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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A palo seco (ou O melhor baile que não dancei)

*

Por Germano Xavier

Para Belchior, selvagem homem de corações.



A casa da minha melhor infância era grande, de vários cômodos, duas salas imensas, uma dedicada somente às esporádicas visitas. Esta, a maior, vivia sempre arrumada e com um ar solene misto de silêncio e inacessibilidade. Lembro muito bem. Meados dos anos 90, eu já entendedor das coisas, um gosto musical amadurecendo por dentro. No centro da sala, encostado à parede branca, ao lado da porta principal da casa, um imponente Gradiente 3 em 1. Entrei na sala descalço. Piso gelado de um dia bom na minha Chapada Diamantina. Toquei o botão Power. Pequenas luzes por toda a face do aparelho beliscaram com brilho o mofo do tempo. Naquele dia, minha professora de português, de nome Dalva, havia me emprestado um disco que tinha um homem bigodudo na capa. “Você vai gostar”, disse ela ao me passar o objeto.

Nessa época eu começava a esboçar, dentro e fora do ambiente escolar, um certo gosto pela leitura e pela escrita. Gosto é só um modo de falar, pois para mim era mesmo uma grande obsessão. Claro que fiquei surpreso. Do nada, a professora me emprestara um disco pessoal. Logo após o almoço, fui ter com todo aquele mistério. Mistura de curiosidade e apreensão. Levantei a tampa, posicionei o LP na pista plástica circular, ajustei a agulha, xiiii... Som! “Se você vier me perguntar por onde andei/No tempo em que você sonhava/De olhos abertos, lhe direi:/Amigo, eu me desesperava/Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português”...

A música entrando na alma e meus olhos vidrados na capa, fitando a letra da canção, os detalhes, as cores, os melindres, os alcances dos sentidos que me formavam e que borbulhavam como um grande astro em fervura, arrastando-me dali em questão de segundos. “Belchior”, eu li. “Belchior”. “A palo seco”. “Que será que significa?” A música tocando. “A palo seco”. “Tenho vinte e cinco anos/De sonho e de sangue/E de América do Sul/Por força deste destino/Um tango argentino/Me vai bem melhor que um blues/Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/E eu quero é que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês/E eu quero é que esse canto torto/Feito faca, corte a carne de vocês”...

Aquele canto torto, feito faca, cortando na pele, a pele que é deveras a parte mais profunda da gente, aquela voz desesperada a me revelar uma tonalidade de mundo bem mais forte da que eu suspeitava até então... “Belchior”, eu lia. “Belchior”, eu repetia aquele nome desordenadamente. A sala, naquele instante, havia sido preenchida por uma espécie de espuma invisível, que tomava conta dos quatro cantos a formar uma câmara acústica de tal modo perfeita que todos os sons imprestáveis do mundo haviam dado lugar à mensagem que aquela voz me trazia. Mensagem de rebeldia, de pertencimento, de chão, de poesia, de humanidade, de sensibilidade, de veracidade, de engrandecimento, de simplicidade. Dessa forma, e durante todo o disco, como um encontro às avessas, marcado pelo espanto alegre, escutei Belchior pela primeira vez em minha vida. E aquilo me soou como uma voz ancestral, meio mágica, meio mítica.

Dali em diante, Belchior faria parte de minhas andanças pelo mundo tal qual um oráculo sempre presente e prestes a aconselhar-me sobre minhas próprias forças individuais, sobre minha identidade, sobre meus passos. Já homem, crescido em meus pra-lá de 20 anos, estudante em terras estrangeiras, fiquei sabendo por telefone que aquele músico fantástico e tão amado por mim iria se apresentar no tradicional festejo de São João da cidade baiana de Iraquara, minha terra natal. Impossibilitado de ir vê-lo se apresentar, por inúmeros fatores, acabei escutando-o à distância, num compasso que transcendeu uma vontade irrefreável. 

Tempos depois, vi algumas fotos do Belchior no pequeno palco montado no meio da praça Péricles Gama, empunhando seu violão selvagem e sua voz forte nordestina erguida numa jaqueta jeans de grosso pano. Vi, também, que ele até posou com moradores conhecidos do lugar que me viu nascer após o show. Certo é que jamais esqueci aquelas imagens. Era Belchior sob o céu estrelado da minha Iraquara. Era uma rota aberta no meio do meu espanto. Uma trilha salpicada de dores e amores a partir de um coração rebelde fincado na história de minha própria vida. Uma estrela que não vi passar, mas que senti, a palo seco, feito fúria engolida às vésperas de toda uma particular criação, como a iluminar o canto úmido de vida que há em minhas palavras.


* Imagem: http://www.deviantart.com/art/Belchior-251954440

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A minha bola Carreiro

*
Por Germano Xavier

Eu tinha pouco mais de dez anos quando comprei a minha primeira bola de verdade. Colorida em vários tons, uma pequena couraça, bola para uma vida inteira – imaginava eu. De uma vida toda, não sei bem se conseguiria ser, mas o certo é que ela representou muito para mim, tanto que nunca a esqueci. Foi ela a bola mais importante de toda a minha infância, ao menos. A bola que carregou consigo, no ar embutido em sua diminuta câmara, todo o meu desejo de menino. Da fabricante Carreiro, comprada no antigo armazém do senhor Zé Lebeta com o dinheiro que a minha mãe me dava depois de ajudá-la a carregar o bocapiu nas feiras livres dos sábados iraquarenses, a esfera lúdica de meus sonhos havia sido feita de magia. 

