domingo, 24 de fevereiro de 2019

A grande insurreição armada de soluços



Por Germano Xavier


A chuva resolve cair, logo hoje, sobre os batalhões de mascarados e de foliões que se formam pelas ruas. Avenidas coloridas, a água escorrendo pelos bueiros entupidos. A chuva lava esse mundo tão sem freio. Lave a alma desse povo, chuva! Lave tudo! Leve tudo de ruim pra bem longe! Menos a criança, com o cabelo encharcado, que desvia das fantasias de mãos dadas com o pai. Menos a mãe, exposta aos olhos da filha, que enxerga um pierrot branco se achegar nela e dizer nenhuma-purpurina, nenhuma-lantejoula. É assim no baile municipal, é assim na Confraria da Sucata, é assim no Andaraí, na Vila Matilde, nos blocos do sul e do norte. 

Muitos pedrolinos sem noção, muita palavra feia, muita nenhuma-comédia muito menos arte. Mas vamos todos como não devíamos. Sorrindo à toa, indo ao léu, a esmo ao ermo, aos quatro cantos dos becos, largas tendas de sabores e dissabores. Vamos, como uma grande insurreição armada de soluços. E soluçando, vai o jovem que não se aposentará, soluça a moça que não pode abortar, soluça o mendigo oficial da praça, os pedrolinos sem-respeito algum, os pedrolinos sem-educação, os pedrolinos sem-futuro nem oportunidade, as colombinas sem-direitos e desdentadas, as colombinas sem-atenção, as colombinas sem-quase-tudo nem o mínimo. Ó, Momo, que rei sou eu? Que rei sou eu, que não me canso de me cansar de tanto pandemônio!? Que rei sou eu, que não sei brincar a brincadeira vazia de tantos? Que rei sou eu, que não me engano no meio de tantos panos?

E ronca o batuque, e sangra a voz, e chora o cavaco, e essa renca de gente sem voz, para onde trota? Que arreios invisíveis são esses, meu Deus? Onde Deus agora? Deus está bêbado? Deus é a ampla massa de afônicos, deslumbrada, rica em alegria vaga? E nossos rebentos? E nossa soberania? E aquilo tudo que nos prometeram na última eleição? A carestia dessa vida, Momo! Quem é você, é você o dono de toda essa armação?!

É show. O batuque é uniforme. Assim como o aperto, os embaraços, os choques, os voleios de corpo, as apreensões. Vede que mulher linda, de seios quase nus! Vede que homenzarrão! A vida é isso, pedrolino, amigo meu? A vida é quando? Somente, e quem é quem? E quem vem? E quem virá para nos salvar no fim da linha ou no fio da navalha? É um Cristo negro, o que vem? O branco não deu jeito. Quem tá sem jeito aí, levanta a mão! É pra pular! É pra gritar! 

Suadeira e muita cerveja. Sexo por detrás do banheiro químico. Que química! Que sol! Xô, chuva! Pra bem longe de nós todos. Já chega de tanto eu me afogar em meu paletó... em nosso avental diário, em nosso macacão de firma! É a festa da carne! Tanta carne, e essas novinhas! E esse país tão bonito em impunidades. Que país lindo! É carnaval, pedrolino, amigo meu! É isso aí, o ano só está começando! Desgraças mais estão por vir. Mas o filho que eles fizeram e não vão criar juntos nascerá no fim do ano.

Fim do ano tem mais festa. Antes, ainda mais festa. Farra com o dinheiro público, vadiagens com a coisa nossa. Arlequins mais espertos que nós, pedrolinos, irão contratar mais bandas e mais praças serão enfeitadas. Bandeirolas, fitas, roupas e sapatos. Tudo brilhando e cheirando a novo. Ensaiaremos cordões, unidos, na mesma castidade de vozes, na mesma rouquidão. Vozes virgens. Gargantas imaturas. Cérebros castigados. É o coreto! A filarmônica das preces sem milagres. Ronca tudo, Momo! Bota pra ferver! Ronca o estômago com fome, ronca a dor do desespero. E haja fogos! Lançaram a nova marchinha. Estão nos empurrando, pedrolino, amigo meu. Poderemos cair. Tem nada não, não é água da chuva? É não, pedrolino. Já é lama.


* Imagem: https://www.deviantart.com/idilynn/art/Carnaval-Venitien-Annecy-2011-210545785

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Os manejos em assanho de Orobó (Parte I)




Por Germano Xavier


reza a lenda que bandeirantes,
atravessados pelo desconhecido, aqui vieram
e de Falsas Minas aqui chamaram.

Itá Berá | pedra brilhante |,
casa do amor entre Ikan, o Gigante, 
e Muhatu, a Pequena.



Orobó guardada no silêncio das vontades,
cidade mística do Amor Maior.

Ikan em fuga, dependurado na lama das alienações.
Muhatu, mulher de uma longa espera.

Rios em divisa, pedras e perdas em repenso vital.
Candombás em flor, o fértil solo de Sincorá.

Muhatu é a mulher mais macia, mais forte, mais quente.
O mundo é uma impensável penetração.

O vazio das absurdas distâncias, seus vencimentos.
A certeza na nudez cálida de todas as peças do corpo.

Golpe seco.

Ikan, entre o Verbo Ancestral e o Espaço da Vida, arde.
Ikan, consciente dos assanhos.
Ikan, dizimado pelos silêncios mortos do passado.
Ikan, membro úmido deslizante.

Muhatu, pois, chão da morte mais bela.
Muhatu, esparramada na fome.
Muhatu, pintura de refundar instantes.


* Imagem: https://www.deviantart.com/silecia/art/Del-sexo-y-othros-demonios-II-139727187