terça-feira, 31 de maio de 2011

Os girassóis suicidas de Van Gogh


Por Germano Xavier

à Eveline Alvarez


não nasceu ontem nem gostava de açúcar, tampouco de estandartes que não germinam nada. mas só veio descobrir-se insatisfeita após o desastre lhe tomar a serenidade trotante. usava roupa branca em noite de família enterrando ovelha-negra escondida do tempo dos outros homens. ovelhas-negras manchavam reputações e tradições de famílias ordinárias e ela sempre soube disso. era uma mulher grande de cabelos grandes de palavras grandes de noites grandes demais para seu coração que só cabia o necessário. uma mulher que conseguia fazer da espera a única fonte de vida antes do almoço já para lá das tantas horas da hora noturna. esquecia-se que tinha contas e aulas e que era apenas uma. dizia melhor preparar minhas aulas de fumaça e de trono, que hoje eu quero. colocou o cigarro na boca e refletiu que quase sempre usar da necessidade é ter medo, é usar da última centelha que restou depois do desabafo causador das desavenças, que tudo isso sempre iria parecer um golpe de minerva, um derradeiro soco. a noite anterior não tinha sido das melhores, nem o mês inteiro tinha sido, talvez o ano, quem sabe a vida, inteira feita de soluços e resignações, produzida em alto e bom som de não atrever-se a nada, nada mais que o necessário. uma mulher tão grande tão grande que não sabia do seu tamanho, perdida no viaduto que a vida nos inunda, imunda, este imundo mundo de mudos. ontem perdeu o táxi e a hora do relógio e o relógio também na esquina já na principal rua do bairro. voltou com os pés e com as pernas que possuía, mas voltou de uma maneira que nunca antes. e viu, instantes depois, que sem o necessário ela poderia ser mais feliz, quem sabe alcançaria aquela liberdade tão falada nos programas vespertinos e diários de televisão que quase não via. quiçá a liberdade que a vontade que vem de dentro tanto quer e sonha e sente e senta e chora e clama e ama. num acesso movido ao álcool amargo que armazenamos no coração, fadada a si própria, não titubeou em rasgar a blusa de algodão com um só puxão em movimento diagonal de cima para baixo. ensimesmada, imaginou na coisa de se atracar em nós mesmos e viu que só nós mesmos para arrebentar os grilhões em ferros fundidos, fodidos. os botões rosáceos saindo de suas casas, saltando fora das amarras, tilintando um espectroso som ao tocarem o piso asfaltado. o som da necessidade desfeita, desmerecida. o som e a cor que havia de uma mulher agora com um sutiã também branco exposto ao vento frio da já chegada madrugada e uma luz lunar revelando, quase em negativo, o corpo esguio e forte, dado ao ar como que de graça, recompensando-o pelo novo despertar pensamental. não era a mesma mulher que voltava para casa. era uma mulher outra. desejou não pensar em mais nada e não temer mais nada, mas ela estava pensando e estava pensando em tudo temendo tudo e todos que, por um acaso ou por uma coisa mesma de destinação, por ali passassem naquele instante só seu ou quase ou ainda-não de loucura ou de realidade extrema e a interrompesse com olhos incriminadores de achar melhor qualquer atitude próxima a uma internação para estouvados, ou que lhe atribuísse nomes degradantes para mulheres típicas das horas marginais. e olhou-se novamente, atonitamente, segura de que não iria parar por ali, que haveria de não se suportar. não vontadeou rédeas e continuou a assassinar suas mais íntimas expressões básicas de moral. jogou-se ao chão e aos gritos e movimentos alucinados e alígeros, arremessou meias rosa e sapatos de salto alto na direção das ventanas da casa do vizinho nunca solicitado. descalçada, sem calçadas o uso, no rastro do latejo dos pulsos, desabotoou com força e raiva e ira e cólera e sem subornar a idéia que lhe veio de chofre e tirou a branca calça que lhe sufocava a pele que lhe tapavam os poros tão abocanhados pela escravidão. e agora a mulher exibia um conjunto de roupas íntimas profundamente simples, sem adornos maiores, somente enrustido com as tramas necessárias. uma necessidade tão medíocre, sem móbiles ou parangolés, capenga em carestia, incrementada pelo vazio tão submerso num nada símbolo e reflexo de uma clandestinidade bruta. um algodão tão ralo, que os bicos dos seios pareciam mergulhados numa nata fina apenas estruturante. os pêlos pubianos negros sob a transparência do necessário tecido. o fajuto esconderijo aberto ao bombardeio das esquinas. não, eu não posso parar. preciso acabar com o meu necessário sofrimento, com minha necessidade de ser o que sempre fui. sua ação se transfigurou. descabelada, mulher desgraçadamente acabada, num gesto só arrancou de si o que ainda lhe havia de roupa. desesperada em si, tombada no escuro da noite volátil, correu contra o tempo, contra as falcatruas da idade, contra os sibilinos percalços antes pensados imortais, contra a sua própria dor requerida de se esconder para, contra os arqueamentos dos ombros imaturados, contra a lança dos sorrisos desditosos, contra a violência das algemas da vida que nunca viveu, correu contra a sua própria respiração, a mulher nova, ofegando, arfando, bufando, morrendo ali, nua, simplesmente nua de suas necessidades, pura, num gesto inicial de quem destila o fel com o solvente amarelo dos girassóis pintados com as próprias mãos...

domingo, 29 de maio de 2011

Ainda os ratos


Por Germano Xavier

X

Depois de contemplar toda a grandiosidade deste mundo doente, você agora é capaz de fazer uma análise mais aprofundada sobre a sua insignificância, sobre a sua pequenez absurda. Eu estava completamente enganado quando disse que a vida é um absurdo. Na verdade, o absurdo aqui é você! Os ratos continuam roendo as porções mais humanas de tua criatura. Acredito que não há mais sentimento dentro do teu corpo.

O tempo está passando, meu caro!

O tempo é passageiro, assim como eu e você. E este principado que não sabes governar? Qual a razão das cercas e dos muros? Para que todo esse exército e todas essas armas? Não confias no Homem? Devias perceber que as flores conseguem conviver com os seus espinhos, e que isso não é grande o suficiente para estragar as suas rutilantes belezas.

Começou de novo! É essa minha cabeça que não pára de doer. Nunca mais fui ao médico. Aliás, nunca mais irei a consultório médico algum. É sempre a mesma parola, o mesmo diagnóstico, a mesma receita, a mesma frustração. A ciência médica ainda não desenvolveu nenhum remédio ou método para os males que uma pessoa hipersensível como eu pode sofrer. Casos como esse os médicos mandam para os leitos dos manicômios, dos sanatórios e dos centros de recuperação (esses lugares onde se tiram os passaportes para a outra dimensão).

Está na hora do meu “chazinho”. É incrível como possuem a ignorância! Vocês não conseguem enxergar que sempre há uma luz no fim do túnel? E que sempre haverá, por mais que não se queira ver?

Existe, eu sei! Eu sei, e também sei de tudo aquilo que te fere. E é justamente por tudo isso que eu me encontro aqui, nesse momento tão difícil e complicado. Há alguma bolsa nesse teu mundo onde se armazena as nossas energias que ainda não foram utilizadas. É preciso encontrar essa bolsa, essa sua força esquecida dentro do seu próprio eu. O pior de tudo é que você não quer me ouvir, e assim acaba perdendo a chance de encontrar esse tesouro adormecido. Ouça: eu sei do seu tesouro! Há tempos venho tentando lhe mostrar isso, mas você vira as costas e sempre vai embora. Deve ser essa fumaça branda, essas cores cintilantes, essas borboletinhas azuis, esses pássaros, essas nuvens brancas, essa imensidão sem fim.

E há fim?

Para onde vamos depois?

Quer saber... então me escute! Eu não sou louco. Eu sou apenas um sonhador que acredita em “mundos” e que está aqui só de passagem, feito uma andorinha de verão. É tão difícil assim? Eu só quero que vocês me entendam e que acreditem que atrás desse “mundo” existem outros “mundos”, onde todas as pessoas são felizes e se gostam e se amam.

Será o Amor?

Quem é o Deus dessa terra?

sábado, 28 de maio de 2011

Rainha do povo


Por Germano Xavier

Ao ler Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro


Vai, Maria da Fé,
corre pelos campos do Estado brasileiro.
Vai, que tu mereces!
Foge, como quem foge da tristeza
e do descaso humano.

Vai, Maria da Fé,
anda pelos verdes prados de tua mestiçagem
(consentida e quista?).
Vai como quem revoluciona
e como quem luta,
feito Ganga Zumba e o rei do quilombos, Zumbi.

Vai, Maria da Fé,
desfila tua brasilidade
pelas ruas descalçadas e sem brilho.
Mostra o quanto é forte tua vontade, teu objeto,
o quão grande é tua fé.

Viaja pelas ruas do Ribeiro
das Bahias, das Ilhas, dos Brasis.
Vai, Maria da Fé, vai!

Biografia de grilos


Por Germano Xavier

Perdoa-me, eu sou apenas um grilo.

Contudo, imagino que isso não tenha tanta importância. Tratar-me-ia da mesma maneira (assim é que sempre espero) caso fosse eu um gafanhoto ou, quiçá, um louva-deus. Não me seria motivo de rejeição se, por destino ou destinação, faltasse-me o dom dos saltitantes, dos saltimbancos ou se, pelo contrário, fosse eu um ser provido de asas quitinosas e que se vangloriasse de possuí-las, tirando proveito por simplesmente as possuir e não havendo em mim o afã de dividir contigo as belas imagens e paisagens que, por via das circunstâncias, em algum breve sopro vital fosse por mim visitado.

Não sei ao certo se com essas palavras já consegui me apresentar ou se já me conheces – e continuo com a mesma impressão de que isso também seria completude irrelevante-, mas, querendo agir de modo a não construir más impressões acerca de minha grilice, inicio meu perfil dizendo que sou um grilo e que não passo disso. Um grilo, somente.

