segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Ardidas memórias

*

Por Germano Xavier


Uma vez eu me perdi com minha prima no sítio do meu avô. Eu tinha uns dez anos de idade. Ela, uns doze. Tínhamos ido buscar mangas e nos perdemos. O sítio ficava a bons quilômetros do centro da pequena cidade onde morávamos. Interior daqueles bem frondosos. Fomos aparecer no sítio vizinho, entre o cair da tarde e o raiar da noite. Andamos em mata fechada e nos arranhamos muito. Minha mãe já existia desde então. Remedinho nas mãos. O ardido nos ajudou. Evitou infecção. Quem sabe, até a morte.

Glorioso.

Viva como nunca. A memória é assim, inesperável. Quando menos se, lá ela em nós, em recordações a nos fazer parar.

Estanquei.

Naquele dia, sem cadeira de balanço, ali mesmo à mesa da lanchonete no centro da cidade feroz, um eu, um de mim, homem já formado, trinta e poucos anos, lembrei que a minha infância representou o tempo das feridas abertas. Dos arranhões. Dos cortes. Das sangrias. Não o tempo das dores indefinidas, das dores sem nome, as mais perigosas. Mas o tempo das quedas das altas árvores porque almejei olhar a menina que perambulava no outro quintal, dos joelhos lacerados, dos dedões dos pés topados depois das partidas de futebol no meio da rua.

Quantas saudades das peladinhas a la modalidade “travinha”, onde nossos chinelos serviam de barra!

Agora, no saboreio insosso desta pequena xícara de café impiedosamente frio e adoçado, a contragosto observo que as feridas da infância eram lúdicas, poéticas, não doloridas. Na caixa de medicamentos, que minha mãe guardava por detrás do espelho do banheiro, havia o Merthiolate. Um frasquinho, sempre à espera. Aquela ardência ajudava a imprimir as memórias. Depois, a dor se perdia na beleza e na pureza das lembranças.

O remedinho ardido ajudava a sarar. E ficavam somente as boas recordações do acidente de brincadeira.

Agora ele não arde mais.

Apurei as vistas, como quem busca um resquício de luz no meio do breu. Minha prima nem deve se lembrar.

- Por que a pressa?

- Não estou com pressa, Jó.

- Para onde estamos indo, então?

- Manga verde com sal e pimenta do reino, já comeu?

- Minha mãe me disse que faz mal.

- Crer nisso é que faz mal, Jó. Venha!

Jó era estabanada. Empolgou-se. Saiu abrindo picada para todos os lados com seu corpo, que era maior que o meu. Nem ligava. Eu ria dela, adorando o seu fervor. Coitadinha, foi quem mais sofreu com as arranhaduras naquele dia de exploração.

Difícil mesmo seria imaginar o Merthiolate assim.

Sem a ardência, que me fez armazenar tão bem aqueles machucados, como ficaria a memória real da minha vida? Seria tão viva como é hoje? Saberia eu quantas vezes lacerei o dedão do pé não fosse pelo ritual. De correr para a mãe, que corria com o remedinho ardido. Minha mãe fazia isso. Podia até não fazer. Para os jurados, todas faziam isso. Está no imaginário popular. A ardência está ligada às aventuras da infância. Às descobertas, às pequenas infrações, aos mais íntimos desmandos. Aos projetos mirabolantes que não deram certo. Aos nossos primeiros desgovernos.

Não era uma dor. Era uma ardência. Qualidade ou estado do que arde, do que fica em fogo, do que queima. O que é aceso, cintilante, iluminado. O que possui vivacidade, veemência. Calor. Ânimo. Entusiasmo. Picância. Aí acabaram com. Trocaram o Timerosal, a Acetona e o Álcool pelo Digluconato de Clorexidina. Alegaram um milhão de coisas. Deve ser verdade. Coisas ruins para a saúde. Tóxico. Deu nos jornais, na televisão, nas rádios. O povo foi alertado sobre a mudança na fórmula. Dali em diante, o velho remedinho deixaria de existir, e a infância dos homens seria impressa com tons menos garridos de vermelho.


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/child-voices-168828904

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Escaramuças e imbróglios sobre gêneros

*

Por Germano Xavier


No texto intitulado EQUÍVOCOS NO DISCURSO SOBRE GÊNEROS, o professor Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP) repercute a ideia, sem antes deixar de problematizá-la, de que as problemáticas envolvendo a discussão acerca de gêneros no espaço de competência da linguística foram alavancadas a partir da década de 90 do século XX (o que não é de todo verdade), prioritariamente depois da fomentação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que incorporou o debate sobre o assunto em setores antes ausentes na discussão, tal qual o espaço da Educação Básica em território brasileiro.