Antes da minha primeira bola de couro, só conseguia ter “pingos de leite” ou “dentes de leite”, como eram chamadas as bolas feitas com borrachas ou plásticos mixurucas e que eram vendidas a preços irrisórios nos mercadinhos da minha cidade natal. Estas furavam rapidamente, ao menor toque com a superfície pontuda de um qualquer malvado espinho-matador, desperdiçando na gente toda uma carga de energia brincante dentro do coração de todos que gozavam de seus respectivos quiques. Eram bolas, mas não era aquela bola Carreiro colorida que havia conseguido comprar com meu próprio suor de menino ajudador de mãe.

Todavia, tal qual a pior das maldições, tive de presenciar a falência de minha bola couraça logo no primeiro dia de uso, no meio de uma tarde clara e de céu azul. Não sei o porquê de tamanho desastre, mas ela murchou depois de alguns contáveis chutes solitários que dei contra a parede lisa da garagem, como a testá-la antes dos possíveis jogos oficiais. Inexplicável a sensação. Eu sentia dor, sentia tristeza. Não pude fazer nada, a não ser tomá-la contra o peito e abraçar a sua matéria murcha, agora já sem vida. Minha primeira bola de verdade significou o meu inaugural contato com a morte.

Tantas situações quistas, desejadas em sua companhia, mas nada pode acontecer. O desfecho não havia sido o pensado. Um fim precoce para uma lição que duraria. A partir de então, a dor tornara-se mensurável dentro de mim, o tempo ganharia tom de instante. Fui-me recompondo paulatinamente por conta do exercício vivo da memória que tinha dela, bonita e cheia de cores, antes daquela total desordem de ânimo que me afetara. Eu precisei me reerguer. Eu precisei aprender a ser forte para aguentar – e aguentei, sendo. Olhando-a, com meus olhos de lágrimas presas, dei conta de que a perda também é repleta de beleza. Uma sublime, por vezes trágica, revelação.


* Imagem: Google.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Prantos de pai

*
Por Germano Xavier

em homenagem ao meu pai Carlos Adailton Xavier


Meu pai sempre foi um homem forte, apesar de possuir uma sensibilidade muito aflorada dentro de si – e quase nunca tornada em coisa pública, já vou esclarecendo. Forte no sentido de saber a hora exata de usar as palavras e ações as mais cabíveis e necessárias. Nas situações mais difíceis do dia-a-dia, lá estava ele e sua lucidez interminável, poder especial que o ajudava - e ainda é do mesmo jeito hoje - a superar todas as intempéries e problemas com uma considerável facilidade. 

Um forte antes de qualquer coisa, como diria o Euclides da Cunha, o sertanejo de São Bento do Una, nascido Carlos Adailton Xavier no interior de Pernambuco e que escolheu o território baiano da Chapada Diamantina como lugar de pouso quando já entrado na adultice. Eu, filho caçula, puxado à sensibilidade do pai e com uma capacidade de se espantar e de se encantar com uma facilidade extremada, admirava-o todos os dias, todas as horas - e ainda é do mesmo jeito hoje, só reforçando. 

Meu pai sempre carregará o símbolo do heroísmo quando de fronte aos meus olhos se encontrar. É um sentimento inalterável dentro de mim, que ainda hoje sinto e nutro com enorme prazer. Porém, minhas memórias, insistentemente fracas e falhas, teimam em não se esquecer das duas únicas vezes em que vi aquele sertanejo herói sucumbir em lágrimas, causando desconfortos incontestes e de dimensões opostas quando chegadas ao filho atônito e inerte que porventura era eu.

De chorar por pouca coisa, meu pai nunca foi. Imagine, então, o espanto que me acometeu, menino de pouco mais de uma infante adolescência ardida em urgências, quando depois de um rápido banho, terminando de cruzar o corredor principal da casa, vislumbrei aos prantos soluçantes o meu pai, em pose cabisbaixa nunca antes observada em tais paragens do lar, ali no sofá preto lustroso, olhos pequenos e espremidos por tamanha tristeza, por sua irmã Estelita que acabava de iniciar a travessia eterna.

Eu sem saber se minha aproximação seria algo aconchegante, fiquei de longe segurando secretas lágrimas que naquele instante brotavam nas arestas de meus olhos. Tonto, cambaleei até a cozinha, quando minha mãe logo se encarregou de imprimir a notícia por completo em minhas significâncias ainda sem grande tenacidade nem maturação. Naquele dia, soube de maneira abrupta que meu pai não era um deus, mas um homem. Um homem que também chorava. 

O tempo passou e lá estava eu, após longos anos transcorridos, já crescido, formado e com um destino incerto diante das vistas, a me direcionar até a misteriosa cidade de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Aventureiro das causas incompletas ou desimportantes, abracei o vento dos dias sem formação e na despedida, à beira da porta que dava para a sala de embarque do aeroporto da capital de São Salvador, atraquei-me ao meu pai, que vertia lágrimas copiosas sobre meus ombros. Desta vez, não consegui segurar as cristalinas águas até então estocadas em minha represa interior. 

