sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Mais um tempo de nascer



Por Germano Xavier

Sejamos francos: o mundo já não pode ser mais descoberto. Já invadimos os seus escuros. Todavia, ainda é um dia bonito esse. No corredor externo estou, no manejo de minha antiga máquina de escrever, hoje revisitada por meus artelhos. Bonito também o cenário que minha parte oeste agora avista, um céu sutilmente azul, sem exageros, dois coqueirais adolescentes, verdes com extremidades douradas. E tudo isso por detrás do muro rosáceo que traça um espaço limítrofe com a casa contígua. Mas eu sei – a gente sempre deseja o além e o ademais das coisas -, ou imagino saber, que a vida não é só isso que nos acerca em rutilâncias e fulgores. Creio isso ser o de menos, o fungível. Dizem os sinos que o Bom Homem nasceu e que ano finda agora. Mas não conheço o Homem e nem sei se acredito. Tanto que se porventura alguma vez em minha vida estive ao seu lado, não me ative aos seus encalços. E no momento estou descalço. Na verdade, nenhum borrachudo abafou meus pés no dia que acontece. Coisa de cinco graus abaixo da temperatura ambiente é como deve estar o velho piso retangular e avermelhado do rol em que estou, mas não estou com frio. Dificilmente sinto frio. Tenho essa sensação por outras coisas, não pelo frio propriamente dito, mas que ela existe é certo que sim. E é justamente por esses desencadeamentos, muitas vezes inoportunos, que tomo consciência do quão estranho posso ser se. E sou somente isso? Certamente não. Significo. Fito novamente o vermelho dos azulejos. Sinais de passos não existem, como não há nada de interessante em meu horizonte leste. Apenas um lavabo sujo onde as pessoas se imaginam purificadas depois de um ligeiro asseio matinal. E sei que o cachorro também é leste, o quintal fica para o ocidente. Todavia, nem sempre foi assim. Será sempre para sempre? Mas nem os “todavias” importam agora. Dizem as línguas, boas e más, que alguém nasceu e o ano finda. A vida sempre está além de qualquer coisa. Entre outras pessoas, o não se ater ao ínfimo é coisa natural. Não sei suprir minhas deficiências com suplementos vitamínicos sintéticos. Não sei. Aprendi desde cedo que o bom mesmo é o que dá trabalho, que nos faz pestanejar, suar. Aquilo de sentar a bunda numa cadeira, noite inteira, noite adentro, aquilo de suar a camisa, de matar o leão diário. Aprendi em casa que a vida, para ser boa, tem de ser dura. E tem sido assim comigo desde o dia em que resolvi que morreria escrevendo. Tem sido árdua a minha vida, apesar de não parecer. Disse, sim, ensimesmado, numa certa tarde de março ou abril, de algum certo ou incerto ano, que minha missão aqui na Terra seria escrever, deixar coisas impressas em papéis. Escrever sobre tudo, sob tudo, com pressa, compresso, sem, com, amando, detestando, não e sim, escrever, escrever sem fim. Faz alguns anos e hoje estou dos meus vinte e tantos de vida. Os últimos passei lendo e escrevendo. Poemas sem pé nem cabeça, prosas sem graça, com graça, desejosas, textos e textos. Vida escorrida do meu peito, do que já vi, ouvi, li, senti. E mesmo olhando os muitos papéis que guardo comigo, tingidos numa letra horrivelmente medonha, perco-me e não sei dizer se estou indo como desejei. Mas sinto que estou seguindo. Passos lentos, ingênuos ainda, mas estou. E isso me faz alegre, porque triste já sou de nascido. Escrever me faz acordar do pouco sono que durmo, alimenta-me na tarde dominical de fome anímica, seduz-me, apaixona-me, diz a mim que sou algo e isso basta. Sou algo para mim, e basta! Escrevo, escrevo, escrevo. Escrevi. Escreverei. Sim, escreverei até quando me for possível escrever, até quando me for possível destilar minha água podre ou límpida num papel alvo, puro de tanta criança interna. Portanto, faça daí que faço de cá. Esqueçamos um pouco dos frios e acendamos nossos quentes. É um pedido. Feliz 2011.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Uma epígrafe nota de sangue quente


Por Germano Xavier

Por vezes, quando tomamos um livro em nossas mãos, é a capa, bem chamativa, que nos convida a lê-lo. Outras vezes é a brochura, o cuidado com o acabamento, a dedicatória que o autor usou, a cor do papel, as ilustrações, o gênero textual, a quantidade de páginas, o próprio autor, entre tantos outros aspectos que esse suporte pode oferecer em direção a uma atitude de fidelidade envolvendo o duplo leitor-interlocutor. Durante estas minhas andanças por lugares imaginários e reais, impressos em páginas de livros, muitas vezes deixei-me dominar por pequenos sinais que um ou outro catatau me enviava. Porém, mesmo depois de quase dois anos de lido, a epígrafe-nota do livro A Sangue Frio (In Cold Blood ), escrito por Truman Capote em 1959, relato de um grotesco assassinato em cadeia no interior do Kansas, nos Estados Unidos, ainda não viu concorrente em minhas anotações oculares, tamanho o seu potencial expressivo. A bem da verdade é que ainda estou por ver algo tão sintético e puro, algo tão capaz de dizer aquilo que sempre quis um dia, para o Deus-Palavra e para mim.

Eis o fragmento:

"Um dia, comecei a escrever, sem saber que me acorrentava por toda vida a um senhor nobre, porém implacável. Quando Deus nos dá um dom, ele também nos dá um chicote; e o chicote se destina apenas a autoflagelação... Estou aqui na escuridão de minha loucura, sozinho com o meu baralho - e, é claro, o chicote que Deus me deu."

Nada tão verdadeiro.