A devida introdução da matéria em novos espaços e sua consequente reformulação atitudinal frente às novas demandas de giro e de pesquisa, por alguns motivos, não se deu de maneira completamente tranquila e simples. Um dos fatores, demasiadamente alegado por profissionais e estudantes do ramo, foi o fato de ser o gênero um tema em providencial ordem processual, de caracterização por demais recente, o que, para alguns pesquisadores de renome, não passa de uma ingenuidade até certo ponto grotesca.

Durante o transcorrer das páginas, o professor destaca alguns pontos nevrálgicos no que tange aos equívocos de pensamento/conceituação ao se trabalhar com gêneros, como a citar os conflitos presentes nas dualidades gênero e texto, gênero e suporte, gênero e domínio discursivo, gênero e forma/estrutura e gênero e tipo textual. Com base em recortes avulsos de material publicados em diferentes locais, instalou-se uma aproximação afetuosa para com as bases do problema, servindo de prisma norteador para não iniciados e já iniciados em estudos relacionados ao tema.

Por andarem muito juntos, os conceitos de texto e de gênero dão início às escaramuças linguísticas aqui citadas. Seus caracteres de “materialidade linguística” são importantes pontos de divergência neste embate; claro, cabendo ao texto em si essa especificação de algo de cunho mais material.

Para o caso da diferenciação conceitual envolvendo gênero e suporte, bastaria se pensar que o suporte é algum instrumento onde se instanciam textos em diversos gêneros, a citar como exemplo a rede social Facebook. A bem da verdade é que, sobre tal posicionamento, não há um consenso, explica o autor do texto. Todavia, para ele, seria mais difícil apontar o Facebook como sendo um gênero por questões até certo ponto óbvias.

Acerca do conflito existente entre gênero e domínio discursivo, fica evidente que há uma aproximação palpável do conceito de domínio discursivo com a ideia de esfera de atividade humana bakhtiniana, o que dá ao jornalismo, por exemplo, não a faceta de se portar como sendo um gênero, mas um campo de atividade por onde transitam variedades as mais diversas de gêneros peculiares ao referido espaço de abordagem/uso.

A forma, por sua vez, também não pode ser considerada um critério único para a definição do que realmente seja gênero. Do mesmo modo ocorre com o conflito onde se envolvem gênero e tipo textual. Para o professor Benedito Gomes Bezerra, os tipos textuais se configuram como aspectos composicionais dos textos que, por sua vez, pertencem a respectivos gêneros. Aponta-se, destarte, um caminho mais aprazível e racional para o manejo de tais imbróglios linguísticos, a se fazer perceber quando de um direcionamento possível: esclarecer a relação que há, pois, entre os conceitos de texto, de gênero e de discurso. Talvez, o melhor percurso a se seguir nesta direção.



REFERÊNCIA

BEZERRA, B.G. Equívocos no discurso sobre gêneros. In: DIONÍSIO, Angela Paiva; CAVALCANTI, Larissa de Pinho. Gêneros na linguística e na literatura: Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil. Recife: Editora Universitária UFPE/Pipa Comunicação, 2015. p. 63-79.


* Imagem: http://www.pipacomunica.com.br/works/generos-na-linguistica-na-literatura/

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Um sonho


Por Germano Xavier

Sonhei. Sonhei e imaginei o meu futuro - pois que cada um possui um -, mágico e triunfante. Era apenas um sonho, mas era um sonho. E o meu sonho-instante cavalgou aventuras por mundos fantásticos, como se o meu transcendente pensamento fosse um sonho de algum "Pequeno Príncipe".

Precisei voar, por isso estive ao lado do Antoine, quando aquele pequeno avião beijou as areias do Saara. Depois de atingido por uma brutal tempestade de areia, por vez a mais clara metáfora da vida, montei no dorso do grande dragão branco, Fuchur, do Michael Ende, e me aventurei pelos universos da minha própria vida, com uma sandice alegórica, porém essencial, tal qual um engenhoso fidalgo da região espanhola da Mancha, que atendia pelo artificioso nome de Quixote.

E no meu ulular onírico, fui o próprio "Dom" de mim. Permiti-me o caminhar ao gosto do mais brando vento do norte.

