(ou não sou eu quem atravessa a rua)
Ele está em seu quarto, sentado à escrivaninha, quando chego... Rapidamente me pede para ver se seu trabalho da faculdade está bom. Leu do começo ao fim e só depois resolveu falar de si. Calmo, simples e altamente subjetivo, Germano Xavier começa a falar. Primeiro a infância, depois a escola, faculdade, até que pouco a pouco descubro uma perturbante e sombria interioridade. O poeta, estudante de Comunicação Social/Jornalismo em Multimeios e Letras/Português e suas Literaturas, jovem de 22 anos, nasceu numa sexta-feira 13, na cidade baiana de Iraquara.
O menino, como se definiu, desde criança precisava, por uma vontade quase que metafísica, recolher-se dentro de si, para que pudesse ir em busca do seu verdadeiro eu, de quem realmente era. "Sempre fui taxado de calado, quedo, mas eu não dava importância, eu queria ser aquilo que achava certo ser, e ali construí meu jeito, sempre dentro de mim, mais dentro do que fora, buscando alguma razão para estar vivo." Na escola não saía da sala em momento algum. Já no primário, sentia dificuldades para manter um relacionamento social, virou poeta! Ainda não se sente bem em alguns lugares, mas escreve, escreve porque tem de escrever, seu alimento diário.
Não há um dia sequer que Germano não rabisque uma folha de papel. Quando criança, viveu sob um seio familiar muito tradicional, filho de cirurgião dentista e mãe professora, pedia a benção todos os dias aos pais antes de se deitar. Conta que vivia com uma espada invisível sobre a cabeça, tal qual a de Dâmocles, que a qualquer momento poderia cair sobre si. Com gestos saudosos e voz forte, lembra que sua mãe levava a casa nas costas, era a diretriz da família e seu pai era o comandante, a quem ele devia total respeito.
Suas palavras, nesse momento, receberam apoio de seu caderno. Entre rabiscos e risos, seu olhar se divide agora comigo, a folha de papel e o nada. Sua paixão pela língua portuguesa começou ainda no primário. Relembra com carinho de sua professora Dalva Menezes, que como sua mãe lhe dava puxões de orelha nas tarefas. Mas isso, não pense você ser reflexo de notas baixas. Germano era um excelente aluno e para massagear e incitar esse status, ele usava como "desafiante" seu grande companheiro de futebol de botão, Abelardo, com quem disputava as melhores notas, provando para todos na escola e na família que era realmente bom.
As cobranças eram grandes por ser filho de professora, mas Germano era maior que isso, recebendo na 8ª série a medalha de melhor aluno da classe e o troféu de melhor aluno da escola. Era preciso provar, provar sempre e manter estática sua espada invisível. Enquanto rabisca o papel, lembra de um momento que considera um dos mais importantes de sua vida em Iraquara. Foi quando terminou a 8ª série e chamou os pais para uma "conversa de adulto", falou do seu desejo de estudar em Salvador, porque sabia que o único colégio de 2ºgrau da cidade não proporcionava condicões necessárias para um bom aprendizado. "Me lembro como se fosse hoje, disse para meu pai que ou eu iria estudar fora ou iria plantar tomates em qualquer lugar... mas que ali eu não ficava."
Por várias razões não conseguiu ir para a capital, foi então para Irecê, morar com seu irmão mais velho Gustavo. Nesse primeiro momento, longe de casa, sentiu o peso da importância da família, mas se realizava com as novas descobertas, suas primeiras relações afetivas, colegas, namoradas, desafios... Nesse mesmo ano teve seu primeiro despertar para a poesia. O professor de literatura pediu para que a turma levasse para a aula seguinte dois poemas, um sobre os 500 anos de descobrimento do país e outra com tema livre. Ele foi o único aluno que levou, seu professor pediu para que lesse e nesse momento algo fantástico aconteceu. Pela primeira vez o que lia fazia algum sentido, o instante ele define como “euforicamente mágico”. Recebeu aplausos e elogios e um novo mundo se abriu em sua mente, já tão cheia deles.
O poeta de viagens interestrelares por seus mundos, volta e meia lembra de algum fato na infância que o ajudou a tornar o que é hoje. Certa vez estava jogando bola na frente da casa com vizinhos e seu irmão, quando o pai apareceu no portão e retrucou: "Germano e Gustavo, 18 horas os dois pra dentro!" Mas 6 horas da noite era quando o jogo começava a ficar bom, diz ele. A tarde ia caindo e resolveram ficar mais uns minutinhos. Seu pai novamente aparece na porta, e nada. Os meninos, repletos de alegria, jogam mais um pouco. Às 18:30 decidem ir para casa, impregnados de suor e barro nas canelas. Empurraram o portão, viram que estava trancado. Bateram, gritaram, e nada. Ficaram na porta esperando, seus vizinhos foram para dentro. Chamaram novamente, e o frio lá pelas dez da noite começava a chegar. Os dois meninos não saíram da porta e quando era já próximo das 22 horas, sua mãe abriu o portão, sem nada dizer. Entraram, lavaram os pés, tomaram banho e dormiram. No dia seguinte, o sermão foi duro, ouviram coisas que jamais imaginariam ouvir, ficaram em casa durante quase um mês, de castigo, além de terem retiradas as poucas regalias a que tinham direito.