Sabes tu o que um grilo faz da vida?

Um grilo cricrila. Essa é a primeira de suas ações e, talvez, a mais perturbadora ou incômoda. Creio que já ouvistes o cricrilar de um grilo. Sabe, nós somos uma confraria. Formamos um grupo de “cantoria” e somos demasiado unidos. Quando alguns dos nossos amigos são esmagados por sandálias e sapatos de hominídeos, ou perdem alguma de suas pernas, ou se tornam incapazes de cricrilar por algum motivo, nós sempre ficamos juntos, auxiliando e acompanhando as vítimas, num gesto de solidariedade e afeição que só se finda no momento em que o eterno sofre a sua desmistificação, ou seja, autoflagela-se.

Todavia, como eu ia dizendo, eu não passo de um grilo. De um grilo que cricrila, como todos os outros da minha espécie. Sim, e como todos os outros grilos normais, eu também sei dar pulos, saltar. Ou, achando assim ser mais cabível, imagino que sei. Uma vez, lembro que saltei do aro superior de um botijão de gás até o regolito azulejado da casa de uma mulher gorda e muito honesta. Foi o meu maior pulo. Não sou fanático por pulos. Confesso que tenho um certo receio para com o progresso das aterrissagens. Tenho péssimas recordações de pulos dados em tempos de antanho. Porém, quando me presto ao salto triunfal, dedico-me por inteiro e acabo executando algo digno de glória e louro. Nunca faço uma coisa pela metade, contando que o seu processo de fabrico não fira minhas amídalas. Mas, o que é que um grilo pode fazer pela metade, tomando o seu tamanho “enfático”? Acho que um grilo nunca faz nada pela metade. Ele apenas o faz, e isso já é o bastante.

Não obstante o palavreado “grilal”, foge-me, agora, o real sentido do que trataria contigo. Ao cabo que me desenrolo, sinto que a ti menti, posto que não sou apenas o grilo de outrora, que sabia cricrilar, mas um grilo que cricrila e que também sabe dar saltos quando necessário. Isso já não é demais?

Perdoa-me, é que eu sou apenas um grilo. Eu não passo de um miserável grilo que só sabe cricrilar e dar pulos.

“Isso não importa para mim. Aceito-te como és. Admiro o que fazes. Quando cricrilas, nas soleiras e nos umbrais das portas do meu quarto, na matina ou no crepúsculo, percebo flamejar sobre a minha epiderme mascarrada a verdadeira essência da humanidade, que é saber... que é saber respeitar as diferenças e idiossincrasias dos outros, pois, como tivera dito um grilo, “sem os outros, não haveria de existir o indivíduo”. Então, na vontade de conquista de uma amizade recíproca, convido-te a participar de nossos Encontros Monossilábicos dos Dias Mundanos. As reuniões acontecem na Aléia dos Bem-Te-Vis, próximo à Floresta da Encantadura Humana. Diariamente, mesmo em espírito.

“E o que vocês fazem lá?”

Basicamente, construímos as inúmeras e intermináveis variações do cricrilar-arte, nata dos grilos. Sabe como é, temos de defender o nosso patrimônio, a nossa linguagem.

“É, deveras. Do jeito que este mundo vai, tudo tenderá à extinção, ao desflorestamento”.

Não deixe ao léu o teu desejo intrínseco. Façais o que realmente queres, e eu sei o que desejas. Assim, agindo de acordo com a nossa própria verdade, seremos uma classe mais valorizada. E viveremos, pois, sempre mais.

P.S. Troque o masculino pelo feminino, nas flexões de gênero. E se você não quiser entender esse texto, melhor ler o Manifesto do Partido Comunista ou se vestir de vermelho.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quase um conto de fadas


Por Germano Xavier

Está um bom dia para contações, não achas? Agradeço desde já pela gentileza de me ouvir. De antemão, no intento de me prostrar diante de minhas devidas responsabilidades, alerto para o fato de que qualquer coincidência que haja perante outras estórias e ficções não são meros acasos. As semelhanças são mesmo demasiado verossímeis.

Pois bem, começarei.

Era uma vez um homem que não se envolvia em lutas nem em brigas, mas que defendia com afinco os direitos dos seus vizinhos de terra. O homem possuía uma linda fazenda, onde corria um rio antigo de águas transparentes, morada de milhares de peixinhos cor de prata. Um lugar mágico, vigiado pelos pássaros e pelos ventares mais amenos, onde muitas pessoas moravam, agraciados pelas belas formas divinais da natureza.

Certa feita, o homem saiu de casa, sozinho, e pensando em...

Uma pausa aqui, por favor. As reticências que me ocorrem são deveras propositais. Peço paciência, prezado leitor, pois achei um modo muito mais oportuno de lhe contar essa estória. Espero que não se irrite com toda esta minha inconstância.

Mas, veja, escute bem.

Era uma vez um homem chamado Simpliciano Lima, combatente dos direitos mais humanos e dono de uma fazenda situada a sudeste da cidade de Iraquara com cerca de mil hectares. Uma fazenda rica em tudo, com solos apropriados para o cultivo de feijão, milho, hortigranjeiros, mamona, mandioca, além de muito propício à criação de caprinos, equinos, ovinos e bovinos...

Antes funcionando para as já citadas atividades, e também para a estocagem de armamentos que serviam para combater invasores inimigos que sempre atazanavam àqueles idos os mais diversos donos de terra; hoje, conhecida como o “Oásis do Sertão”, tornou-se ponto importantíssimo para o turismo ecológico da região chapadense.

Contam os mais velhos que, certa feita, Simpliciano saiu da sede da fazenda logo pela manhã, resolvido a encontrar um nome para o lugar. Andou manhã inteira pelas margens do rio de águas claras e repousou onde o rio fazia remanso. Ao olhar mais atentamente para o centro das águas, Simpliciano reparou nos inúmeros peixinhos prateados que iam constantemente à superfície, no objetivo de buscar o aquecimento necessário para as suas escamas através dos raios solares. Naquele instante, parou. Estarrecido com tamanha beleza, de supetão nomeou o rio com o termo “Pratinha”.

Formado principalmente por águas que subterraneamente ultrapassam os limites iraquarenses, passando pelos lugarejos “Pedra Furada”, “Lapão” e “Baixão do Poço”, corre manso e perene exibindo seu conteúdo calcário e salitroso.

O Pratinha se une ao Rio Preto e transforma-se no rio Santo Antônio. Desce esguiamente por muitos quilômetros e vai desaguar no rio Paraguaçu, em Andaraí-BA. Mas é dentro das fronteiras da fazenda do saudoso Simpliciano que o rio encanta mais. E as razões para tal afirmação são bem simples.

No interior da fazenda ele divide espaço com a Gruta da Pratinha, que fica logo abaixo da casa-sede, onde hoje é o restaurante principal do balneário, com a Gruta do Caboclo e com a “menina dos olhos”, internacionalmente conhecida, Gruta Azul – o destaque cabe à coloração em tom azulado em seu interior quando os raios luminosos adentram em forma de feixe pela extensão da caverna. O lugar também já serviu de cenário para várias gravações de novelas da Rede Globo, a exemplo de “Pedra sobre Pedra”, “Estrela Guia” e “Agora que são elas”, e para a cinematografia norte-americana, a citar o filme Turistas.

Distante dezenove quilômetros da cidade e dono de mistérios e de ainda ocultos segredos, como o dito existente canal subterrâneo que liga a Gruta da Pratinha à Gruta Azul, onde se encontrariam inúmeros registros rupestres e outros símbolos milenares, o Rio Pratinha está dentre os mais conhecidos de toda a Chapada Diamantina.

Simpliciano de Oliveira Lima, natural de Baraúnas, município de Seabra-BA, nascido em dezesseis de agosto de 1875 e falecido em abril de 1960, agropecuarista e conselheiro da cidade de Seabra-BA, escreveu seu nome na história, que nas devidas paragens deste texto já perdeu o caráter “estórico”, usando para isso sua visão contemplativa do pedaço de chão incomum que possuiu. Abriu uma veia de beleza inconfundível dentro da impressionante “terra dos diamantes”, convidando o mundo em sua inteireza para lograr de um espaço “abençoado por Deus e bonito por natureza”, como diria a composição do Jorge Ben. Era uma vez a Pratinha... e todos que ali chegam são felizes para sempre. Mas isso não é bem uma estória. É uma história com H.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Canções de sinos



Por Germano Xavier

VIII

O sino toca, ouves?
É o tempo, este deus,
que chegou de uniforme rubro.
É a recompensa pelo equivalente
que criamos. Presente,
de luz os olhos álacres,
vejo-te janela em minha frente,
o sol, o suspiro... um ventar carente
de flores estonteantes e castas.

Cerra-me, mulher, destes
aviltantes enleios cadentes e tristes
do amor, e vem!
E vem, que o sino anda a retumbar
a nossa ardente
e sempre
e sacra
e refulgente presença,

neste teatro dúbio
de frio e de lume
que nos têm.