Deixei-me, e fui.

Nesse ínterim, senti-me arrebatado, posto que era eu, senhor-tempo, o real proprietário dos castelos que criei...

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Temporal


Por Germano Xavier

Não existe sinônimo perfeito, como quase tudo o que há não é ou não pode carregar a perfeição. Esta palavra é um deus, habita o longe, o distante. Uma palavra em branco e, ao mesmo tempo, uma palavra caleidoscópio. A rua era azul de asfalto e verde de árvores. A moça pintada a giz singrou intuitivamente o charco mar de um não-encontro. Exigiu de si mesmo um braço dobrado tristemente e uma mão sustentando a tonelada do rosto. Por vezes era pêndulo o braço. O significado não tinha o tempo que tinha a menina. Nada poderia explicar o mundo naquele momento de apatia existencial, nem mesmo as palavras. Palavras também são falhas.

...

O que fazer quando o outro não vem? O que fazer diante da amplificação de um eu silente, esperançoso por uma página nova? Como agir quando o adormecer da tarde é a própria alma?
...

Havia escrito uma carta de amor a menina. Desejava entregar a ele quando estivessem juntos novamente, naquela tarde, naquela praça, duas almas e dois corpos sob os auspícios da serra que suspeitava a verbosa panapaná que se origina em surpresas fantásticas quando o beijo acontece. A menina, pois, queria o tempo eterno, eternizado dentro e fora de si, em pulsos que latejam, em bocas que se abrem e que se tocam e que se escolhem pares. A menina queria, mas era só um desejo o querer da menina. Ninguém pode adiantar ou manipular desejos. Tem sempre de esperar o desejo sair de cima dos cadernos que não existem e acabar na vista desterrada de algum códice humano e, agradavelmente, deixar-se desesperar...

Ao passo que queria o seu querer, medava a menina. Porque o medo é o negro, o modelo geral da dor. E o relógio tic-taqueando um tempo que rasgava a carne de um coração que apenas ansiara por amar.

Não sabia a menina que amar é cemitério marinho, fragmento de narciso, esboço de uma serpente. Não sabia a menina que desejar o amor é desconstruir a história, desmantelar Duchamp, forçar o demanhar do dia, beber a felicidade pedindo um coda di Gallo numa mescita madrugadora e depois dizer ao autista do itinerário do recolhimento desgraçado de um pobre coração ferido.

A víbora da vida...

Aí é quando toda a paz da natureza sem gente vem sentar-se ao lado do humano, como diria o Pessoa, do humano quando não é cristal o pranto, mas sim língua de comer resto, de lamber despojo, de passar na face das celebrações doentias.

E, sentada, a menina ,sozinha em si, quis querer rasgar a carta, riscar a palavra, abafar o papel perfumado, cobrir a impressão da alegria ingênua, findar a espera, nodoar o vestido novo em decote, sujar o sapatinho preto brilhoso, quebrar as pulseiras coloridas... E foi capaz de fazer tudo o que desejou a menina. Só não foi capaz de apagar o tempo, porque o tempo é foragido sem lei, sabedor dos desvios e dos esconderijos...

Serventia


Por Germano Xavier

Para que serve um texto? Certamente, esta é uma pergunta um tanto que pretensiosa, pois estamos dialogando com um assunto bastante amplo e, diria, ilimitado. Mas, por que ilimitado? A resposta é simples: porque os textos (gêneros textuais) sofrem influência do espaço temporal/tempo, assim como de todas as suas vicissitudes, sofrendo mutações constantes (transmutações) em seus modelos de organização e disposição de seus elementos, sem falar que novos gêneros são criados a todo instante, em diversas partes do mundo, em diversas circunstâncias. Os gêneros textuais são maleáveis. Os gêneros textuais refletem as mudanças pelas quais o mundo e o ser humano atravessam. A cada geração, novos gêneros textuais surgem, acompanhando as modernas ferramentas tecnológicas de comunicação que revolucionam o modo de efetuar a transmissão de mensagens, informação, conhecimento. Cabe ressaltar a importância e influência da internet, como também a fundação de um espaço virtual: o ciberespaço. Em outros tempos, as espécies textuais se restringiam ao romance, novela, conto, crônica, fábula, carta, apólogo, farsa, tragédia, ópera, revista, entre outros. Circunferência aumentada, nestes renovados idos, pelo uso do e-mail, torpedos, mensagens virtuais instantâneas. Construir o conhecimento e a cultura de um povo, registrando a história através da palavra e da expressão, este é o papel primordial que legitima a função de destaque dada aos gêneros textuais.