O espaço de rigor e respeito ao qual foi submetido gerou uma ligação muito forte com seu irmão, "ele era meu escudo”. Diferente dele, Gustavo era nervos à flor da pele, era seu ideal de bravura e coragem. Conta que quando seu irmão derrotou um dos meninos mais briguentos da escola, sentiu-se orgulhoso. Gustavo era a pessoa que lhe trazia paz nas intermináveis noites de insônia, onde imaginava que só ele estava acordado, ele e seus espectros que viviam circulando no quarto, sua mente mirabolante. Via sombras na escuridão, suava frio, sua única salvação era, depois de muita aflição, acender a luz e ver, apenas ver seu irmão dormindo, seu porto seguro.
Completados os três anos de ensino médio em Irecê, Germano vai para Salvador prestar vestibular. Passa nos seis vestibulares que havia feito naquele ano. De malas prontas para ir de vez para capital cursar Odontologia, Germano recebe de sua mãe a notícia mais esperada, a de que tinha passado no vestibular da UNEB, no curso de Comunicação Social/Jornalismo, seu sonho. Seu coração, agora aliviado, sorria novamente, abraçou a mãe que, no fundo, sabia que esse era o real desejo do filho. Por causa de greves ele ficou em Salvador durante um ano esperando o início das aulas, fazendo pré-vestibular, veja só, para passar o tempo.
Quando tudo parecia estar em seu devido lugar, o inesperado aponta de sobressalto. Sua mãe liga para seu celular (coisa que odeia) e diz que está faltando professor de Inglês no seu antigo colégio, e que a diretora, sabendo de seu histórico como aluno, convidou-o para dar aulas nas turmas da 1ª à 8ª série. Germano não respondeu logo, precisava pensar... Como um menino que a vida toda ficou conhecido por sua timidez e reclusão poderia agora dar aulas? Bem, a resposta foi positiva, convite aceito. Germano volta para Iraquara. Foram intensos 7 meses lecionando, primeiramente só o Inglês.
Ainda lembra de seu primeiro dia como professor. Sua mãe, religiosa, orava por ele segurando uma vela que mais tarde ficaria atrás da porta. Saiu com quase nada nas mãos. Chegando ao colégio, ao percorrer o extenso corredor até a sala, teve seu segundo momento mágico, uma sensação elevatória, inédita. Parecia que o chão se partia enquanto ele, imune, atravessava os obstáculos e as enormes fendas abertas no chão. Entrou na sala e a aflição passou em cinco minutos. Tornou-se um professor muito querido por seus pequenos alunos da 1ª série, que não o deixavam sair da sala, conta. “Não deixa o professor sair não!”, ouvia das ciranças, e as doces criaturas barravam sua saída todos os dias após a aula.
Depois de um mês, Germano fora convidado para ensinar Literatura, História, Geografia, Português e Redação no curso pré-vestibular Podium, para um contingente de quase 180 alunos. Ali encontrou antigos colegas de classe, que o ajudaram nessa dura rotina de professor, mas que ele garante ter sido a melhor época de sua vida. Assim se tornou “a figura mais comentada da cidade” de cerca de 18 mil habitantes, acredita. Passadas mais duas semanas, o “professor” foi convidado a lecionar para alunos de ensino médio e de cursos de aceleração no Centro Educacional Manoel Teixeira Leite. Aceitou e foi preencher seu pouco tempo restante dando aulas de Psicologia, Química, Inglês e Sociologia. Nostálgico, relembra com alegria a rotina dessa época, "saía às 7 da matina, voltava às 12:30, fazia uma revisão, saía 13 horas, voltava 17;30; depois saía às 19 e voltava às 23. Após tudo isso, ainda ficava até às três da manhã, por causa da insônia, estudando os conteúdos para o dia seguinte.