A série de poemas Canções de Sinos termina aqui.

terça-feira, 24 de maio de 2011

O dia de abanicos


Por Germano Xavier

XI

tinha dia de aluar de ver cair comprimentos
dia de autorar verdes de encontrar desencontros
tinha dia pra tudo lá em Pastinho
até pra abanar mão feito ventarola
e dizer distâncias pra quem acomodava os atalhos
e limpava o cascalho e alinhava as linhas da vida

e aquele tinha chegado o dia de abanicos!
foi uma abanicada úmida regada em choros
"é qui as dureza das dô dói é nas alegria tamém
só quem sabe dô dus ocidente da gente
dô di machucado lento lenhoso
é qui carimba as carga no couro das alma!"

ver Doró daquele jeito feito tatu em toca
dava outra coisa não senão dó, e que dó
mas da "chuva dos zói" ele humanizava fortalezas
pintava pneu nas pegadas de pé e depois saía
aventurado em nunca mais olhar pra trás
o que era impossível forte em paredes
alegre em verbetes de cidade nova e grande

pai-dos-burros aumentado já no sentar do transporte
lá ia teimoso desafiador de destino morno
lá ia o menino escorregando estilos
pavoneando as iluminuras sobressalentes
tornando o que já era fonte num reavivo escandaloso

"si eu tivé di avuá vô vê du alto Pastinho
vô vê du alto meus canto meus aconchego meus linho
bebê du tempo ventoso dus relógio apressado
sem nunquinha deixá de sê eu o morenín du mato"

A hominização


Por Germano Xavier

(A Antropossociogênese): Pitacos sobre um texto de Edgar Morin.

Parte 1: O caçador sabendo caçar.

A hominização não é um processo linear e uniforme, e sim uma complexa interação de fatores que fizeram e fazem com que a espécie humana se desenvolva e se adapte constantemente. A hominização não é percebida quando tomamos como ponto de partida o tamanho do cérebro. A hominização torna-se possível a partir de uma mudança generalizada, seja no ambiente ou no social, etc...

A mudança da floresta para a savana gerou condições propícias para o aprimoramento das habilidades dos homínidas. O ecossistema torna-se um "professor" em relação ao homínida, e a caça age como instrumento civilizador.

Parte 2: A sociogênese

O modo de se organizarem e de se socializarem foi sendo conquistado e aprimorado durante o passar dos anos. Uma separação entre homens e mulheres foi realizada, destinando-se a cada grupo uma sociabilidade diferente. Surge, a partir de então, o conceito de classe dominante e de compensação de poderes. O homem torna-se chefe, a mulher a ele é subordinada.

A juventude é a porta de entrada para uma sociabilização entre os adultos e os aprendizes. Apesar de não ser considerado uma classe propriamente dita, a juventude ou a adolescência homínida é de uma importância indescritível para o progresso da próspera sociedade (Paleossociedade).

A economia homínida, se é que há economia, baseia-se na caça e na colheita, que já contava com uma organização básica. Vê-se desabrochar uma fonte cultural a partir do esboço de economia vigente entre os homínidas.

Com o aparecimento de uma sociedade organizada, fez-se necessário o advento da comunicação e da criação de uma linguagem (Paleolinguagem), que suprisse as necessidades de interação entre os vários grupos ou classes.

Assim aparece, então, a cultura, que precisa ser transmitida constantemente, dando origem as outras sociedades complexas. A cultura vai tecer a produção de níveis de complexidade em determinada sociedade, representando um aparelho transformador primordial para a evolução das espécies.

Parte 3: "O nó górdio da hominização"

O aumento do cérebro só trouxe benefícios aos homens, por ser o mecanismo que dispomos para acumular conhecimentos, memórias, fatos e aprendizagens. O aumento do cérebro é o mais puro retrato do desenvolvimento e da complexidade sociocultural.

O advento da complexidade sociocultural está intimamente ligado à evolução do cérebro humano, assim como os períodos de vida e as formas de aprimoramento de técnicas e suas posteriores transmissões a outros indivíduos.

A fase adulta não cessa com as aptidões e possibilidades de nossos conhecimentos serem adquiridos. O cérebro, nesta fase, está inacabado, e o homem tem a cultura por natureza.

Parte 4: O inacabamento final

Natureza e cultura andam de mãos dadas, assim como o ecossistema social exerce poder sobre a organização de uma sociedade.

O homem, ao tempo que é polido, torna-se dependente do seu aparelho cultural, e nada mais é que um aprendiz eterno.

Resumo geral

Falar em hominização é falar num colossal processo de interação e de sociabilização, que envolve os seus progressos e suas evoluções, tanto biológicas quanto socioculturais.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Exercere


Por Germano Xavier

IX

Eu vou perseguir o que quero, eu sei que devo obrar. Não, eu não posso dar folga aos fantasmas que rondam esses “Mundos”.

Exercere! Exercere!

O que há de mal em exclamar esta palavra? Você se sente afetado por causa disso? Eu não posso acreditar em tudo que está acontecendo aqui. É esse ócio, essa estagnação que me aborrece por inteiro. Ontem fui ao médico. Depois de uma análise, que me pareceu bastante aprofundada, ele me receitou alguns remédios que jamais tinha tomado. Ele disse que eu estava em um avançado processo psiconeurótico e que a minha capacidade de compreender e enfrentar as situações habituais estava muito prejudicada. Ele deu o nome de psicose para o mal que me adentrava, e senti que aquilo não soou bem aos meus ouvidos. Eu estava começando a acreditar que eu era mesmo doente, que precisava de ajuda. Nunca imaginei que chegaria a esse ponto. Quando voltei para casa, preparei um daqueles “chazinhos” de que tanto gosto e fui me deitar. No fundo, eu queria esquecer tudo aquilo.

Confesso que aquela notícia abateu-me profundamente. Fiquei dois dias em cima da minha cama na companhia dos meus antigos e inseparáveis amigos: meus “redondinhos”. Deus, eu não posso parar! Ninguém pode parar, ninguém mesmo! Para que servem os livros em sua estante? Para enfeite?

A teoria dos “Mundos”! A teoria dos “Mundos”!

Você devia abrir os seus olhos e abrir esses livros empoeirados e comidos pelas traças. Os ratos! Não deixem os ratos se apoderarem da Sabedoria. Você é idiota, é?! Não vê que o tempo é passageiro e que os atalhos dão para os desfiladeiros mais sombrios? O que você está fazendo da sua Vida? Eu já te ensinei o melhor dos caminhos (lembra da corda?)...

Quando olho para essas estrelas cintilantes nesse céu azul, percebo-me filho de uma imensidão sem voz e que se manifesta raivosamente quando maculada. Eu sei da minha pequenez. Eu já vi Humildade, e você? Acompanhe todo esse redemoinho de mudanças e veja o quanto você não mudou, o quanto ficou sentado enfiando o dedo no nariz do teu vagar nojento.

Eu não sou louco! Quantas vezes eu vou ter de dizer isso a você? Eu só quero que vocês vivam, e que sintam a brisa azul tocando o corpo de tua pele. Voem! Voem! Tentem alcançar a liberdade quando voarem. Os teus sonhos, eu sei de tudo que te fere! Também sei que você sonha e que seus sonhos também são oceanos, mares, sóis e céus.

Eu só estou aqui porque confio em ti. Eu sei que um dia tudo vai ser diferente do que é hoje, e que seremos mais felizes. Não perca mais tempo! Pegue a corda e corra, mas corra para bem longe, onde ninguém possa te enxergar e, lá do alto, fite a beleza do teu gesto.

Exercere! Exercere!

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Bonde velho


Por Germano Xavier

Para Karlos Lory


Camarada, este bonde velho
ainda nos levará além. Esta
nossa nudez gritada de ausências
transforma-se-á no estrondoso som
de nossos sonhos.

Além... muito além, mudaremos.
Fugiremos deste eremitério em que estamos,
posto que o sol fica
em retidão
unânime
e não brilha o cristal de nossos punhos.
E como inesquecível será o gosto
do líquido bebido em renovada atmosfera!
Mas que lembrarei de ti em surpresas
e adivinhações, de nossas noites estudantis
e de reclames...
Isto muito mais que tudo.

Ah, camarada, como esquecer de nossos prêmios!
Como acobertar os triunfos conquistados em união,
mesmo que não valha o infinito esforço a gentil
insensatez das horas!

Eu sei que o Tempo deambula o meu quesito mais essencial e verdadeiro:
o de sincerizar-se,
mesmo no usufruto da indiferença inevitável
a que me atenho em obediência servil
em sentidos momentos,
e sinto vazar de você os significados
de toda a língua nascida em choques.

Fomos nós que criamos o mundo, aquele,
revertido e secreto, virtual
e concreto,
no qual procuramos destacar
a importância das leituras humanas.

Fomos nós, pobres apaixonados
pela mesma musa, a palavra, que
universalizamos o verbo esquinar
e derramamos a púrpura tintura
sobre a seca moldura podre dos envenenados.

Ah, camarada, meu camarada, como não brindar
toda a prosa e toda a poesia
e todo o rumar incerto e certo
na certeza de em amizade acertar-se!
E acertamos o alvo da eterna presença.

Caminhemos sem aturdimentos nem pressões.
Nossas letras ainda andam bêbadas,
mas não por isso deixaremos de bebê-las.
Jamais, é certo.

E o mundo escreveremos em sanha
nossos vôos, e nele
aprenderemos mares e casas.

E perderemos o Tempo, e perderemos
nossas pastas, e perderemos
nossos dicionários...
Escreveremos outros!

E perderemos o mesmo bonde velho,
na mesma ladeira velha,
da mesma rua velha,
com os mesmos
sentimentos velhos,
e deitaremos,
definidos pelos arcos,
em nosso mesmo constelar velho e atemporal...

domingo, 15 de maio de 2011

Medando azulidões


Por Germano Xavier

X

si iscafede trejeito corredor!
e nem bem se imaginava o já imaginado
o morenín do mato escapulia dos horizontes
do olho da besta-fera pois que há horas pra tudo
até pra gente ser as coisas do momento
e é justamente nesse instante de labor ebulitivo
que a meninada precisa ser bateria
tudo pra enlarguecer fazer girar
amolecer desastres sonar silêncios
petelecar murmúrios assustar sustos sustosos...