Do verbo poetar


Por Germano Xavier

poeta-me, que eu te conjugo!
transfigura-me, que eu te arrebato!
ponha-me de pé, que eu te desfaço!
sou palavra, sou arco
atirado no escuro...

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Um sonho barato


Por Germano Xavier

A rua era a mesma. Algum movimento ali, algumas fofocas de bocas acolá... mas, no final, tudo acabava mesmo no sempre e eterno estado de início. Eram sempre as mesmas pessoas, as mesmas árvores, as mesmas calçadas, as mesmas sinfonias de vozes...

Certa vez, naquelas brenhas, passou um vendedor empurrando um carrinho de mão amarelo. A princípio, parecia um simples vendedor de iguarias caseiras tentando ganhar a vida honestamente. Todavia, quando ouvi de sua boca o anúncio que fazia do seu produto, tive o leve pressentimento de que não valia a pena viver.

O vendedor tinha dito, em alto e bom tom, “Olha aí o sonho! Somente cinquenta centavos!”. Aquela frase não soou bem em meus ouvidos. Posso até estar errado, mas durante toda a minha vida imaginei que os sonhos poderiam ser conquistados, com muito suor e, também com um punhado de sorte, porém jamais pensei que poderíamos comprar sonhos.

Vender sonhos, isso já o tornava um comerciante diferente e, talvez, vanguardista.

Outros poderiam dizer que eu estava exagerando, que eu estava “viajando na maionese” ou demais conclusões. Talvez o sonho fosse mesmo um bolinho feito com farinha, leite, ovos e com recheios diversos. Ora, o que é a fantasia senão a gordura da realidade?

O certo é que o vendedor sempre passava com seu carrinho cheinho de sonhos, e que rapidamente era formada uma fila de crianças, jovens e adultos. Todos compravam sonhos de cinquenta centavos. Alguns com recheio de goiaba, outros com recheio de queijo. Outras preferiam sonhos sem recheio. E os velhos, bondosos, jogavam pedaços de sonhos para os pombos da praça.

Quando a tarde chegava, era sempre a mesma coisa. O homem que vendia sonhos e um bando de esfomeados.

“Olha aí o sonho! Somente cinquenta centavos! Quem vai querer?”

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Um brinde ao acaso


Por Germano Xavier

Desde que me entendo por gente que ouço falar do livro Feliz Ano Velho, do escritor Marcelo Rubens Paiva. Por onde andei nestes meus últimos 10 anos, período no qual fiquei longe da minha família, tive diversas oportunidades para lê-lo, porém só agora realizei a leitura completa da obra, best-seller desde o seu lançamento, no início da década perdida (anos 80). Num olhar mais simplório acerca do livro, poder-se-ia resumi-lo da seguinte forma: trata-se de uma autobiografia, que conta as aventuras e desventuras de um rapaz no auge de seus vinte anos, estudante de Agronomia da Unicamp, politizado e apaixonado por música, que vê sua vida virar de ponta-cabeça depois que mergulha a la Tio Patinhas num lago de água barrenta, bate a cabeça no fundo, lesiona a quinta cervical e fica tetraplégico.

Inapropriada visão, convenhamos. O livro ultrapassa a esfera da análise imediatista, para logo transformar-se numa leitura prazerosa, repleta de ironia e crítica, funcionando como um despertador social para os problemas vivenciados pelos deficientes físicos em nosso país. Marcelo, filho do deputado Rubens Paiva, perseguido e dado como desaparecido pelas forças militares no período ditatorial - anos depois a notícia de seu assassinato viria à tona -, tece inúmeros questionamentos diante do sistema político nacional vigente na época, posicionando-se de maneira veementemente contestadora sobre os mandos e desmandos do governo.

Através de suas memórias, o autor faz uma “limpa” dos momentos mais importantes de sua vida, desde antes até aproximadamente um ano depois do acidente em que se envolveu, narrando tudo numa linguagem direta, coloquial e, acima de tudo, descontraída. De tão informal, o texto por vezes ilude o leitor que, atingido brutalmente pela carismática trama, deixa de perceber um humor-negro constantemente permeado por tiradas sarcásticas e polissêmicas. Em diversas passagens do livro, Marcelo brinca (propositalmente) com situações vexatórias e preconceituosas vividas por ele em sua nova condição, ora fazendo o leitor gargalhar ora injetando uma dose de violência no sentido das palavras.