A essa altura do campeonato, já era admirado por toda a cidade, diz satisfeito. Em meio a livros, pastas de poemas, sinônimos e sua paixão Julieta (sua máquina de escrever) , Germano, com apenas vinte e poucos anos, já tem muitas histórias. Uma delas é de seu aniversário de vinte anos, lá em Iraquara. Era uma quarta feira, levantou cedo e foi dar aula para a primeira série. Conta sorrindo que recebeu um bolo e refrigerante para comemorar a data. Saindo dessa aula, ainda no mesmo colégio, tinha mais quatro turmas que, coincidentemente, fizeram a mesma surpresa. Eram bolos, presentes, cartões, sorrisos. Depois do “almoço”, ele saiu de casa e foi ensinar as três turmas de ensino médio e, mais uma vez, surpresa! Para não fazer desfeita, Germano comia um pedaço de bolo aqui, outro ali. "Ah, que dia triste e alegre ao mesmo tempo!”. Mas ainda faltava a turma do curso Podium, pela noite. Luzes apagadas, corredor vazio e ele já imaginava, bastou colocar o pé na sala para que as luzes acendessem. Festa de novo, o professor chegou! Dias inesquecíveis como esse deram a ele a certeza da vocação, porque essa experiência mudou sua vida social, abriu portas. Ensinar-aprender, no melhor de Paulo Freire, era um dom. "Sentia a obrigação de ajudar as pessoas fazendo um trabalho digno."
É hora de ir para Juazeiro, começar do começo, de novo. E Germano não pensou duas vezes em sair da cidade que, agora, de fato, era sua e se foi. Olhar inquieto, quarto simples, cheio de seus gestos fortes e suaves, seu sorriso solto, mas contido. É nesse paradoxo que o encontramos e é lá que ele tenta se encontrar. Revela, aos poucos, que ainda busca seu verdadeiro eu. Para isso trava duras batalhas com o seu inimigo número um, seu eu. Para ele, os poetas precisam da dor, para que possam escrever melhor e entender o que é obscuro na vida. “Eu choro a dor de um poema/ cada um que nasce no profundo dum homem/ E que não caminha os seus limites inatingíveis/ Eu choro a dor de um poema/ E, principalmente, eu choro, muito/ A dor dum homem sem poesia.” (Fragmento de "Apoéticos", de 21/07/2006)
Quando perguntado sobre Juazeiro, Germano se endireita na cadeira, rabisca o papel e pára um pouco... Pensativo, ele exclama: “Juazeiro era mais bonita na minha infância, quando meu pai passava de carro, quase parando para que todos vissem o rio, no caminho para a casa de minha tia Estelita. É também a materialização de um sonho, um desejo mais forte que as correntes lá de casa”. Seu outro sonho era lançar um livro. O menino que ficava a tarde inteira lendo na sala, tinha ao seu lado os melhores companheiros para essa hora: um pires, uma colherzinha e mel, sempre providenciados por sua mãe, Irlan. Bastava isso para Germano mergulhar no mundo belo da literatura, e foi em Juazeiro que o sonho aconteceu. “Clube de Carteado é um livro de erros e acertos, uma obra que dá ao erro a sua porção dicotômica e mágica, ora acertando por errar ora errando por acertar...”, foi como ele apresentou o livro. Hoje, acha-o infantil e imaturo, um recolhimento aleatório de poesias que tinha temor de que morressem nas gavetas.
Juazeiro é também sinônimo de conformação e espera, mas daqui a alguns meses será de novo sinônimo de realização, porque lançará seu segundo livro ou até o terceiro, cujo nomes não foram revelados. "Serão mais centrados, mais viscerais, mais sanguinários, menos românticos e refletirão um pouco do meu ser interior e do infindável abismo de ser o ser”. Recita uma de suas novas poesias e deixa as duas pastas com novas poesias sobre a cama. Pego uma e, de repente... "Não, não pode não!" E eu deixei a pasta. O rapaz de voz grave e de personalidade forte, afirma que ainda não "inaugurou" o sentimento de amizade (termo do escritor Ziraldo) fora do eixo familiar. Talvez porque não dê espaço para os novos amigos. Chegou a falar que não sente falta deles, de um amigo. Diz apenas que deseja "uma vida de inaugurações, portas abertas ou frestas que deixem passar aqueles feixes de luz bem curtos, porém radiantes, porém fixo, é isso, uma vida de inaugurações. Cada dia que passa eu tenho de absorver um pouco mais de racionalidade, misturar minha emoção interior com a nossa contemporânea loucura verdadeira, não sei o quê, mas busco, é isso, eu busco...”