Era o filho mais novo vivendo um filme que o pai no passado já houvera registrado na carne e no espírito. A bem da verdade é que foram duas as únicas vezes em que vi o meu pai chorar. A última, não foi por um motivo triste, apesar do desfecho da história não ter sido dos mais comoventes. Além das imagens duais que ficaram gravadas em minhas retinas até o presente momento, guardei o gosto dos dois momentos e hoje, quando paro para escrever esta pequena crônica, fabrico em meu imaginário o terceiro choro do meu pai, que porventura poderá estar a ler o texto do filho, agora um choro de beleza, acolhedor. Um choro de sublime e pura contemplação.


* Imagem: Meu pai e eu, às margens do Rio São Francisco, em Petrolina-PE (2007).

sexta-feira, 22 de março de 2013

O palhaço de mim


Por Germano Xavier

Morreu aquele palhaço da minha infância, que aparecia esporadicamente, tacitamente, e que sempre cumpria estadia na praça da minha cidade, em frente ao hospital Américo Chagas. A minha infância não é tão longe assim, por isso sofro ainda com a viva lembrança daqueles cirquinhos de meia-tigela, pousados sobre o chão empoeirado daquela praça, praça abandonada.

Uma meia dúzia de artistas vestindo fantasias em farrapos, leões fedorentos, macaquinhos esfomeados, a menininha nômade com quem sempre me apaixonava, de cabelos loiros, que saltava do alto e dava rodopios de borboleta na frente de todo mundo, as lonas desgastadas, remendadas e já sem vida, sem cor, o carro de som divulgando o espetáculo das 8 horas, um som sujo, chiado, quase incompreensível, o palhaço na frente, a garotada esperando o tempo, aquele tempo, que não passava.

Quanta falta faz a alegria, mesmo a alegria comprada, advinda de um ingresso e de um saquinho de pipoca sem gosto nenhum, senão o da felicidade. Eu me lembro muito bem, a entrada sombria, repleta de lâmpadas cansadas, a cortina pendurada. A arquibancada erguida, de madeira, sempre dava a sensação que alguém, em algum momento, iria despencar. Mas a vontade de rir era mais forte que todos os perigos da felicidade.

Já no interior do cirquinho, a voz anunciando "E hoje, tem espetáculo?", em péssima equalização sonora... e todos respondendo "Tem, sim senhor!!!", para um senhor que nunca conhecemos, nunca vimos o rosto, mas que na nossa imaginação existia e tinha a feição de um palhaço. De um palhaço mesmo, artista que aprendia a arte do riso no próprio circo, e não de um Clown, artista estudado em escolas e cursos circenses.

O meu palhaço, o nosso bufão, era palhaço sem diploma, era o palhaço que precisava ser na hora em que estava no picadeiro, que nos dava passagem, tecnologia humana de ponta, feito de improvisos e instantaneidades.

Mas aquele palhaço envelheceu, o Biancorino que tanto caminhou ao meu lado, o Aziz, o Carlitos, o Carequinha, o Benjamim de Oliveira, o Bozo, todos o bobos, o Mixuruca, o Biribinha, os Dangas do Egito Antigo e até a Hilary Chaplain, todos eles, sem exceção, envelheceram em minha alma. Hoje estão petrificados, empalhados e suspensos em alguma parede do meu coração. Todavia, a criança que ainda há no meu peito, ainda espera aquele carrinho velho, sem farol e fumacento, que passava na porta de casa , e que revelava a indelével e fantástica surpresa de um sorriso no rosto.

terça-feira, 12 de março de 2013

Colecionando infâncias


Por Germano Xavier

Na minha infância, o sábado era sempre um dia especial. Eu acordava cedinho para ajudar minha mãe no leva-e-traz corriqueiro da feira livre, tradição de Iraquara. Era mais ou menos assim: depois de me levantar, nunca depois das oito horas – minha mãe dizia que depois de certa hora o consumidor só encontrava as sobras das mercadorias -, eu tomava o café da manhã reforçado e aprontava o bocapil artesanal que iria ser meu companheiro durante o restante da matina. Minha mãe, sempre bonita e bem arrumada, colocava as cédulas e as moedas que seriam gastas nas compras numa pequena bolsa de mão – mais tarde numa polchete de cor preta– e depois, entrando no carro, esperava sempre que eu abrisse a porta da garagem. Abria e fechava, mas nem sempre. Iraquara, naqueles idos, ainda era uma cidade onde os moradores podiam sem medo escancarar as entranhas de seus aposentos à luz dos olhares alheios.

Dentro do carro, rumávamos em direção à praça onde a feira acontecia – ainda hoje a feira acontece no mesmo local, com poucas mudanças -, ora seguindo pela Avenida Sílvio Almeida, ora descendo pela rua do antigo clube da cidade, passando pela pracinha do Banco. De longe já se podia ver o burburinho típico desse evento semanal. Pessoas com suas sacolas nas mãos, animais amarrados em árvores, fastiados e resmungões, quase sempre jumentos e cavalos em sua maioria, descansando sob a sombra, bagaços e toda a espécie de lixo esparramado pelo chão, antigos comerciantes cortando o fumo-de-rolo, os vendedores de especiarias, os gostosos e inigualáveis pães caseiros de Zú, os sacos repletos de farinha em diversas cores e gostos, as conversas amigáveis, as comadres em reencontros saudáveis ao espírito, as mocinhas aloiradas dos distritos e municípios vizinhos com seus encantadores olhinhos azuis ou verdes, as barracas diversas, o cheiro de carne e sangue impregnado na madeira e nas facas dos agrestes açougueiros, os cachorros na espreita por um naco de toucinho, os negociadores de qualquer coisa, ávidos como aranhas diante das presas, tudo, absolutamente tudo era já sentido mesmo estando a metros de distância do local.