Como ele mesmo quer, sem lamentações, devemos ler o livro não como sendo a história de um rapaz que sofreu e que deu a volta por cima, e que agora serve de exemplo para todo mundo, mas sim como a de um sujeito que opta pela vida, encarando a realidade como ela deve ser encarada, jamais tendo a obrigação de ser forte o tempo todo. Extremamente humano talvez seja a melhor definição para o “enredo”, se é que podemos chamar a nossa própria vida disso. Marcelo Rubens Paiva nasceu em São Paulo, em 1959, hoje, cadeirante, é mestre em Teoria Literária e escreve para revistas e jornais. Além de Feliz Ano Velho, prêmio Jabuti de 1982, escreveu outros livros e vem se destacando no cenário da dramaturgia, destaque aqui para a peça Da boca pra fora – e aí, comeu?.

Para terminar, transcrevo aqui dois excertos do livro:


“Carnaval em hospital significa outra coisa: ausência de médicos e fisioterapeutas, enfermeiros irritados por terem de fazer plantão, silêncio no corredor.

A pressão não subiu, a temperatura ficou nos 36, 5, urina clara, evacuação normal, pernas sem dar sinal de vida e, pela porta do meu quarto, entrou uma visita especial.

Um encanto de menina. Maíta, que estudou comigo no Santa Cruz e agora fazia psicologia na USP. Uma graça. Foi a minha primeira amiga mulher que tive na minha volta a São Paulo, em 74. Lembrei-me que tanto eu quanto ela não conhecíamos muita gente na escola, e ficávamos juntos no recreio, até que descobri que o caminho que ela fazia de volta pra casa era o mesmo que o meu, com uma diferença: eu ia de ônibus e a mãe dela a buscava. Comecei a pegar carona no velho e simpático Aero Willys da família Maíta.

Lembro-me bem da solidão no colégio, e nós brincávamos que íamos roubar aquele Aero Willys e fugir juntos.

Agora, tinha vindo passar o carnaval comigo (não é uma graça?) e me trouxe até um livro de contos com o nome dela e a seguinte dedicatória:

“Marcelo, de nós todos pra você, com um beijo especial de cada um.” (2006, 138-139)

E mais a frente...

"Acabou meu carnaval, sem samba nem serpentina. Mas foi menos ruim do que pensava. A turminha, Maíta, Maira e Carca, não me abandonou um dia sequer, sempre ali, fazendo o tempo passar mais depressa, com a mesma eficiência que Nana & companhia. Afinal, carinho e pressa era o que eu mais precisava." (2006, P.164)

Você deve estar questionando sobre o porquê da escolha desses dois trechos de Feliz Ano Velho, eu explico. Em 2005, já cursando a faculdade de jornalismo, entro na sala no primeiro dia de aula do semestre. Sentada ao centro, vestindo "roupas de pano" e com um jeitinho cativante, belíssima em sua madura idade, está a minha professora da disciplina Psicologia da Comunicação. O nome? No quadro ela escreve: Maria Rita do Amaral Assy, ou simplesmente Maita. Isso mesmo, a mesma que foi visitar o Marcelo no carnaval de 1980. Certas coisas não mudam jamais. Maita, uma das fundadoras do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia, Campus III, e também do PT aqui em Juazeiro, decerto que não anda mais de Aero Willys por aí, mas sempre chega pra lecionar no seu Passat verdinho da década de 80, com o adesivo do Lula no pára-choque dianteiro e um Minister entre os delicados dedos. Eu concordo com o Marcelo e reitero: “Uma graça”.


PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz ano velho. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

Do grego mímesis


Por Germano Xavier

Escrevendo “verde”,
eu poematizo uma árvore
frondosa e real.

Escrevendo “real”,
eu poematizo a circunstância
da imagem: a Vida.

Pois que “Vida” é existência
ou reexistência
ou, ainda, re-reexistência.
Ou melhor, ...
Pois que ninguém me dirá
que o que escrevo é mentira,
pois quando escrevo “mentira”
eu estou poematizando
o que há de contrário:
a verdade.
Que, por sua vez, ao ser escrita,
quer dizer,
na linguagem das crianças:
“de mentirinha” (sabe-se lá o porquê!)

O certo é que sempre é uma “renovação”.
Perdão, acabei por escrever “a mesma coisa”.

