca da escola tinha uma grande quantidade de exemplares dos Morangos Mofados. Um dia, tentando pegar um livro do Pedro Bandeira, acabou que um dos exemplares do Caio caiu na minha cabeça – literalmente. E levei pra ler. Era tão cru, tão doloroso, era tão sensível – no sentido de sentir, mesmo – que me senti completamente sugado nos contos. Ele não escreve amenidades nem essas pílulas de auto-ajuda que a gente vê nos status do Facebook ou nas fotos do Instagram. É uma literatura de desespero, de contestação, de resistência mesmo. Sempre que o leio, e leio sempre, me emociono. E escrevo. A Clarice eu conheci por conta dele. Ela era sua grande paixão literária. E acabou que aconteceu o mesmo comigo. A obra dos dois dialoga muito, embora o Caio seja muito mais apocalíptico e urbano. A bruxa Lispector tem uma obra epifânica, súbita e inexplicavelmente simples. Isso me encantou. Tudo isso tento trazer pros meus textos. E nunca escondi essas referências nos contos. São homenagens diretas e abertas aos dois. E à outros mais.

Germano Xavier - A literatura é mesmo uma forma de insurreição, como preconiza Mario Vargas Llosa?

Matheus Rocha – A partir do momento em que a gente se dá conta de que a gente vive imerso numa cultura imagética (e não necessariamente narrativa), é possível pensar na literatura como insurreição. Isso porque o que tá em jogo é ser visto. Nas redes sociais, nos eventos, e assim vai. Existem ecos disso na própria cultura literária, claro. Ainda mais num país como o Brasil, com leitores dispersos e onde prêmios formam clubinhos autorais e chancelam qualquer tipo de qualidade. Então, ler e escrever acaba sendo um ato ambíguo de resistência. Justamente por essas questões.

Germano Xavier - Fale-nos sobre o trabalho das Edições u-Carbureto e a cena lítero-cultural da cidade de Garanhuns-PE.

Matheus Rocha – A u-Carbureto começou como um jornal literário. O trio de ferro aqui da cidade - Helder Herik, Mário Rodrigues e Nivaldo Tenório – inventaram o jornal pra ter um espaço literário por aqui. Acabou que virou um pequeno selo editorial independente, onde começaram a publicar suas obras. Ganhou notoriedade no estado, pela qualidade da edição e, obviamente, da literatura produzida por aqui. Logo que me lancei nessa desventura literária, os três abriram as portas do selo e lancei por ele. O próximo, que sai ano que vem, também leva o selo em negrito. A insistência e iniciativa dos três foi um impulso importante pra quem produz literatura por aqui. Pra além, claro, da herança de Luís Jardim – indispensável leitura. Em termos de literatura, Garanhuns já mostrou o peso que tem. Helder e Paulo Gervais, recentemente, levaram o Prêmio Pernambuco de Literatura. Mário trouxe o Prêmio Sesc, um prêmio nacional – do qual ele já tinha a menção honrosa. Outro que figurou nas menções honrosas foi Wagner Marques e seu isso que escorre, uma coletânea brutal de contos. E você, Germano. Tem Fernanda Limão, uma poeta maravilhosa. Uma poesia de toque, mesmo. Alexandre Revoredo, idem. Além de poeta de mão cheia, um músico e tanto. Leo Noronha e sua Neander, um espetáculo à parte. Andrea Amorim, claro. Outra explosão maravilhosa daqui. E Marcelo Francisco, que tem uma adaptação teatral de um dos contos que mais gosto do Caio F., dama da noite. Vale demais ver. O que me incomoda profundamente, nesse cenário todo, é a cidade não dar a mínima pra todo mundo. Com todo esse peso literário, Garanhuns não tem UM festival de literatura. Apesar da cena ser bem clara e ativa, ainda existem algumas ilhas – inclusive entre quem produz arte aqui. Talvez seja ingenuidade pensar numa unificação e fortalecimento – no fundo, tá todo mundo muito só, mesmo.

Germano Xavier - Michel Temer, Donald Trump, Jair Bolsonaro... o que nos reserva o futuro, Matheus?

Matheus Rocha – Acho que não precisa ir muito pra frente pra sentir o que nos reserva. Tá tudo muito escancarado. As neuroses todas transbordando. Preparem seus punhais, amigos.



* Imagens: Google.