Minha mãe procurava um local para estacionar o carro, quase sempre o mesmo, bem centralizado, para que ficasse mais fácil e rápido o trabalho que a mim era designado. Quase sempre começávamos pelas frutas, verduras, legumes, e só depois as carnes. Assim que o bocapil ia ficando cheio, lá ia eu, com a chave do carro em uma das mãos, despejar tudo no porta-malas e voltar para onde minha mãe estava. No começo, quando iniciei essa tarefa, encontrar minha mãe na volta era sempre um martírio. Ela nunca estava na barraca ou em suas proximidades. Porém, quando fui me acostumando, aprendi com a experiência qual o destino possível no qual minha mãe poderia estar. Apesar do movimento frenético das pessoas e da enorme variedade de feirantes vindos de diversas cidades vizinhas e das zonas rurais pertencentes à Iraquara, os barraqueiros tinham uma enorme facilidade em conquistar sua clientela e, desse modo, ficava mais fácil fazer tal dedução. Era quase sempre tiro-e-queda. Eu olhava na direção imaginada e lá estava ela, selecionando mais alguns alimentos.

A sensação de aventura incrustada nesse simples afazer era o que me movia a estar ali, sempre de prontidão quando o sábado raiava por entre os morros da Chapada Diamantina. Para mim, era uma espécie de divertimento. Fazia tudo com enorme prazer, e quão bom foi receber de minha mãe, já após muitos sábados levando e trazendo e carregando as coisas dentro do bocapil, uma quantia em dinheiro, algo entre um ou dois reais, como mérito ao meu esforço. Deveras um incentivo a mais para continuar o meu digno auxílio. Tudo não demorava mais que três horas. Depois da última “carrada”, eu ficava dentro do carro esperando minha mãe voltar. Era a hora de ela ir à parte das roupas dar uma olhada nas novidades. Às vezes passava um ou outro conhecido, amigo de futebol de rua ou colega de classe, e matava assim numa curta conversa o pouco tempo que me sobrava.

Daí pegávamos o rumo de casa. Abria e fechava o portão, depois ajudava a retirar as coisas do fundo do carro e colocar em cima da mesa os biscoitos, as laranjas, a “quebradinha” de que eu tanto gostava, os pimentões, a melancia – quase sempre devorada ali mesmo naquele instante -, onde depois minha mãe arrumaria tudo. Lembro que, com o dinheiro que ganhava em mãos, saía de casa a pé ou com a bicicleta em retorno à feira para comprar carrinhos de metal. Com aquele dinheiro eu comecei a construir minha primeira coleção de alguma coisa – antes eu já tinha experimentado colecionar embalagens de shampoo, bolas de gude ou etiquetas de roupas, mas nada que fosse para sempre. Custavam a bagatela de cinqüenta centavos cada e os mais bonitos eram vendidos na lojinha do pai de uma professora minha, bem perto da igreja matriz. Voltava para casa com quatro novos carrinhos, minha coleção aumentada e mais colorida.

Terminado o serviço, era a hora de construir estradinhas no quintal de casa e brincar sentindo o cheiro do tempero fresquinho que evolava por toda a casa. Andu com costela de porco era o sabor dos sábados da minha infância. Meu pai, depois que terminava de atender seus pacientes, ainda preparava outro tipo de carne na churrasqueira no fundo da casa. Um suco de maracujá ou de caju acompanhava o banquete. Eu tinha ainda toda uma tarde e uma noite de sábado para viver, assim como toda uma semana para sonhar com os novos modelos e as novas cores dos meus próximos carrinhos. Arrastava os joelhos até ficarem roxos por entre as três mangueiras do quintal, empurrando os carrinhos com a força de uma pureza ingênua e fazendo com a fricção dos lábios o barulho do motor como quem acelera e dobra as curvas da vida. Da cozinha vinha a voz da minha mãe dizendo que o almoço estava pronto. Eu estacionava os carrinhos na garagem da minha casa na estradinha e corria para lavar os pés. Era quando a tarde resvalava nas nuvens iraquarenses. Ah, as tardes!, tão tardias...

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Playing for Change


Por Germano Xavier


Aeroportos sempre me pregaram boas peças, e olha que foi um pouco mais de uma dúzia de vezes que tive o prazer de utilizar deste tão eficiente e seguro meio de transporte. Um pouco de tudo já me aconteceu, todavia, nessas minhas perambulações aéreas. Como por exemplo encontrar um conterrâneo das bandas da vila de Iraporanga, ainda que até então desconhecido, quando este olhava uma tela digital cheia de mapas - e mapas da Chapada Diamantina, ora bolas!; como precisar dormir no chão de um deles depois de um desencontro factual ou dar de cara com um monte de gente famosa, a citar jogadores de futebol, lutadores de boxe, músicos e escritores... enfim. Os aeroportos de Salvador-BA, Recife-PE, Rio de Janeiro-RJ, São Paulo-SP, Campo Grande-MS e até Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, sempre me ensinaram alguma coisa e que - lógico -, como jornalista, escritor e, sobretudo, curioso que sou, seriam mais cedo ou mais tarde levadas à posteridade através de um texto meu.