Do existir de verdade


Por Germano Xavier

Ao amigo Marcos Vinícius

dúvida... neste oceano escuro navego,
sentindo o desesperar das águas;
um turbilhão de almas!, dilaceras
o pulmão do meu rosto?... te nego!

sou carne, fraqueza e inutilidade,
choro, lástima em fúria insana,
asas pesadas em nuvem plana:
reles ser em tão imatura idade!

a ida me é porta, tento fugir...
pois se fico me porto desastre
e castração, pobre e infame contraste

de quem um dia sonhou seguir.
quem sincero verdade quer, esquece
digno e justo de que só o verdadeiro não falece.

Triste viagem


Por Germano Xavier

Sou um ser alado, dotado do desejo meu intranqüilo por liberdade. Utilizo-me desse artifício e com ele consegui, com muita labuta, chegar ao patamar superficial e firme deste planeta Terra. Durante todo o percurso, nenhuma placa sinalizadora, nenhuma seta advertiu-me dos perigos que poderia eu encontrar sobre este gigantesco regolito. Ao pousar, logo tomei nota da minha absurda pequenez. Andei compassadamente por longas horas e interroguei-me: “Como posso comunicar-me com estas criaturas incomunicáveis?”

(...)

Vivi feito um homem, andei como um homem e, principalmente, durante minha experiência sonhei como sonha um homem. Rapidamente, percebi que homens são solitários, indecentemente individuais. Morei no campo e na cidade, e vi que todas as pessoas dependem de um arcabouço exterior chamado informação. A partir dela fomentamos o conhecimento. Conhecimento é o nome de uma flor sem cheiro. No mundo contemporâneo, época em que vivi , perdi-me no trânsito de idéias e pensamentos. Tentava acompanhar a evolução em todos os segmentos da sociedade. Todavia, perdia-me profundamente no labirinto desse caos. Tinha de aprender a apertar botões de uma engrenagem que esvaziava meus bolsos. Aprendi a ter, a ter o gosto pelo não ser.

A rotina atrofiava minhas asas, e pouco a pouco perdi meu direito de voar. Tranquei-me num apartamento, com janelas pequenas, sem grande poder de visão... Tornei-me um ente atravessado numa desesperança e por ligação abúlico perante meu caminho.

Passei a vida alimentando-me de batatas fritas e de um líquido preto com gás. O único jeito que usei para me adentrar no mundo da literatura foi me metamorfoseando em uma traça. Acabei esmagado nas páginas de Sofia.

Olhava de soslaio para todas as esquinas e ruas, logo padecendo em minha suportável insignificância de ser só eu, um homem Um homem no meio de tantos homens.

Furei, não os bloqueios, mas os meus olhos quase verdes e luzidios, que tanto influenciaram na promoção dos cargos nas empresas em que trabalhei como máquina, impulsionado por uma bateria alcalina chamada dinheiro. Minha cegueira era total, apesar de poder abrir os olhos. Eu via tudo!, mas não enxergava além do meu pobre olhar. Não sentia o que minha mão humana tentava expressar. Nada.

Por fim, morri! Morri tendo a impressão de nunca ter vivido. Morri sem saber o que havia por trás de tudo. Morri sem saber usar do poder indescritível da comunicação e sem saber ser homem. Eu tinha asas, só que me impediram de voar...


O texto acima nasceu de uma análise que fiz de uma peça publicitária da revista SUPER INTERESSANTE, ainda no primeiro semestre do curso de Jornalismo. A professora Maita Assy assim comentou:

“Ei, Germano! Desculpe minhas limitações em dar conta do que você acaba de escrever – inclusive por conta de tua letra. Bem, mas me parece que seu texto fala de uma vida não vivida; fala também de alguém que se faz do consumo; fala ainda de falta de acesso ao conhecimento, ao mesmo tempo em que esse é flor sem cheiro. Seria preciso, agora, que essas coisas fossem mostradas na peça de mídia que você selecionou, sob o risco de seu texto não funcionar como uma análise desse material. Seja mais direto, por caridade!, exponha essa visão que você narrou movido pela propaganda da revista.”

domingo, 4 de setembro de 2011

Tabaco (um exercício de argumentação)


Por Germano Xavier

Um dos principais motivos para o tabagismo ser a doença mais importante no mundo atual é devido ao fato de existirem grandes grupos interessados em produzir e comercializar tabaco. E, para isto, contam com o auxílio de legiões de publicitários, sempre e cada vez mais criativos. O tabaco, para exercer o seu cartel de maldades, conta com muito ajuda externa.