Germano não é estático, cada palavra que anuncia é o movimento eterno de inquietação do ser humano, é o não contentar-se, é a dúvida. “Insacie-se, de olho aberto./Os assombros inconduzem-nos às belezas impostoras./ Fragmenta-te, pigmenta-te, fazes de novo/ Se esconder a morte marulhante./ Inquieta a voz do teu desejo, Inquieta-te!” (Fragmento de "Marujos", de 10/12/2006)
Poeta maior, poeta menor. Germano Xavier, o poeta que, sempre que pode, escuta uma rádio na noite. É pouco católico, ou quase nada, apesar de crismado. Ouvinte assíduo de um programa sobre espiritismo, acredita numa energia superior, que rege os caminhos, a existência; não acredita naquele barbudo, bonzinho. Revela uma mania de poeta, anota todos os livros que lê. Em 2006, leu 172 livros e pretende, em 2007, chegar a marca dos 200. Sua hora predileta para ler é pela noite e pela madrugada, onde seus antigos espectros não aparecem mais, e só os livros é que o fazem companhia. Sobre suas influências, ele é incisivo. Ao citar Deleuze, afirma que há multiplicidade de influências e discorda das pessoas que dizem ser originais e não ter influências quando escrevem, “um texto é produto da intertextualidade, um poema é reflexo de todos os poemas lidos durante a vida, não existe texto 100% original". Declara-se aprendiz de poeta, interessado em poesia, buscando a reprodução artística acerca de algo que já foi dito. Sua maior inspiração é Carlos Drummond de Andrade, que afirma ser o maior poeta maior do Brasil, "por que é metafísico, dialoga com o universal e com o não concreto... porque viaja num imaginário que ele tem profunda admiração e que já aparece intrínseco em sua escrita." Já sua outra grande paixão é o maior poeta menor, João Cabral de Melo Neto, "pela clareza". Germano até se arrepia ao falar de Cabral, ”ele não transcende, ele é episódico, cru”. Mario Quintana, Julio Cortázar, Jorge Luís Borges, Ferreira Goulart, Adélia Prado, Hermam Melville, Shakespeare e etc, etc, etc, fazem parte de um dos mundos de Germano. São eles que o motivam a dedilhar diariamente sua máquina de escrever, apelidada de Julieta. Esta, fiel companheira dos dias de solidão, é fruto de um presente de seu padrinho, que não sabendo o que lhe dar, entregou-lhe uma nota de cem reais para ele comprar o que quisesse. A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi comprar uma arma de pressão para matar lagartixas e insetos em dias de divertimento no sítio de sua tia, onde passou grande parte de suas férias infantis ao lados dos primos Cleiton e Anderson. Só que para chegar ao balcão de armas da loja, ele teve de passar por uma ala lotada de máquinas de escrever. Pronto! “Foi amor à primeira vista”, e, assim, ele comprou sua primeira máquina de escrever, que hoje está no consultório do pai, em Iraquara, mas que teve seu nome perpetuado para as outras que comprou: Julieta.
Germano conta que seu ritual de escrever é simples, “geralmente pela manhã, a hora mais prolífica para a criação, pois a mente está descansada e absorve reflexos das viagens intercontinentais dentro de mim mesmo. Escrevo uma frase e o resto vem. Mas nem sempre é assim , tão fácil." Nesse momento, ele pega uma pasta e fala que ela é o que mais vale para ele no mundo. Lê um poema com intensidade e revela que sua maior dificuldade é colocar títulos em seus poemas. Pára um momento, sem ao menos ter sido questionado, e diz: “O ser humano é grande, precioso e, ao mesmo tempo... é preciso sensibilidade, olhos aguçados! A poesia é uma das expressões, é alguma coisa que me ajuda a viver, eu tenho de escrever qualquer coisa, está na veia, não sei onde vou com isso, só sei que a tendência é melhorar”.
Assim como todo bom poeta, só se lembra daquilo que realmente o toca. Surpreende-se ao lembrar do fato de que apenas 0,6% dos professores no país lêem poesia e questiona sempre quem somos nós, ou até que ponto somos o quem pensamos ser. Futuro de cores vivas, enfático, não titubeia enquanto mexe na máquina e toca meu joelho (faz esse gesto repetidamente durante a conversa, como se quisesse, talvez, minha total atenção). "O que sei é que um poeta deve escrever sobre tudo o que vê ou lê”. Deseja escrever livros à mão cheia, quer morrer escrevendo, quer provar para ele mesmo que faz alguma coisa. Seu futuro como professor é quase que certo em seus objetivos. Quer dar aulas para pessoas humildes, alfabetizá-las, ser professor em uma universidade, quer encontrar-se. Já como jornalista, ele diz que se um dia chegar a desempenhar o papel jornalístico, preferiria trabalhar em cadernos de cultura, no jornal impresso. “Eu quero chegar o mais próximo de mim mesmo, eu não estou nem aí, não quero estar aí, eu dificulto esses ataques. Nesse ponto, até que sou um pouco forte”. Então pergunto sobre seu maior sonho, e a resposta vem carregada de subjetividade: “Eu sonho um dia escrever um poema. Até hoje não escrevi um poema. Eu tento, tento, um”
Perfil Jornalístico escrito por Audimara Genipapeiro, colega de Jornalismo, em 2006.