Um destes achados aconteceu numa certa manhã no aeroporto de Salvador. Estava eu andando por um dos pisos do estabelecimento a passar o tempo para o embarque, quando passei em frente a uma loja de cd's e apetrechos musicais. Uma enorme televisão exibia um clipe bastante colorido e interessante. Stand By Me estava sendo tocada de um jeito diferenciado, não saberia descrever, mas de um modo muito humano. Sentei no banco mais próximo e lá fiquei até a última canção do disco ser tocada. Eram músicos de rua, pelo menos assim me pareceu. Isso me atraiu muito. Músicos tocando seus instrumentos sem grandes mistérios, tudo muito simples, porém ordenado, e aquele rodopio de imagens pelos quatro cantos do mundo, revelando o destino de cada um, como também a sonoridade de cada intervenção musical, que nos transportava sem destino e hora de chegada ou partida para um lugar de beleza inconfundível.

O projeto poderia ser até coisa já ultrapassada, velha de prática, mas para mim era algo novo. Escutar Playing For Change nas circunstâncias em que via foi, no mínimo, uma experiência transcendental. Fiquei com a alma leve, com o corpo leve. Reggae e música oriental juntos, rock e um algo latino se debatendo em harmonia nas cordas e nos sopros dos artistas, um prazer pleno desfrutado de uma forma muito natural. Logo vi surgir ao meu lado algumas moças e moços, alguns senhores e senhoras com suas crianças, o que criou uma situação momentânea que inspirava união, paz e calor humano. Foi deveras muito interessante. Tão interessante que me fez escrever estas mal traçadas linhas, e até então não tenho tantos motivos para tal, a não ser pela visão que tive do poder de comunhão humana que a música exerce quando levada à sério, invocando em nós, pobres mortais, os mais sublimes sentimentos, as mais graciosas sensações.

"Playing for Change", para quem não sabe, "é um projeto multimídia criado pelo engenheiro de som Mark Johnson do Timeless Media Group, com o objetivo de unir músicos do mundo inteiro em prol de mudanças globais. Integra o projeto a Playing for Change Foundation, uma organização não-governamental que tem construído escolas de música em comunidades carente. O projeto produz discos e vídeos com músicos como Grandpa Elliot e Keb'Mo, junto a artistas desconhecidos de várias partes do mundo, tocando versões de canções conhecidas e composições próprias. Já foram lançados dois discos: Playing for Change e PFC 2, além de registros ao vivo. Em 2013, o grupo estará trabalhando em um terceiro álbum."

Foi bom estar lá naquele momento. O mundo parecia estar aos meus pés, assim como aos pés e mãos dos meus companheiros ouvintes. A partir daquele dia olhei a música com outros olhos. A música, esta deidade tão mal explorada neste nossa transmodernidade, salvo raríssimas exceções.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Meu velho baú


Por Germano Xavier

Tudo o que eu penso da poesia e da arte da literatura, um dia escrevi naqueles pequeninos cadernos da adolescência que hoje guardo com zelo no velho baú da minha avó, que eu mesmo reformei numa tarde arteira e boa e que sempre acontecia lá na minha pequenina e hoje já diferente Iraquara. O baú, repintado em um tom amarronzado, fica quase escondido no meu quarto, atrás da porta, e está repleto de uma papelada antiga, coisas de quando eu tinha meus quinze ou dezesseis anos de idade e ainda tropeçava nas armadilhas das palavras – não que eu já me sinta totalmente à vontade diante delas, mas é certo que o tempo nos amiga mais e mais.

Em cima do baú, um confortável banquinho de penteadeira. Sinal dos deslocamentos incessantes e das revoluções que minha mãe sempre faz quando faxina a casa. Ainda no interior, dois ou três enredos que comecei a escrever em tardes ou noites de frenesi total e iluminação sufocante...

Não tenho dúvidas de que tudo ali é passado. Jamais retornarei àqueles papéis. Uma ou outra gente irá morrer com o abafamento da tampa fechada, com o esquecimento, com o mofo do ar preso, com as traças esfomeadas. Tudo morrerá, silenciosamente, sem a escuta das horas da vida, tão mortais. Morrerão meus primeiros poemas, tão bestinhas e confusos ao mesmo tempo. Minhas personagens, tolas e indefinidas, também sofrerão mortes temporais. Aquelas folhinhas numeradas, com etiquetas de supermercado coladas no canto superior direito das páginas, e que serviam como depósito para as notas que eu mesmo atribuía a cada poema, depois das várias leituras e dos meus “desentendimentos conjugais, pai e filho”.

Tudo, absolutamente tudo, morrerá, exceto uma coisa: a certeza de que foram aqueles poeminhas bobos e ainda sem noção da crueza da vida, aquelas pessoinhas sem rosto nem cor que brotavam da minha imaginação nas noites mal dormidas, aqueles versinhos tortos e sem vida própria, que alicerçaram o raso sorriso sábio que hoje empresto à vida. Foram com eles que, assim como aconteceu ao Carpinejar, “aprendi a girar a maçaneta” do meu mundo, que consegui pentear os cabelos dos meus sentimentos, que fui capaz de modelar a massinha do meu tempo.

E é olhando para trás, exercício que sempre pratico quando retorno à casa que me viu crescer, que penso ser melhor hoje. É um fato, inquestionável. Nada de orgulho ou convencimento, apenas um fato. Assim como é fato, também, a minha ânsia quase doentia por melhorar, sempre. Parafraseio, agora, o Mestre Pastinha, poeta da capoeira... No meu reformular frasal, escrever é, para mim, mandinga de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio poeta. É onde e quando buscarei minha força, meu lutar, minha voz, meu querer.