"tudin de mió era sabê qui nóis pode mais
qui as besta-fera é das outridões dus zalém
qui a gente fugueta na hora do bem intendê
e avoa feito bala de beca catada
impurtante é num dexá de nóis fugí os passarinho!"

tinha de deixar avuar pra dentro e pra fora
principalmente pra fora horizontado
pois que dentro é sentido na vermelhura do sangue
da gente não precisava como as distâncias longes
e foi que na mangueira do quintal de casa
Doró daquele jeito ensimesmado
foi ter certeza em alturas que o telhado
do mundo era azul de "azulá os zói"...
subiu cantinhos já marcados por bundas
lugar de brigado sentimento de infância
e lá na cama das "fôia vrede" fitou
em aturdimento esplendoroso a azulidão do monumento

e Doró teve certeza das existências
e teve apaixonância pelos "derrepentes"
e esperou as pequeninices gigantes
e celebrou o embaraço das pernas
e nomeou-se embrulhador de sonhos
sem jamais se esquecer de medar das coisas...

Doró morenín fontudo das bençãos bem dadas
me empresta as chaves?!

Sobre as águas que molham os rios


Por Germano Xavier

Iraquara nasceu ao acaso, como muitas cidades brasileiras. Certo dia, pelos idos de 1860, quando de um lugar de nome Tijuco partiu para Canabrava (hoje Canabrasil – será que estou certo disso?) um homem chamado Manoel Félix da Cruz, filho de Geraldo Félix da Cruz e de D. Maria dos Anjos, inventou de achar um lugar para dar água aos animais e à cambada de tropeiros que vinham abrindo uma picada, caminho estreito no meio do matagal, na direção da Parnaíba, hoje Iraporanga. O primeiro nome de Iraquara foi Poço de Manoel Félix, batizado pelas mãos de seu próprio fundador.

Sem suspeitar do destino, casou-se com quatro moças - duas Marias, uma Clarinha e uma Silvéria-, e atrás do umbuzeiro viu nascer uma “ninhada” que o tempo se encarregou de ir alimentando, germinando, fortificando. Só do Manoel mesmo foram dez, sete meninas e três meninos. Aí é quando a gente começa a perder a conta. Os Félix, os Carvalho, os Araújo, os Souza Santos, os Deodatos. Um mundo de gente foi aparecendo nos arredores do “Poço” e a cidade sendo elevada, qual Torre de Babel.

Depois foi a pessoa da Ana criança, Antenor Marques da vendinha, Pedro Bispo dos Anjos e seu filho Sr. Isidoro da lojinha; João Esquivel de Athayde que preparava pomadas; Leolino Carvalho lá da Lapinha – que funcionava como uma espécie de bairro do "Poço"; Almir Braga, médico sanitarista; Dr. Brandão; Dr. Cutia Coelho; Dr. Eutrópio dos Santos Reis; Dr. Aurélio dos Santos Reis, o “doutor de dentes”, como o chamavam; Dr. Wood e Dr. Américo Chagas lá das bandas de Wagner-BA. Havia também o curandeiro Francisco Novaes, o “Chico Flor”; Justino, o primeiro padre; Euzébio Gaspar de Souza, doador da imagem de Nossa Senhora do Livramento à igreja católica da cidade; Joaquim Pires Maciel, o “seu” Quinqueira, proprietário do primeiro aparelho de rádio; Generaldo de Palmeiras, Agripino e João Rocha, donos dos primeiros Ford Fobicas e motivadores da idéia de que o fim do mundo estava próximo - a aparição dos primeiros automóveis trouxe sentimentos diversificados no restante da população, pois havia quem acreditasse que o mundo ia acabar.

Professor Francisco Aguiar e professor Ribeiro; Isa, Maria Ribeiro, Valdete, Maria Matos, Sisa e Eulina; Edite Alves de Souza, a Didi; Enedina Lopes e Grisela Neves; Anna Maria Félix, Dilza Cunha, Zélia Ribeiro, Marly Pereira, Alzira Rosa, Maria Torres, Robson Ribeiro, José Ferreira: primeiros do Centro Educacional Manoel Teixeira Leite; Simpliciano de Oliveira Lima do “oásis” Pratinha. Horácio de Matos coronel, Timóteo jagunço e a Coluna Prestes chegando! Manoel Fabrício, coronel Henrique de Oliveira, Jurandy Toscano de Brito, vereador Bolivar Sampaio, incentivador do esporte; José Alves de Almeida, o seu Juquinha, responsável pelas lâmpadas das ruas iraquarenses; Sá Preta, Maria, Natalina e Fone, carregadores de água; Rosalvo, Vavá, Edmundo nos transportes; Sílvio de Almeida, Otacílio Durães e Valter Azevedo Coutinho, primeiro prefeito de Iraquara.

Em 10 de julho de 1962 o registro no Diário Oficial dava Iraquara como emancipada. Aí foi a vez dos vereadores Ireno, José Catulé, Ângelo Matos, José Mendes; Dué, José Viana de Souza, Raimundo César Solon de Oliveira, Reinaldo Azevedo Viana, Haroldo Geraldo de Souza, Paulo Miranda Leles, Walterson Ribeiro Coutinho, todos prefeitos; Deocleciano, Abílio, João Lucido, Lió; Maria Marieta e Candinha, parteiras que retiraram das barrigas das mulheres centenas de filhos da terra que logo viriam a se juntar a outros tantos conterrâneos e formar, como de um só empurrão, o espectro identitário que hoje o município de aproximadamente 30 mil habitantes carrega em seus traços e trejeitos.

Iraquara que também é a Caiçara, a Zabelê, o Mulungu dos Pires, a Santa Rita, a Água de Rega, a Canabrava, a Várzea, o São José, a Queimada, a Quixaba, o Riacho do Mel, o Mato Preto, o Ponto Certo e tantos outros vilarejos de gente humana humilde e trabalhadora. Iraquara que também é a do meu pai pernambucano Carlos Adailton, a da minha mãe canaranense Irlan Pimenta, a do meu irmão Gustavo Xavier e também a minha. Iraquara tão pequena, Iraquara tão grande. Iraquara universo.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Para sempre o nado


Por Germano Xavier

Ele foi.

(Mas aqui é o começo desta história que justamente se inicia pelo fim. Mas é bom lembrar que todo fim é o começo de uma outra coisa. Ou o começo de uma mesma coisa também.)


Os dois estão na cama com o relógio de plástico na cor laranja em formato de espiral marcando algo em torno de uma da madrugada. Ele no canto direito do colchão, vestindo uma calça jeans da marca Ônix e uma camisa com gola branca que ganhara da mãe na última vez em que estivera em sua antiga casa. Ela no outro canto com um edredom meio esverdeado sob os pés lhe amainando um pouco o cansaço das pernas de andar o dia inteiro pelas ruas da cidade. Ele havia dito a ela que admirava seu espírito guerreiro, o que a fez olhar mais para dentro dos olhos dele. Foi um momento importante, por isso está aqui descrito. Mas não se engane. Nem tudo que está registrado é fundamental. Às vezes, só compõem a cena. O importante mesmo é a entrelinha. Às vezes também, não é sempre. Os dois se entreolharam, pasmos com tudo aquilo, pouco entendendo o que estava acontecendo, e pauperrimamente trocaram um desejo de boa noite, externados com sofrimento por suas gargantas entediadas.


No recinto havia somente a presente forma do silêncio que invadia tudo sem pedir licença. O silêncio era austero, rude. Um silêncio grosso e angular. Os dois se olhando ainda na madrugada com ressentimento e medo e com as extremidades frias do corpo sendo sentidas. Os dois com olhares ressentidos sem nada entender. A janela basculante semi-aberta possibilitava um arrepio de peles de vez em quando. Mas era de vez em quando mesmo. O vento parco era também obtuso, tão fracamente entoado como a pálida agudez dos olhos das duas criaturas que não conseguiam adormecer em seus cantos escolhidos. Uma da madrugada e só o relógio marcava o seu compasso correto. De resto, os ponteiros dos corações andavam tortos, perdidos no vazio das coisas, das coisas do próprio coração, corações que palpitavam meio que entrando em colapso. A chance para pôr dois comprimidos de aspirina embaixo da língua. Uma possibilidade. Mais que isso, uma probabilidade. Porque os corações estavam encolhidos.


Um pouco antes, quando a noite ainda já não era caída tantamente, deram uma volta pelo centro com o carro que ela havia comprado no fim do ano passado. Eram luzes difusas as dos postes iluminando apagadamente os córregos das gentes. Saíram quase sem combinar, um ao lado do outro, na direção de um solar pintado na cor amarela, com a tinta nos rebordos já descascando por motivo das horas grandes e ultrapassadas. Via-se o calçadão vazio de pessoas, algumas mulheres noturnamente se esfregando em esquinas baldias, com seus colares de pedras coloridas e sem nenhum valor, paredes repletas de pichações e códigos secretos pintados por mãos de homens secretos pertencentes a gangues também secretas. Homens barbudos e com cheiros nas axilas bebericavam suas lástimas em copos mal lavados. Os balconistas limpavam as bancadas com panos sujos e esqueciam das próprias desgraças que possuíam. A noite parecia estar suja, mas uma lua por detrás de um monte limpava o firmamento.


Tinham saído e pouco depois já estavam de novo dentro de casa. Deitaram, os dois, do modo quase exato como fora descrito no início deste conto, um vestindo calça e ela com uma camisola branca de algodão. Ele com o pênis dobrado sobre si mesmo dentro da cueca depois de preenchido de sangue as cavidades começava a incomodar um pouco. A mulher pediu para que ele dissesse ousadias enquanto o chupava, no que ele olhou para o teto demonstrando inquietação, suspeitando da fala esquisita ouvida.


- Não é bem assim – disse o homem, ainda olhando para o teto.


- O quê?


- Assim, desse jeito. Ou melhor, nunca foi assim. Era diferente.




Ela foi.

(Aqui é o meio da história. E como todo meio, também é o princípio para o fim. Ou para o início, se formos de trás para frente. Questão de bom senso.)