As campanhas publicitárias têm como base o desejo. As mensagens são quase sempre ligadas a algo que gostaríamos de ter ou ser e os publicitários tentam fazer com que o produto que eles querem vender passe a impressão de que, uma vez possuindo-o, o sonho ou o paraíso tornar-se-á realidade. Os anúncios de cigarro não querem convencer de que fumar é bom. Os publicitários querem, sim, persuadir, mexer com os sentimentos, fazer com que passemos a querer fumar sem uma clara percepção do porquê.

O que as imagens vinculadas ao tabaco passaram por décadas: "fumem o nosso cigarrinho e vocês ficam poderosos". Como podem fazer isso? Colocam uma mulher linda acendendo o cigarro do usuário, de preferência, fazendo beicinho. Quer estratégia melhor? No início do século 20, o objetivo da indústria tabagista era vender cigarros somente para o homem. Por isso, a imagem da mulher era utilizada de maneira exclusiva, como o principal objeto do desejo masculino. Lembre-se que, naquela época, não havia televisão, nem outdoors, entre outros ferramentas de publicidade. Além de algumas poucas revistas e jornais, os próprios maços de cigarros eram o grande chamariz.

A publicidade subliminar do tabaco ou aquela que utiliza as imagens de poderosos formadores de opinião são recursos perigosos para a saúde pública. Quem acreditará que exista risco na prática do tabagismo, se, por exemplo, uma pessoa tão inteligente, e queridíssima, como o Jô Soares, não nos privou, em épocas passadas, de associar a sua imagem ao uso do tabaco? Fica a questão. Não é necessário explicitar o quanto sou a favor da proibição de qualquer propaganda que envolva artigos ligados ao tabaco. Todavia, é preciso revelar a minha vontade de ver um dia o mundo dizendo “não” ao tabaco, vivendo cada dia mais e melhor.

Signo linguístico e Saussure


Por Germano Xavier

Com base nos conceitos do lingüista suíço Ferdinand de Saussure, o signo lingüístico deve ser definido como uma unidade composta por duas faces diversas: uma face conceitual e uma imagem acústica, que corresponderiam, respectivamente, a significado e significante. O signo “tucano”, por exemplo, é a unidade que une uma face do som “tucano” a uma esfera de pensamento – como, por exemplo, ave silvestre. Ainda de acordo com Saussure, o conceito e a imagem acústica mantêm vínculos de ordem psíquica, já que necessitam de regras pré-modeladas mentalmente para se estabelecerem como signo.

Saussure revela duas características como sendo as principais do signo lingüístico: a arbitrariedade e a linearidade. Para o estudioso, a combinação entre significante e significado é feita de forma arbitrária, imotivada, determinada por convenções e hábitos sociais, fora do poder do indivíduo de criá-lo ou modificá-lo. Sendo assim, não haveria nenhuma ligação natural entre a idéia de “pé” (significado), por exemplo, e a seqüência de sons p-é-s (significante). Saussure destaca como exceção as onomatopéias, que, em sua concepção, remetem direta e objetivamente aos elementos da realidade que evocam.

Para Saussure, o significante, enquanto natureza auditiva, deve ser disposto numa só dimensão de ordem temporal. Tal propriedade, denominada por ele de linearidade, opõe-se aos significantes visuais, já que estes podem explorar mais de uma dimensão no espaço, podendo ser apreendidos simultaneamente e de diferentes maneiras. A partir dessa organização em cadeia, segundo a qual os significantes se sucedem uns após os outros, é possível a estruturação de um sistema lingüístico.

Desejada poética alma




Quisera eu verberar
Como fazes tu com as palavras;
E encantar
E despertar
E invadir a alma humana
No mais profundo interior,
No mais intenso oculto hominal,
E, com veemência, tragar ou renovar
Detalhes intrínsecos de cada ser
Que ouve ou lê verbos teus.


Homenagem ao colega de Letras Germano.
Por Nilton Borges

Quem sou eu, quem sou eu?


