Por Germano Xavier
Desde que me entendo por gente que ouço falar do livro Feliz Ano Velho, do escritor Marcelo Rubens Paiva. Por onde andei nestes meus últimos 10 anos, período no qual fiquei longe da minha família, tive diversas oportunidades para lê-lo, porém só agora realizei a leitura completa da obra, best-seller desde o seu lançamento, no início da década perdida (anos 80). Num olhar mais simplório acerca do livro, poder-se-ia resumi-lo da seguinte forma: trata-se de uma autobiografia, que conta as aventuras e desventuras de um rapaz no auge de seus vinte anos, estudante de Agronomia da Unicamp, politizado e apaixonado por música, que vê sua vida virar de ponta-cabeça depois que mergulha a la Tio Patinhas num lago de água barrenta, bate a cabeça no fundo, lesiona a quinta cervical e fica tetraplégico.
Inapropriada visão, convenhamos. O livro ultrapassa a esfera da análise imediatista, para logo transformar-se numa leitura prazerosa, repleta de ironia e crítica, funcionando como um despertador social para os problemas vivenciados pelos deficientes físicos em nosso país. Marcelo, filho do deputado Rubens Paiva, perseguido e dado como desaparecido pelas forças militares no período ditatorial - anos depois a notícia de seu assassinato viria à tona -, tece inúmeros questionamentos diante do sistema político nacional vigente na época, posicionando-se de maneira veementemente contestadora sobre os mandos e desmandos do governo.
Através de suas memórias, o autor faz uma “limpa” dos momentos mais importantes de sua vida, desde antes até aproximadamente um ano depois do acidente em que se envolveu, narrando tudo numa linguagem direta, coloquial e, acima de tudo, descontraída. De tão informal, o texto por vezes ilude o leitor que, atingido brutalmente pela carismática trama, deixa de perceber um humor-negro constantemente permeado por tiradas sarcásticas e polissêmicas. Em diversas passagens do livro, Marcelo brinca (propositalmente) com situações vexatórias e preconceituosas vividas por ele em sua nova condição, ora fazendo o leitor gargalhar ora injetando uma dose de violência no sentido das palavras.
Como ele mesmo quer, sem lamentações, devemos ler o livro não como sendo a história de um rapaz que sofreu e que deu a volta por cima, e que agora serve de exemplo para todo mundo, mas sim como a de um sujeito que opta pela vida, encarando a realidade como ela deve ser encarada, jamais tendo a obrigação de ser forte o tempo todo. Extremamente humano talvez seja a melhor definição para o “enredo”, se é que podemos chamar a nossa própria vida disso. Marcelo Rubens Paiva nasceu em São Paulo, em 1959, hoje, cadeirante, é mestre em Teoria Literária e escreve para revistas e jornais. Além de Feliz Ano Velho, prêmio Jabuti de 1982, escreveu outros livros e vem se destacando no cenário da dramaturgia, destaque aqui para a peça Da boca pra fora – e aí, comeu?.
Para terminar, transcrevo aqui dois excertos do livro:
“Carnaval em hospital significa outra coisa: ausência de médicos e fisioterapeutas, enfermeiros irritados por terem de fazer plantão, silêncio no corredor.
A pressão não subiu, a temperatura ficou nos 36, 5, urina clara, evacuação normal, pernas sem dar sinal de vida e, pela porta do meu quarto, entrou uma visita especial.
Um encanto de menina. Maíta, que estudou comigo no Santa Cruz e agora fazia psicologia na USP. Uma graça. Foi a minha primeira amiga mulher que tive na minha volta a São Paulo, em 74. Lembrei-me que tanto eu quanto ela não conhecíamos muita gente na escola, e ficávamos juntos no recreio, até que descobri que o caminho que ela fazia de volta pra casa era o mesmo que o meu, com uma diferença: eu ia de ônibus e a mãe dela a buscava. Comecei a pegar carona no velho e simpático Aero Willys da família Maíta.
Lembro-me bem da solidão no colégio, e nós brincávamos que íamos roubar aquele Aero Willys e fugir juntos.
Agora, tinha vindo passar o carnaval comigo (não é uma graça?) e me trouxe até um livro de contos com o nome dela e a seguinte dedicatória:
“Marcelo, de nós todos pra você, com um beijo especial de cada um.” (2006, 138-139)
E mais a frente...
"Acabou meu carnaval, sem samba nem serpentina. Mas foi menos ruim do que pensava. A turminha, Maíta, Maira e Carca, não me abandonou um dia sequer, sempre ali, fazendo o tempo passar mais depressa, com a mesma eficiência que Nana & companhia. Afinal, carinho e pressa era o que eu mais precisava." (2006, P.164)
Você deve estar questionando sobre o porquê da escolha desses dois trechos de Feliz Ano Velho, eu explico. Em 2005, já cursando a faculdade de jornalismo, entro na sala no primeiro dia de aula do semestre. Sentada ao centro, vestindo "roupas de pano" e com um jeitinho cativante, belíssima em sua madura idade, está a minha professora da disciplina Psicologia da Comunicação. O nome? No quadro ela escreve: Maria Rita do Amaral Assy, ou simplesmente Maita. Isso mesmo, a mesma que foi visitar o Marcelo no carnaval de 1980. Certas coisas não mudam jamais. Maita, uma das fundadoras do Departamento de Ciências Humanas da Universidade do Estado da Bahia, Campus III, e também do PT aqui em Juazeiro, decerto que não anda mais de Aero Willys por aí, mas sempre chega pra lecionar no seu Passat verdinho da década de 80, com o adesivo do Lula no pára-choque dianteiro e um Minister entre os delicados dedos. Eu concordo com o Marcelo e reitero: “Uma graça”.
PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz ano velho. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
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