Ela foi e também não fizeram sexo. Ele devia estar passando por um crise existencial muito forte para rejeitar uma mulher dessa forma. Ou devia ser a coisa do amor, que quando vem... bem, já sabemos. Passaram o dia juntos, dormiram juntos, conversaram. Ela havia viajado para vê-lo e não fizeram sexo. Pudesse ser uma crise medíocre e do nada ele arrombaria toda e qualquer porta. Mas não, era coisa ligada ao amor de verdade. Não que por ela não tivesse sentido amor de verdade, mas ele amava mais de verdade ainda agora. O amor tem disso, impede até sexo. Amor que é amor elabora chacina de amores. Para sobrar só ele mesmo. O um. É egoísta. Só se pode amar um amor. Aí é quem vem a maluquice. Tem gente demais pensando que amor é bicho altruísta. Danou-se. É tanta testa batendo contra a parede que causa até compaixão. Resumindo, foi isso. Ela foi e não aconteceu praticamente nada. Só mesmo a beleza da amizade.


E ele foi.

(Esta conjunção aditiva diz muito sobre o amor.)


A terceira parte dessa história começa assim mesmo, com um “E ele foi”. Convenhamos, já está tudo dito. O “E” é aquela espécie de palavra que desbrava outras, feita para o desfronteiramento dos medos e das ordens de caretice, para o andar sobre o fio da navalha. O “E” é o corte, o gosto em expôr a ferida aberta. Foi assim. Tudo ao contrário do que foi escrito aqui. Muito sexo, muita música, muita ousadia dita de forma natural que a própria ousadia não parece mais ousadia, muitas noites, muitos dias, tudo muito, muito bom muito bom muito bom. Mesmo.


P.S. O problema todo começa já no fim desta história, que é o começo da história também. Amor é escolha. Não dá para dividi-lo ao meio. Tipo um menino que não sabe nadar sendo perseguido por qualquer inimigo. A água azul da piscina é um amor. Ficar é outro amor. E aí está o X da questão. O homem decidiu pular do trampolim e beijar a face celestial das águas. E foi para sempre. Tchibum!

A salvação


Por Germano Xavier

IX


Doró vivia por querer almar
todas as coisas do mundo
e ver brotos de sabenças
nas outridões que lhe chegavam

como era lindo saber-se assim
assaz sábio em bonanças e farturas
de miudezas realmente imensas
que sucumbiam dos lugares de mais limo

é que lá em Pastinho o segredo andava em vagens
e era sempre preciso encerar o bucho das coisas
pra ver nascer a glauqueza das esperanças
lá ia armado com arma branca de unha de calangar
em tocas que "armas outra num era referênça"
amolava o osso dos dedos no seixo queimante
de sol nos seus modos de rapidez de natureza
e balançava algaroba no cio pra pegar "vage mardura"
depois na posse da douradeza de escândalos bons
era "iscuiê bicho ou coisa malaumada zunhá vage
virge e mardura cum uma só zunhada abrí peito
sem istóra pra encerá o oro das lonjuras
de dentro no cerne das farsa sorrisada
só assim o mundo era mió
só assim"

esfregava tanto a vagem em suco
que a parte chegava a empretecer de ficar sombrosa
estranho isso não era pois servia de resultado
se desse modo se terminava tava almado e bem
agora se empós a operação de Doró
persistisse na carne da vagem uma alvura de amarelos
o mais estudioso que se tinha de fazer
era era se " iscafedê pros mato discaminhado
pois que o cassaco divia era era de sê dos grandes"

não tinha outro jeito
a salvação era "si iscafedê"

Baudrillard e o destino da energia


Por Germano Xavier

(O teorema da parte maldita)

Estamos diante de uma transição de fase, de uma evolução. É o que defende o sociólogo e fotógrafo Jean Baudrillard, nascido em Reims (França), em 1929. Evolução essa de dimensões catastróficas. Estamos vivendo num mundo em que a "cultura" atual tem como característica fundamental ser um processo (imutável) de liberação de energia, diferentemente das "culturas" anteriores, e o homem agora é parte integrante desses processos. Baudrillard apresenta os processos energéticos produzidos pelo homem e questiona até onde vai o poder do ser humano de aprimorar, aperfeiçoar esses processos. Ele diz que uma mesma energia produzida para o bem da humanidade, se não controlada ou acelerada pode tomar proporções contrárias e acabar por destruí-la. Como exemplo temos a bomba atômica lançada sobre Hiroshima e o acidente na usina nuclear de Chernobyl (consequências da liberação de grandes quantidades de energia armazenada). Baudrillard analisa também a relação entre bem e mal. Para ele, o bem consiste em uma dialética entre os dois elementos; em contraste, o mal se derivaria da negação dessa dialética, na desunião radical entre bem e mal. Marcados pela cegueira de seus interesses, os indivíduos modernos tendem a acreditar que o mal nunca é aquilo que eles fazem a outros, e sim o que eles sofrem nas mãos de outros. Assim, os atentados de 11 de setembro de 2001 não são encarnações do mal para aqueles que percebem nessas ações uma resposta ao comportamento dos Estados Unidos com relação a causa palestina ou ao terceiro mundo em geral. Como, também, a invasão ao Iraque não tem nada a ver com o mal para os que a analisam como uma resposta ao terrorismo. Em outras palavras, é uma característica essencial do mal o fato de que possa ser produzido ou sofrido, mas sem que por isso possa ser justificado ou explicado de forma racional e convincente. Resumindo, o mal assinala algo inominado, irracional, para o qual não existem palavras. Sempre muito irônico e polêmico, Jean Baudrillard acha um absurdo ser chamado de pós-moderno, pois para ele o conceito de pós-modernidade já não existe mais, é um conceito tratado de forma irresponsável, de abordagem pseudocientífica dos fenômenos. Caracterizado como um filósofo que procura refletir por caminhos oblíquos, examina a vida como um fotógrafo, como ele assim mesmo se intitula. Grande crítico das imagens, Baudrillard revela em suas fotografias a irrealidade das coisas, a ilusão dos objetos, seu próprio simulacro. Seus principais livros são: O Sistema dos Objetos; A sombra das maiorias silenciosas; Simulacros e Simulação (que baseou a trilogia dos filmes Matrix); América; A transparência do mal; A troca impossível e O lúdico e o policial. Atualmente dedica-se a escrever e proferir palestras.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Nós, Ele e as persianas azuis


Por Germano Xavier

Para Liene Márcia,
sempre atenta ao que escrevo.


Ao contrário do que ele pensa, não sou eu que escrevo esta história. Se é uma história? Sim, é uma história. Nem tão diferente das demais que ele já escrevera nesta vida, nem tão igual as que porventura ainda não saíram dele nas noites de seus dedos sem juventude. Talvez uma história como qualquer outra, com um enredo onde o mistério é a peça-chave, com personagens intrigantes e maliciosos, outros bondosos com idiossincrasias marcadamente caricaturais, com um narrador obscuro e ao mesmo tempo por demais falacioso, e tantos outros aspectos. Uma história que precisa de um começo, como qualquer outra, assim como um meio. De um fim, eu já não saberia dizer. Para mim, que já estou dentro disso há algum tempo, o fim não existe numa obra de arte.

De onde estou, vejo-o em inteireza. Corpo esguio, forte, rosto arredondado, olhos ligeiramente cansados, ombros largos, mãos macias. Num dos cantos dos lábios, mordisca um palito de dente, sugando-lhe o acre néctar que parece vazar de dentro do pequeno objeto pontiagudo. Deitado no bicama pequeno para seu grande tamanho, o poeta apenas repara a tinta branca do teto do apartamento onde mora. A tinta está envelhecida pelo tempo, adquirindo quase um tom amarelo-creme. Duas almofadas vermelhas lhe dão suporte na altura do pescoço, para que seus olhos bem estejam diante do livro que agora ele folheia, lendo os rebordos dos textos. Percebe também, e muito antes de ter deitado, que há uma colcha alaranjada sobre a cama improvisada por onde estica suas costelas. Lá está o artesão das palavras, aparentemente ocioso, disperso de tudo que lhe rodeia. Enquanto que eu, personagem de sua genialidade, sentado parcimoniosamente numa cadeira fria de madeira, espero ansiosamente por suas ditosas ordens.

Não vejo nele a vontade pela palavra lhe incendiar o rosto como na noite trespassada, onde virou a madrugada escrevendo um conto que já passa das dezenove páginas. Penso que virará uma novela, pelo restante dos acontecimentos que a ele ainda faltam ocorrer. Posso afirmar tal maneira o que disse agora, pelo simples motivo de também me saber personagem do conto, mesmo que subalterno ao protagonista, o Sr. Carvalhaes. Olhando o poeta no estado próximo ao sonolento em que se encontra, posso crer que está apenas repousando um pouco suas maquinações mentais, para num bem perto instante voltar, em todo vapor, ao ofício que tanto lhe domina.

Tenho vontade de ir até ele e lhe assoprar uns dizeres, dar-lhe algumas dicas acerca das coisas que somente quem está na dimensão do fictício conseguiria enxergar, falar do que ando vendo nos bastidores do conto que ele escreve, poder de alguma forma fazer com que o seu trabalho não lhe seja tão duro como penso estar sendo. Porém, ao mesmo passo em que todas estas maneiras de pensar me ocorrem em consciência, acredito mais fielmente que ele é um homem forte por demais para se deixar abater pelas naturais adversidades de sua profissão. O poeta está mais preparado do que eu posso imaginar, disso nutro quase uma certeza.