Meu velho baú, antes de definir-me, fornece a vasta indefinição de quem sou. Pois não sou poeta, sou homem. Porque ser homem basta. É ser fórmula mais que justa e capaz para sobrepujar quaisquer descrições. Meu velho baú e as pequenas coisas que ele guarda não me definem descrevendo, mas me descrevem definindo. Fui e serei minhas antigas páginas infantes, mas delas o múltiplo resultado aflorará, assim como desperta o girassol para os novos-sempre sóis do cotidiano...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Como era bom e eu não sabia


Por Germano Xavier

Por que ser adulto é tão chato assim? Eu não entendo e parece que nunca vou entender porque mudamos tanto de uma hora para outra. Sabe, no fundo, bem lá no fundo mesmo, eu não queria que aquele garotinho recluso, inventivo e irrequieto, dono de uma arraia enorme e que nunca planou no ar por falta de ventos mais fortes, ficasse assim sem jeito, mais que encabulado, macambúzio até, apagado aqui dentro de mim.

Aqui dentro, mas é bem dentro mesmo, eu queria que aquele menininininininininininininininho consertador de coisas continuasse a consertar as coisas para minutos depois desconsertá-las, e para novamente consertá-las... Que bom mesmo é ser inventador de invenções, construidor de planetas, afetador de águas paralíticas, fazedor de diversidades.

É, bom seria!

Mas tem uma coisa que atrapalha, e é o pior de tudo, meu amigo. É que existe uma palavra cruel no manual do homem. A palavra Tempo. Você já reparou que essa palavra não larga do nosso pé?! Acredito que sim, não é? Por onde quer que andemos, faça sol ou faça chuva, esteja frio ou calor, seja noite ou dia, lá está o Tempo, implacável, impenetrável, pendurado numa parede, atado ao pulso, movido por um pêndulo, ecoando um tic-tac eterno, calculando as horas, cronometrando os passos, registrando os fatos... Não adianta fugir, ele estará lá, sempre. Até onde você menos esperar, lá estará ele, o Tempo, senhor da vida.

Não que ser adulto ou agir como adulto não seja interessante, mas é que ser criança é muito melhor, anos-luz melhor, e você sabe muito bem disso. Ser adulto é como ter uma inflamação em alguma parte do nosso organismo, é como se uma coisa esquisita quisesse explodir, pular para fora da gente o tempo todo. É a adultite, inflamação do nosso lado adulto. Neste caso, é a nossa criança interna que está doida para romper a barreira do corpo e já sair escorregando num carrinho de rolimã ladeira abaixo, rindo aos quatro cantos da Terra. A adultite é fogo, tem casos que nem um divã consegue dar jeito.

Lembra aí, vai! Tente recordar de como era mesmo fantástico ser gente miúda, dono de dente de leite, jogando sonhos para São Longuinho no telhado de casa, e mesmo assim correndo corredores coloridos sem ainda nem poder por causa do sangue vivo na boca. Lembra do pé de umbu que a gente escalava nas tardes calorentas nos roçados da vovozada, das mangas verdes com sal que a gente comia preocupado em não ingerir leite depois, porque nossa mãe dizia que fazia mal e a gente não queria nem fazer o teste para ver se era verdade ou não. Das brincadeiras em cima do monte de areia deixado pelo caminhão da empresa de material de construção quando o pai resolvia reformar a nossa casa. Era tanta alegria, não lembra? E era tão instantânea e espontânea que o Tempo era o que menos importava pra gente. A gente queria mesmo era o pé encardido de brincar na terra vermelha, o grude no rosto de tanto suor bom, a nódoa na camisa novinha em folha de tanto se lambuzar de alegria, as unhas pretas de tanto cirandar de felicidade...

Ah, como era bom e eu não sabia!

A gente dizia dizeres errados e ninguém da nossa turma nos lembrava das tais formalidades oracionais... Que gramática boa mesmo era a gramática da rua, profanada no calor da partida de futebol improvisada, com traves feitas de chinelos velhos e sujos e jogado com bola murcha de tanto quicar nos paralelepípedos. Que tese boa mesmo era a de que depois de um dia de alegria e de dedo topado no calçamento de brincar de esconde-esconde, sempre haveria de nascer um outro dia ainda de mais sorriso na face estampado. Quando se é criança, a gente vive o sonho e sonha a vida. A vida passa como passa a formiguinha no quintal de casa, serelepe, levando risonha a folhinha verde para dentro do formigueiro. É sempre dia de festa, nas chegadas e nas partidas. O fim das coisas é sempre um recomeço e não há espaço para a tristeza nem para a solidão. A gente conseguia ficar feliz até quando não havia ninguém por perto - e, olha, por vezes era bem melhor assim, concorda?

A meninice é um tempo verde, que flutua como flutuava a bolha de sabão que a gente soprava com galho de pé de mamão. Um tempo sem tempo, temperado com as mais doces especiarias, as mais raras e as mais preciosas. Um tempo destemperado por vida, liberto de amarras, tempestuoso para o bem. Porém um tempo temporada, com dia marcado para terminar. Um tempo temporal, chuviscado, torrente, toró, que infelizmente acaba. Porque logo a gente sente o peso das responsabilidades, a carga das tarefas banais, a dor na consciência pelos tempos perdidos e que, desditosamente, não voltam mais.

Ah, como era bom não ter o pesar do tempo deixado para trás!