Por Germano Xavier

Da mesma forma que a cultura serve para denunciar o progresso da sociedade, o tempo serve para reformar ou construir novos conceitos e idéias. E, em se tratando do polêmico debate concernente ao estudo da identidade nacional (leia-se brasileira), fica ainda mais evidente e perceptível tal embate ideológico após uma análise mais acurada acerca do afloramento da visão de que o povo brasileiro deve ser pensado como a fusão de inúmeros fragmentos que, por conseguinte, irão desencadear numa unidade/singularidade frente outras etnias, fato esse que começou a ser mais bem tratado a partir dos anos 60 do século XX. "Nós somos um povo mestiço e isso não podemos esconder", assim escreveu Darcy Ribeiro, em seu influente livro "O Povo Brasileiro". Essa afirmação só vem a corroborar esse aspecto identitário nacional que, na pior das hipóteses, é completamente visível e indiscutível. Ou alguém aqui sabe dizer da verdadeira origem de seus traços? A formação de um povo "ninguém", como assim designou Darcy, mesclado e repartido em trejeitos europeus, africanos e indígenas, acabou implicando, querendo ou não, na produção dessa unidade multifacetada e multicultural chamada "brasileiro". O documentário homônimo à obra do grande pensador, antropólogo, escritor e político brasileiro, apresentando esse mesmo discurso, porém agora através de outra linguagem, faz brotar impactantes questionamentos no que diz respeito ao papel desempenhado pelos dispositivos midiáticos, ou melhor, que deveria ser desempenhado por eles, no justo desígnio de promoção desse universo homogêneo-total que é o povo deste país chamado Brasil.

sábado, 3 de setembro de 2011

Descoberta


Por Germano Xavier

Achei a palavra certa.
Aquela capaz de mudar os discursos,
de refolhar as copas
das árvores secas
deste mundo seco...

Achei a palavra certa.
Aquela que é sentimento,
que é som e sonho,
beijo, voz,
eu e você
dançando
na chuva
caindo
e nos transformando
em nuvens
brancas,
aves do céu,
voando, voando, voando...

Achei a palavra certa.
Aquela que é Vida!

Versos em mãos



 Peça nova de estação, dois olhos e o vapor d’água.

Pés no chão pra sentir que o chão é bom e triste é assistir filme sozinho. Eduardo é filho dos tempos de merenda escolar e dos ruídos da madrugada. Quartinho pequeno, tênis sem plural e mundo enorme. Eduardo tem os olhos bons. Bondade das senhoras que vendem doces e sabem a hora.

Saber a hora é questão de tempo.

Um par de mãos e Eduardo cata a vida que sopra sua melancolia de fim de dia. Mas o dia termina e logo ele traça plano novo. Vive desses planos – fazenda xadrez, subir ou descer. Adora algodão doce e finge não ter fome só pra servir de alimento.

Um santo. Um anjo em tons verdes. Compota de mel.

Se o vento tem nome, deve ter o nome desse personagem de verdade. Se as luzes se apagam, a força concreta que o menino Eduardo possui, acende e faz clarão - como relâmpago que ilumina cidade pequena. Rios correm por ele. Novas estrelas surgem. Deus faz as ordens e sabe que no mundo Eduardo faz sentido.

Porque menino é sentido. Amor também. Velas são.

Eduardo existe em excesso porque não sabe ficar quieto. Embora tímido, seu silêncio ecoa mais que hino em dia de jogo de futebol. Eduardo corre o mundo e não consegue ser ausente. É parte de versos escritos por Drummond que soube andar com as mãos.

Unidas mãos em oração.

Eduardo é verso e o seu inverso é contente.

Eduardo rima tudo e completa sua coleção de cenas enquanto ajusta o sinal de sua televisão. Ele só não acredita que o mundo mudou. Quase sem fé, mas sendo o Eduardo, tem perdão.

Criança que tem história tem sempre flores a seu favor.

Não esquece. Como mulher, ele não esquece. Fruta madura que alguém tenta roubar, mas daquela altura, é verso que permanece vivo. Sem transcrição. Eduardo é obra de outro autor.

Alice.


Para o poeta, jornalista e professor Germano Xavier.
Escreve livro, faz sentido e gosta de palavra difícil.
Verso Rouco.

Alice é Letícia Palmeira, Virgínia Borges e mãe do Pedro.

Desarranjo


Por Germano Xavier

Na calçada, caminho
sem sombra
minha noite.

Veloz, impresente
e flácida,
sobrevive minha existência.

Bifurco-me.
Tri, tetra...
Sou quatro, cinco,
insistência.

A queda noturna.
A clara água
na tímida esquina
banha-me de luzes,
de eus
meus.

Rosa-dos-ventos.
Tomo o caminho do mar.