Ele agora esboça alguns espreguiçares, faz alguns movimentos de rotação com o tronco, pára, força os músculos da face propositadamente. Levanta-se lentamente, pôe as mãos nos joelhos, parece estar sendo atingido por uma leve vertigem. O poeta está diante da persiana que lhe cobre as vistas para a abertura da janela da sala, onde estava a ler, tentando olhar por entre as pequenas brechas que lhe sobram. Estica os braços e descerra as duas metades da vidraria, sem levantar por inteiro a peça azulada que lhe serve de escudo. Está diante da luz do sol, cortada em feixes retangulares e que atingem o tecido de sua pele como diminutas flechas de luz. Apóia-se sobre os antebraços, flexiona um pouco o seu corpo, respira um ar mais aberto.

E pensar que daquela mesma janela o poeta que me criou fez defenestrar a Cândida, a única personagem feminina do conto que está escrevendo, esposa do Sr. Carvalhaes e por quem eu sentia calafrios de paixão desde a mais tenra idade. Até hoje não entendi o motivo que o fez escrever o suicídio da mulher que eu mais desejava. Por isso, temo pela antecipação de minha morte no conto. Assim, se me houvesse a chance de fazer um único pedido ao poeta-contista antes dele decretar o meu sumiço no texto, certamente seria o de viver até compreender as razões do suicídio praticado por minha amada Cândida.

Sr. Carvalhaes é um sujeito que nasceu em berço de ouro, sempre teve tudo nas mãos, nunca precisou estudar muito ou “dar o sangue” - como meu escritor gosta de escrever às vezes, utilizando ele de uma linguagem mais dada ao coloquial – para conseguir as coisas que queria. Ficou vivo até os trinta e nove anos para enfim se tornar o mandatário de todas as empresas beneficiadoras de algodão que o falecido pai lhe deixara por meio de testamento, antes de bater as botas no inverno daquele ano.

Sobremaneira poderoso, Sr. Carvalhaes apoderou-se de Cândida como um suvenir por ele muito desejado, e com ela se casou, sem ao menos se preocupar se a moça realmente o amava de verdade. Tudo indica que não, Cândida não era mulher de se deixar levar pela fortuna alheia ou pelo prestígio conseguido de modo fácil e indigno. Nunca a vi ostentando orgulhos materiais, ou sustentando ambições na forma de reluzentes brilhantes. O que me fascinava em Cândida era teu jeitinho meigo, teu coração puro como a água de uma fonte no campo, teu gestos silenciosos e pensados, teu excesso de sentimentalidades.

O dono das empresas Algodões & Cia tinha uma mania, era quase tudo que sabia sobre ele, haja vista minha entrada tardia na história pelas mãos do poeta. Todos os dias, em horas e minutos quase que sagrados, Sr. Carvalhaes se dirigia às três janelas de seu escritório, na Rua Hagamenon Paiva, 223, zona leste da cidade. Por volta das nove horas e vinte minutos da manhã, o rico homem dirigia-se à janela menor, cujas laterais da sarjeta possuíam, cada qual, um vaso com flores coloridas. Por cerca de dez a quinze minutos lá permanecia, travando pequenos monólogos com as simpáticas plantinhas. Três e meia da tarde era a vez dele ir até a janela do meio do escritório, onde móbiles com fotografias de sua família pareciam sinalizar que ele não estava sozinho no mundo.

Era a janela onde ele permanecia por mais tempo durante o dia. Cerca de vinte minutos, aproximadamente. A terceira, e última, era visitada por ele sempre pouco antes de ir embora, no horário bem perto das oito da noite. Era seu momento de maior reflexão, quando parecia que tudo que havia sucedido no dia lhe atingia a alma, implicando-lhe a trituração de tudo dentro de si. Naquela janela, Sr. Carvalhaes maquinava seus dias de amanhã, futurava seus agires de fornicação com Cândida para quando chegasse em casa e a encontrasse, sempre pronta aos seus quereres, planejava as decisões em grande escala e longo prazo que tomaria em prol da continuidade da empresa. Não havia nenhum atrativo na tal janela, somente a leve presença de uma persiana azul que cobria a vista para os prédios vizinhos e o parque mais ao fundo.

A imagem do Sr. Carvalhaes escorado à janela era a mesma que agora sucumbia às minhas retinas, provavelmente imaginárias: a do poeta pensando, a do meu escritor elaborando estratégias e artifícios para poder dar seguimento a história que havia iniciado. Depois da morte de Cândida, eu me tornara a pessoa mais importante na vida do poeta. Sr. Carvalhaes agora não passava de um coadjuvante, carregado de mistérios tomados por mim como que quase insolucionáveis, homem mesquinho, indiferente à vida, cheio de rumos ainda dentro da trama, porém sem serventia para o momento que a narrativa pedia. Era o sinal de que minha liberdade estaria para ser posta à prova, assim que o poeta sentasse à escrivaninha e recomeçasse a contar. Eu me sentia livre, mas não havia como me desprender do poeta. Ele era o meu pai, uma espécie de protetor, de amigo, pessoa a qual devia a minha existência.

Tenho cinco anos de vida, tempo exato da escrita do primeiro livro do poeta onde apareço entre as linhas. Esta história está sendo a minha segunda aventura pelos caminhos criados pelo escritor que me fez. Tenho tanta coisa para perguntar a ele, que vez ou outra não me asseguro de quem realmente sou e o que estou a fazer aqui. Tenho sérias dúvidas acerca de meu nascimento. Penso ter sido adotado por ele, pois não se tem registro de minha infância em nenhum livro que ele escreveu – e olha que foram quinze publicações ao todo!

Vai chegar a hora de eu o colocar contra a parede e fazer, diante de seus próprios olhos, tais questionamentos. Quero ver a cara dele quando começar a perceber que também posso ter vida própria, que posso me mexer sozinho, independente do seu desejo. Ficará estupefato quando suspeitar que o personagem que ele próprio criou é livre até certo ponto, e que, caso ele se descuide, poderá perdê-lo para todo o sempre. Desmoronará aquele homem forte, arredio, dono de si. Entrará ele em desespero, homem tão encarapuçado e protegido pela sabedoria dos anos? Melhor não pensar assim, por enquanto, pode parecer, prima facie, à pessoa que lerá esta história, que sou um sujeito vingativo, e isto, certamente, não sou.

Adentrei-me em tantos pensamentos, que não vi o poeta se deslocar de onde estava agora a pouco. Ele não está mais à janela. Não reparei em nada, tão intensamente perdido em mim que estava. Nem o balanço da sua sombra nas paredes do apartamento, nem o vento produzido por seu caminhar, absolutamente nada fora capaz de desviar a minha concentração enquanto imaginava modos de perturbá-lo. Eu estava olhando para dentro de mim e terminei me esquecendo do mundo aqui fora, a realidade que mais terei a sorte de conhecer.

Decidi levantar da cadeira e procurar meu escritor pelos cômodos, mas foi em vão. Entrei em desespero quando me dei conta de que só havia um canto da casa onde não tinha fuçado nem chegado perto. Sim, a janela. À guisa de meus olhos, o relógio de parede marcava quase oito horas. O Sr. Carvalhaes me ebuliu à mente, diante da janela com persianas azuis no seu escritório, a pensar sobre a vida. Lembrei que quando Cândida despencou da janela de sua casa, eu estava descendo os degraus da escada do prédio onde ela morava e que, quando apontei na rua, arfante e com passos aligeirados, o poeta usou de um flashback para ajudar na montagem da trama. Daí o meu sumiço temporário, a elevação de minhas recorrentes dúvidas, a minha espera pelo decurso dos episódios sentado solitariamente nesta cadeira fria de madeira a perscrutá-lo friamente em seu estranho afastamento da escrita do texto. Pensei ruidosamente no que seria de mim a partir de agora, no que faria, assim, destituído do ser de quem mais precisava.

Para não sofrer muito, sentei-me novamente no mesmo lugar e preferi pensar na possibilidade de o poeta ter saído para comprar um pacote de café ou um litro de leite para a prometida noite de exercício da literatura. Eu não podia, sob nenhuma circunstância, aproximar-me daquelas persianas azuis. Era a minha liberdade que estava em jogo. Era o conhecimento das razões da morte da mulher que mais amei em toda a minha vida que me queimava a alma. Era a sabedoria dos pensares que se passavam pela mente maquiavélica do Sr. Carvalhaes sacudindo meu ser. Era eu, mais do que nunca, dependendo de mim. Era a minha morte no conto, na história, por um fio: fio da navalha. E como sempre quis crer, o fim era algo impossível de ser pensado. Por isso não movi um centímetro dos meus medos, e ali persisti, na temente espera das gavetas.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Bakhtin e a palavra


Por Germano Xavier

"A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o relatório comum do locutor e do interlocutor." (Bakhtin)

O pensamento bakhtiniano é amplo, e o interacionismo, em acepções também diversas, é a mola propulsora de todo um arcabouço ideológico que preza pela reflexão construtiva da linguagem. O outro lado da moeda, ou seja, a língua em uso, é também elemento basilar para o desenvolvimento da teoria do russo. Há pontos que merecem destaque. A palavra, para começo de conversa, não pode ser vista como único e terminal elemento do processo de enunciação. Para Bakhtin, a palavra é mais um meio facilitador da ação enunciativa, e a produção do sentido não se encerra nela, exclusivamente. A palavra, tomada como participante do todo contextual de um respectivo texto, termina por dar voz ao indivíduo, situando-o num intervalo espacial-social muito mais complexo, dando-lhe vida, forma, cor e movimento. É daqui que surge a polifonia, fragmento do estudo bakhtiniano que vai caracterizar-se pela percepção e valoração das inúmeras vozes textuais. A polifonia, por sua vez, está intimamente ligada ao dialogismo que, como formando uma tessitura única e bem sedimentada, une-se aos quesitos argumentativos, de produção e recepção de mensagens, o que faz do texto, da enunciação, um processo vivo que extrapola as esferas mínimas de significação e representação dos fenômenos linguísticos. Para tanto, o ensino da língua portuguesa, esteja ele em qualquer nível sendo trabalhado, precisa enxergar que a sua matéria-prima, a língua, é mais uma ferramenta mutável, passível de transformações e de adaptações. Agindo dessa maneira, o educador tenderá a, percebendo e valorizando o conhecimento prévio de cada aluno-indivíduo, vislumbrando os fatores de condicionamento social-histórico de uma dada comunidade, sabedor do processo dialógico de construção do saber, cobrir as deficiências linguístico-basais do alunado e, desse modo, proporcionar um ambiente mais eficiente para a difusão do saber, auxiliando na fomentação de um coletivo social crítico e inquiridor, capaz de reaver seu posicionamento perante si próprio e o mundo.