Como era bom andar de bicicleta sem medo até o "Vai-Quem-Quer", chegar perto das serras da Chapada Diamantina, beirar o céu lá do alto, visitar o Engenho na entrada da cidadezinha, tomar banho nas cachoeirinhas da Caiçara, fingir que éramos desbravadores do mundo, bandeirantes infantes sem medo do pneu da velha bicicleta furar e nos deixar no meio do caminho... Como era bom perambular por aí, chupar fruto verde e azedo na estrada de cascalho que dava para a barragem do distrito de São José... como era bom passar pelas casas de farinha da Quixaba e da Queimada, ver aquele povo rico de histórias e de coração a olhar o sossego do mundo das janelas de suas casas... como era bom desbravar o Mulungú e pedir água de pote de barro para matar nossa sede de novidade.

Ah, como era bom e eu não sabia!

Hoje, do jeito que estou, com meus já vinte e poucos anos, só há uma coisa que me deixa feliz como nos tempos de antanho. É saber que a gente nunca pára de sonhar, e saber que a gente pode ser tudo o que imagina, tudo aquilo que a gente sonha ou que um dia já desejamos ser ou fazer. Acho que é por isso que estou vivo até hoje, porque posso ser aquilo que sempre sonhei ser um dia, mesmo que esse sonho fosse o de abarcar todas as cores e dores do mundo numa folha de papel em branco, armado de uma esferográfica de ponta fina qualquer...

Por Germano V. Xavier.


Uma criança de verdade verdadeira...

Estou de saco cheio de ser adulto. Não quero mais ser isso ou aquilo. Das duas uma: Ou peço demissão da vida adulta ou breve serei demitida por justa causa. Sairei por aí, brincando nas praças, puxando meu carrinho, soltando bolhas de sabão... Também empurrarei tonel velho rua abaixo só para ver o que acontece com o gatinho lá dentro, e vou brincar de gude na porta de casa com os meninos da rua.

Cansei! Ser adulto é muito chato e estressante. Tem que ter resposta certa para tudo e ai de mim se eu ficar calada. Responder "não sei" é falta de coragem e é pecar por omissão. A pior coisa que existe é deixar de acreditar em sonhos. Daqueles que a gente pensa de boca aberta e fica horas imaginando como seria se ele acontecesse. Uma amiga escreveu assim no meu diário: "Lembre-se sempre que, aquilo que somos nada mais é do que fruto dos sonhos que plantamos algum dia, ou seja, das escolhas que fazemos no decorrer de nossas vidas”. Li, reli, refleti e xinguei. Deveria ser um crime não acreditar em sonhos. O verbo sonhar deveria ser entendido como o verbo amar, assim como a expressão "Eu sonho" deveria ser dita com a mesma formalidade emocional que se diz (ou deveria se dizer) "Eu amo".

Falo isso porque existem pessoas que não sonham. E ainda existem demagogos, aqueles que fazem planos e falam como deveria ser, mas não fazem nada para mudar o presente. Confesso que costumo ficar irritada com pessoas que não sonham, que não pensam que um dia poderão ser melhores que hoje. É por isso que quero me livrar dessa vida adulta ingrata.

Certo dia um garoto estava vendendo geladinho na porta do banco, olhou para mim com cara de choro e disse: "Me dá um dinheiro para eu ir pra casa, não vendi nada hoje e não tenho dinheiro para voltar pra casa”. Olhei desconfiada, conhecia-o de algum lugar. Comprei três geladinhos e deixei o troco com ele. Voltei para casa, distribui geladinhos pelo meio do caminho e, assim que olhei para minha mãe, lembrei que ele era o mesmo menino que dias antes tinha pedido café com pão enquanto minha mãe guardava as compras que ele tinha trazido em seu carrinho de mão. Foi nessa oportunidade que perguntei a ele aquelas coisas de sempre. Estuda? Por que não? O que faz da vida? Não gosta de escola, não tem jeito para estudos e nunca pensou que algo poderia ser diferente. Respostas comuns, eu deveria estar acostumada. Mas não, fiquei com raiva, bem feito para a minha gastrite!

Algumas vezes pode acontecer o inverso. Crianças viram adultos de uma hora para outra e pensam que podem enganar qualquer um por causa de uns trocados. Como no dia em que uma menina me viu numa loja de cosméticos e pediu dinheiro para comprar um creme. Quinze minutos depois, em outra loja, pediu dinheiro para comprar um caderno. Foi aí que deu uma vontade de chorar... Por que crianças sonham, não sonham?! Deveriam sonhar, ao menos. Conheço pessoas que fazem questão de não sonhar, mas não são crianças. Também conheço algumas que sonham e não ligam para os sonhos alheios e saem por aí, fazendo de tudo para que a sua vontade seja feita. Crianças não deveriam ser assim, crianças são bondosas e gentis. Ao menos, na minha reles crença de mundo. Eu quero voltar a ser criança, mas uma criança de verdade verdadeira.

Por Jô Moraes (Senhor do Bonfim-BA)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Em memória de nós


Por Germano Xavier


"Terá sido frio seu súbito abraço?"
(Caio Fernando Abreu, em Pequenas Epifanias)


Um primeiro aviso: não quero estar vivo após escrever o ponto final deste texto. Principalmente não quero me sentir vivo. Ultimamente a vida me tem surgido um tanto carregada, tatuagem de pedra encravada nas costas. É certo que há dias em que a desgraça se instala e fica como na maioria dos finais de semana que vivi em Iraquara. Finais de semana não foram feitos para pessoas como eu, definitivamente.