Meus crônicos vinte e poucos anos


Por Germano Xavier

Nasci numa pequena cidade baiana, nordeste brasileiro, mais precisamente sob os auspícios dos morros selvagens da imponente Chapada Diamantina, Iraquara, fui criança, joguei bola na rua, travinhas feitas com nossos chinelos surrados, topei o dedo várias vezes, andei e caí de bicicleta, bola de gude, soltei pipa, pulei muro, puxei carrinho pela rua, caminhei descalço, resfriado, bicho-de-porco, unha roxa, unha que caiu, pingue-pongue, casa dos bancários, joguei Game-Boy, Tatiane, rua Tito Luna Freire, “taco-no-chão”, água de mangueira, beca de matar lagartixa, espingarda de chumbinho, cachorros, caretas, bolo-na-mão, elásticos, bola na grama, mistério, rua de baixo e rua de cima, morcego, vadiações, futebol, brincadeira, parque de diversões, novidade, espírito desbravador, meu pai que troca de carro, carro grande agora, todos os meus tios pernambucanos e carecas, inocência, meninas, joelhos de meninas, tornozelos, meu irmão maior Gustavo, réveillon, teclado, revista Quatro Rodas, leitura na cama, velas acesas, número 17, signo de câncer, solidão, primeiros versos, carnaval em Palmeiras, banhos no Mucugezinho, doce de leite no posto de gasolina, Itaberaba, casa que nunca existiu, estudo que não também, desencontros, picanha de Itaberaba, minha mãe que discute, notas altas, menino calado, aula de português, primeiro esboço passional, colegas eternos, Abelardo, Tatiane, Hortência, Ykatierina, desencontro, desespero, reza, minha mãe, presentes do meu padrinho Tibiro, uniforme escolar, cantina, salgadinho de bacon, desilusões, futebol de bola de meia, pênalti perdido nas Olimpíadas Estudantis, CDF, praça da igreja, talvez o amor, brigas, retornos, van, escola, festinhas, minhas primas e meus primos, vídeo-game, Lucas, Kung Fu, Karatê, formaturas, poesia, gincanas, medalhas, desfiles de 7 de setembro, concurso da bicicleta mais enfeitada, desilusões, passeios, Carminha, tempos áureos, Educandário José de Arimatéia, aluno nota 10, menino muito calado, professor Édson que fez uma arraia gigante para mim, N2002, Qchute ou Kchute, primeira aula de física na 8ª série com a professora Ana Emília, aluno nota 10, medalhas e troféus, menino calado e aluno nota 10, a sala de aula vazia no intervalo, só um menino só, prova, diversão, meninas, um rapaz calado, muito calado o rapaz, vergonha, poesia, primeiros passos, "A poesia é a insânia¹", vergonha, pele branca, vergonha de ser branco demais, Meu pé de laranja lima, Os cavaleiros do zodíaco, voz começa a engrossar, febre dos salgadinhos da Elma Chips, muito picolé antes de ir estudar, também muito mel num pires, silêncio, mais poesia, mais solidão, reggae, cursos, vestibular, loucuras, rua vazia, poesia, aluno nota 9, poesia, poesia, poesia, ladeiras, suor, calor, idas e vindas, livros, livros, livros, livros, sexo, poesia, aluno que se transforma em professor, responsabilidades, reconhecimento, meninas, cabeça cansada, cansaço, jornalismo, tempo que passa, vozes elevadas, sofrimento, lágrimas, desilusão, tristeza, casa de amiga, vontade de pular do Morro do Pai Inácio, a morte, a vida, vontade de viver, vontade de dar a volta por cima, ou por baixo mesmo, remédios para dormir, injeções, comprimidos contra uma possível loucura, solidão, aula de redação, poesia, biblioteca, poesia, revolta, solidão, poesia, vergonha, solidão, menino calado, esquisito rapaz misterioso, garoto anti-social, poesia, poesia, poesia, palavras, palavras, solidão, poesia, menino calado... e tantas outras coisinhas que vivi em Iraquara, tantas outras, tantas...


Notas.
1 – Aforismo de Sêneca, pensador grego.

Livramento


Por Germano Xavier

VIII

E há será? O que é o futuro? Acordei um tanto soturno e pesado. Lágrimas presas. São os meus sonhos, eles parecem se afastar de mim quando mais necessito deles. Já esgotei o meu estoque particular de psicotrópicos. Tenho de me reforçar, o ano já vai raiando com todas as suas pseudoluzes. A preparação e a prevenção são de uma importância indizível. Tenho de fazer uma lista daqueles remédios de tarja preta que amo.

Ultimamente ando eufórico. Um princípio de explosão interna que ainda não descobri suas razões. Deve ser ainda a proximidade dessas festas, desses bacanais onde as pessoas exibem os seus mais novos trajes de falsidade brilhante. A melhor vestimenta é aquela que causar maior inveja e distanciamento. Estou sentado no chão de azulejos vermelhos da varanda da casa onde moro. Estou pensando na Morte, ou melhor, estou pensando em que tipo de Morte virá me abater. Os escritores são grandes inventores de mortes. O pior de tudo é que alguns deles morrem justamente do tipo de morte que inventaram, às vezes no momento exato da criação, como é o caso de um colega de ofício meu. O nome dele era Anacreonte. Anacreonte, que era poeta, escrevia celebrando o vinho e o amor. Certo dia, quando escrevia sobre um rapaz grego que morreu engasgado pelo amor, a "última das vistas" veio a ele fazer uma visitinha. Não deu outra, era uma vez Anacreonte. Meu amigo acabou se engasgando com um bago de uvas. Ai, minha cabeça! Há coisas inaceitáveis nessa vida. Não que ele amasse os tais frutinhos... é que os escritores gostam de dizer que possuem certas manias.

Mas que tipo de escritor sou eu, que até o prezado momento não detém a patente de nenhuma morte? Eu sei, eu não mereço a vida que tenho, e muitas pessoas estão na mesma fila. Os hospitais! Eu preciso de um leito só para mim, com paredes brancas e vista para o Atlântico. Eu preciso perceber o tamanho da minha insignificância... e essa imensidão azul...

Você viu Vida? Tocaste a Vida? Para onde a Vida te levou? Eu sei que você está um pouco constrangido com o que escrevo. Não fique assim. Não precisa se preocupar comigo. O teu sentimento só a ti pertence. Ah, se eu pudesse comandar teu rumo...

Vamos! Vai ficar aí, esperando a Morte chegar? Eu só quero que vocês me entendam! Eu só estou aqui de passagem e não estou nem aí para essa realidade. Vou enfiar a caneta nos meus olhos. Ai, que vontade estranha! Um dedo de prazer, é isso o que sinto nesse instante. Não, definitivamente não! Enfiar a caneta no globo ocular talvez não seja uma idéia original. Vocês sabem, os escritores estão sempre atrás de uma idéia original, o que na pós-modernidade é uma matéria-prima muito rara.

Meus esforços anticivilização estão cada vez mais brandos.
Eu não posso desistir! Onde os meus anticonvulsivos?
Senhor, livra-me das perdições dos homens...

Livra-me!

domingo, 8 de maio de 2011

Caminho


Por Germano Xavier

Múrmur de pedras caídas
Coruchéus em opúsculos mitigados
Chineladas no vazio

sábado, 7 de maio de 2011

Vernissage


Por Germano Xavier

Pôr nas paredes da grande galeria
a tua peregrinação,
a tua visita à Ítaca
(ou às Ítacas),
os teus significados jamais encontrados,
porém cumpridos pelo caminho.
Expor tuas idas
e teus regressos.
Revelar a sensualidade
com que destes os primeiros passos.
Dispor tuas semeaduras,
tuas hortas, teus frutos,
mesmo repleto de tardes ou ao relento.
Pegar do pincel noturno
e retocar aquele sorriso quase morto,
tua relíquia. Tingir de Novo o Velho.
Desconstruir, reconstruir.
Reescrever.
Pôr nas paredes da grande galeria
o teu crisol, um dia antes
dos olhares lhe apontarem as vistas
- que é para não causar estardalhaço.
Iluminar os cantinhos com luzes de um sol
inesquecível de uma manhã acompanhada.
Iluminar-se.
Vagalumear-se.
No final, escancara tuas falhas
e deixa que o vento as varra
(momento de nascimentos).

Dia seguinte:
"Lindas terracotas!"

Sem mestre nem doutores


Por Germano Xavier

pouca coisa aprendi na escola. o mais fútil e o mais imprestável, talvez. alguma continha de subtrair números, uma ou outra forma animal e vegetal, dois ou três nomes que alguém colocou em pirâmides e uma dúzia de sobrenomes e datas. apenas isso. coisa de valor mesmo, quase nada. uma vez o professor fez uma arraia para mim, gigante e pesada, e eu achei aquilo funcional e interessante. pelo menos me fez pensar em que vento seria capaz de levantar aquele brinquedo tão gigante e pesado. foi assim que comecei a gostar de geografia. na escola, ninguém ensinava nada. hoje também é assim. os professores ficam presos aos livros processados pela máquina do-fazer-não-pensar-do-governo e terminam por repetir erros primários. e eu que sempre achei que errar fosse a prova cabal de que se está aprendendo. sem sombra de dúvidas, aprender é, necessariamente, errar. quando erramos, mudamos de comportamento. mudamos para não cometermos o mesmo erro. eu sempre gostei de aprender, mas nunca gostei de errar. e quem gosta? errar é doloroso. errar é uma faca entrando na altura do peito e lhe tirando o ar. e errar também pode custar uma vida. melhor nem pensar nisso.

Macadâmias


Por Germano Xavier

Adalgisa Caiman da Silva


Foi na fila do banco, hoje pela manhã. Cinco pessoas ainda em minha frente e ela despontou no portão de vidro. Despontou, não. Melhor dizendo, aconteceu! A mulher era brega, viu, benzadeus! Cabelo alourado em coque, torcido e amarrado por uma cordilha de pedras brilhantes. Blusão verde combinando com a pintura nas pálpebras. Rouge e uma sobrancelha artificial pintada em tom amarronzado, destoando de todo o conjunto. Uma calça preta colada ao corpo cinquentão. Sem falar da bolsa, da argola, do relógio, da plataforma, das pulseiras, do cinto, do colar, do batom... ai, meu jesus!, e sem falar do papo com a Márcia, sua amiga de fila de banco.

- Ai, Márcia, me diz qual é a condição que eu tenho de pagar oitocentos e sessenta reais por um exame de rotina. E isso à vista! Qual é o dinheiro que eu tenho, Márcia!? Oitocentos e sessenta foi o que o médico me pediu. Pra fazer aquele exame que aquela cantora fez esses dias, sabe. Transvaginal, mamografia, conferir como está o meu DIU, hein, Márcia, me diz, como é?!

A Adalgisa não desgrudava da Márcia. E a Márcia, coitada, assalariada de uma empresa de embalagens plásticas, preocupada agora com os oitocentos e sessenta reais do suado salário que tinha acabado de entrar em sua conta.

Fernando Rebouças

Não via a hora de usar a gravata que o pai, com muito sacrifício, havia comprado para a festa. Modos antigos tinha o Fernando desde pequeno. Desde as cores das calças ao cabelo com brilhantina que usava na matinê, lá no clube do velho Ariosvaldo. Primogênito de uma família de oito, sempre teve de fazer alguma coisa para ajudar em casa. Perante os irmãos, sempre ganhou as coisas no grito. Mas aí Fernando se tornou o Fernando Rebouças, distinto estudante de Direito na faculdade pública. Lá, conheceu gente, muita gente, entrou para o movimento estudantil, arquitetou reuniões, pautou assuntos urgentes, debateu outros no horário do intervalo mesmo, vestiu camisa do Che, fumou maconha, viajou com todas as despesas pagas pelo reitor para muitos congressos e encontros de jovens joviais e esperançosos ainda em alguma coisa ligada ao radicalismo ou apenas na cor vermelha, deixou o cabelo crescer, quis ficar sujo pra parecer socialista, aprimorou sua dicção verborrágica, leu coisas sobre Zapatismo e Bolívar, organizou exposição sobre o maio de 68, calçou chinelo feito de borracha de pneu velho, pensou em ser hippie, leu On the road, leu poesia de Martí, pensou em liberdade de expressão, em direito à vida, em cidadania, pensou em miséria, em desigualdade social, analisou toda a sua retórica de protesto, passou a fumar um maço por dia, pensou em ser vegetariano, quis ser sempre sintético e amar muitas mulheres jovens joviais e esperançosas em alguma qualquer forma de radicalismo como ele, quis aprender a tocar violão pra juntar amizades e ficar ainda mais popular no meio, curtiu a lua, curtiu o sol, deixou a barba grande cobrir as bochechas, comeu a Marta - aquela jovem jovial e esperançosa totalmente sem graça do quinto período - porque ele era sintético, o Fernando, era de bate-pronto e sempre de ganhar as coisas no grito, não amou ninguém porque é careta no ambiente dele e foi pra rua, finalmente, fazer pedágio pra arrecadar no grito dinheiro para a festa de formatura no fim do ano.

Wilson Jackson

Wilson Jackson foi um brasileiro que viveu a vida inteira pensando no porquê dele não ter nascido na Estônia.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Porque não sei perder você


Por Germano Xavier

Uma agonia. Ontem revi um dos meus vários fantasmas da infância. Era um dos estafetas, arauto de alguma coisa que quase sempre acontecia depois. Por isso, hoje, por onde estive andei encabulado, numa espécie de assustamento que tomou conta de todos os meus passos.

O teto branco do apartamento onde moro deixou de ser o simples teto branco do apartamento onde moro, transformou-se no teto antigo, forrado em madeira, da antiga casa onde cresci, recheado de imagens que eu perscrutava noturnamente, silenciosamente, diariamente. Um teto de lembranças esquisitas, morada de algumas entidades que me fizeram companhia por um longo tempo, antes de começar a perder, paulatinamente, aquela nossa potencial essência para o fantástico, natural quando se observa o levantar dos anos.

Sexta-feira, 16. Uma noite singular, por excelência. Tive a nítida impressão de que eu me fui novamente, como há muito... como nos tempos em que, mais que habitei Iraquara, vivi Iraquara. Eu a me levantar, suado, com uma adaga de prata em minha mão direita, na esquerda um escudo de bronze, olhar rijo, direcionado ao vago.

Aquele mesmo menino caçador de aventuras, aquele mesmo guerreiro leitor, moleque, em busca de estradas estranhas que só ele enxergava, procurando encontrar a sua sombra, o seu outro, o seu desconhecido, ele mesmo, sempre.

- Mas como és propícia ao alumbramento, Iraquara! Você com todas as suas lendas, os seus casos, a sua paralisante imagem bela dos seus interiores quase esquecidos por quem só sabe passar, germinam dentro do homem a certeza da sorte. Você sabe ser arcano e suspense, como uma mestra a manejar movimentos e ares em seus discípulos ainda na manhã recém-nascida.

Sua adolescência febril se materializando, menina-moça nem cinquentona ainda, e eu lendo seus reflexos pela janela do meu quarto, suas crescidões aligeiradas, observadas quando eu pegava meu carrinho de madeira e ia perambular por suas ruas, indo para os lados e para os cantos todos que têm a rosa-dos-ventos.

Solitário entre tantos papéis lhe estudando, o teto de estrelas brilhando por sobre a minha cabeça, a imaginação fluindo ventanias gélidas, viajando velas por riachos tão singulares, levando-me a crer que aquela deusa que presenteou com tantos poderes naturais, no bosque da fantasia real, por ora passeara ao meu lado, de mãos dadas, pegadas germinando pastos de esperança, vestígios deliberando vontades, a essência contígua e mútua fomentando florações.

- Iraquara, terra de destilar paixões, quem és digno de sua morada? Quem irá saber lhe condenar ou manipular seus impérios de sol e de lua? Quem será dono da façanha de lhe desvendar?

Conhecer-te um dia, no lar peninsular de minha ilha, fazer-te minha, inteiramente, sem desperdícios... conhecer-te a ti, para conhecer-me mais, para desvelar-me, posto que sou baú de arcanos, meu sonho. Conhecer-te um dia, apenas. Conhecer-te para o sempre, para o que não se finda, para a não necessidade de outros conheceres, para permanecer perene até o fim, até a última gestação da vida, até a derradeira fagulha, até a última centelha minha se apagar...e eu cair, debruçado, sobre o mesmo chão que me viu feliz. Conhecer-te, Cidade das Grutas, conhecer-te uma hora sequer, quem sabe, um minuto que seja, e suspeitar de tudo que é seu, de tudo que a ti e somente a ti pertence.

- Quem dos teus filhos nascerá tão grande a ponto de lhe fazer entendimento, linha reta, norte sem curvas, sem medos nem erros? Quem dos teus rebentos safar-se-á do perigo de Dâmocles¹ e saberá lhe dirigir rotas menos traiçoeiras? Quem, Iraquara, quem?

Por você, peço licença ao mestre Carlos Drummond de Andrade² e me confidencio um pouco mais, num poema:


Confidências do Iraquarense

Alguns anos vivi em Iraquara.
Principalmente nasci em Iraquara.
Por isso sou triste, sentimental: de cal.
Noventa por cento de cal nas calçadas.
Oitenta por cento de cal nas almas.
E este alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o estudo,
vem de Iraquara, de suas noites frias, sem pressa e sem tempo.
E o hábito de sofrer, que tanto me persegue,
É doce herança Iraquarense.
De Iraquara trouxe prendas diversas que hora te ofereço:
esta humanidade de criar-se feito bicho;
esta pedra de ferro, futuro cal do Brasil;
esta ardósia riscada em desenhos, na parede da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive amigos, glórias, tive instantes.
Hoje sou seu estudante.
Iraquara não é apenas uma fotografia na lembrança.
Mas como dói.


Perto daqui, como o Agostinho³, buscarei a verdade. A verdade é minha própria vida, ninguém me impedirá! A disciplina, poeta ou homem comum, é necessária, como correr o risco de perder para o vento forte a bandeira no alto de sua elevação. Os mastros sempre tendem à queda, perigosamente. Mas, eu sei, minha hora há de chegar, a devida hora para alguma coisa. E nessa hora uma das coisas que não quero que se perca em mim é esta minha carência de sentir você ainda mais viva dentro do meu peito, em amor e ódio.

Certo é que, mesmo deixando você ir livremente, não desejo o seu sumiço integral, Iraquara. Hoje, pela manhã, percebi isso na voz daquele que dizia "vai", e me aconteceu. Sou seu filho e não sei explicar. Aconteceu, assim, vitoriosamente, em louros e silvos de pintassilgos. Foi quando me lembrei do meu fantasma estafeta...


Notas.
1 – Conselheiro da Corte de Dionísio, o Velho, na mitologia grega.
2 – Poeta mineiro, autor do poema Confidências do Itabirano.
3 – Santo Agostinho de Hipona, bispo católico, teólogo e filósofo.