Hoje é um sábado, amanhã será um domingo. Festanças, comemorações, alívios, gente andando pelas ruas com seus cachorros, papagaios, gatos, cavalos, gnus e rinocerontes de estimação - por que não rinocerontes? Mulheres e homens bebendo, papeando, tagarelando, resenhando suas mais inclassificáveis trivialidades. Outros indo aos mil cantos e recantos da Chapada Diamantina. Crianças nos parques gastando suas infâncias. Velhinhos no dominó e no gamão esperando Godot¹ chegar e eu, um ser estranho, sentindo tudo aqui na clausura do meu quarto razoável.

Estou pensando em minha imortalidade, enquanto os outros não. Os outros nem ligam, não se esforçam para morrer brandamente, como sempre faço. Estou pensando na minha mortalidade, enquanto os outros não. Os outros, iraquarenses como eu, apenas vão, e chamam isso de "ir apenas" de liberdade - estarão certos? Estou pensando em coisas que são desprezíveis aos outros - pelo menos agora, na parte pulsante desta coisa a que intitularam "Vida". Estou pensando - e penando também - em assuntos como a morte, como a vida, como a minha mitologia, como a mitologia do mundo, como a desgraça que é ser assim, sentir dor por tudo, sentir dor por nada.

Não, não é que tenho gosto pela maneira como vejo o mundo, as pessoas e as coisas. Não é isso. Não sei até quando sou feliz por assim agir nem triste, sinceramente não sei. Porém, é quando dias assim como esses me abraçam o corpo sem piedade alguma que sinto ainda não ter sido capaz de obter a permissão para entrar de vez no paraíso. E não sei se é deveras este o destino permanente a que aspiro para o depois daqui. Apenas estou pensando em minha possibilidade de morrer, em minha expressiva potencialidade de deixar de existir, de ir, virar pó, de desaparecer para todo o sempre. Só isso que estou a fazer agora.

Ao passo que não consigo ignorar a morte que caminha comigo - posto que é ela a própria alma da sombra que me projeta maior ou menor dependendo do ângulo de incidência da luz -, assino minha qualidade de ser essencialmente mortal, como todos meus conterrâneos de Iraquara. Borges² me diz que "ser imortal é coisa sem importância", e aceito. Minha imortalidade estaria em não me preocupar com ela, e com nada parecido - o que é, de fato, quase impossível. A afirmação por algo, de ser alguma coisa, é a própria constatação de que não se é ou não se pertence. Ninguém é deus ou será apenas se auto-afirmando como um.

E depois disso, novamente penso nas pessoas da minha cidade com seus rinocerontes de estimação, nas mulheres tagarelando pieguices, nos velhinhos jogando a tarde sobre um tabuleiro quadriculado, nas crianças brincando sem economias brincadeiras quase esquecidas pela “ultra-modernidade”. E penso em mim, mais uma vez. E mais uma vez penso no que será de mim após o ponto que finalizará o texto que agora redijo. Estarei morto mesmo, como que pronto para um funeral ligeiro e sem pompas? Continuarei vivo e mudarei alguns conceitos acerca das minhas imaterialidades tão presentes e indefiníveis? O que será de mim após meu pensamento? O que será da gente, povo de Iraquara? Mas, Borges, eu também não pretendo ser tão débil a ponto de morrer por qualquer coisa. Por favor, não me entenda mal. Eis o meu ponto final.


Notas.
1 – Referência ao livro Esperando Godot, do dramaturgo Samuel Beckett.
2 – Jorge Luis Borges, escritor argentino.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Fone e a Copa do Mundo


Por Germano Xavier

“Fone” não era nada, mas “Fone” também era tudo. O "nada" a que me refiro está ligado a laços sanguíneos, parentesco ou qualquer coisa que dialogue com árvores genealógicas. Já o "tudo", por ora eu explico.

Foi num dia muito chuvoso que o conheci. Resolvi jantar em um restaurante que ficava a quatro quarteirões da minha casa, quando fui surpreendido, na volta, por um pé-d'água daqueles nada econômicos. Estávamos completamente encharcados de cabo a rabo, sob o toldo de uma loja, na principal rua do centro de Iraquara. Ele, com os cabelos já grisalhos escorridos pelo rosto moreno e com sua inseparável bicicleta super-hiper-mega-enfeitada, trazia consigo, embrulhado cuidadosamente em uma sacola plástica, o que me pareceu ser uma pequena agenda na cor preta.

Confesso que fiquei muito curioso em saber o que guardavam aquelas páginas, tão salvaguardadas por aquele senhor que devia contar os seus 60 anos de idade. Ficamos ali por longos minutos, entre receios e ansiedades. Creio que foram quase duas horas e, não obstante termos iniciado um diálogo, nossa conversa não apontou nenhuma pista para as tais anotações.

Finalmente, o temporal havia cessado. Resolvemos partir para os nossos destinos. Durante todo o percurso, feito a passadas largas e velozes, pois um chuvisco ameaçava se transformar num temporal, repletos de trovões e relâmpagos, percebi inúmeros barbantes preenchidos por bandeirolas nas cores verde e amarelo esticados pelo chão ou, ainda, enrolados em árvores e nos fios da rede de energia elétrica.

Era tempo de Copa do Mundo de futebol e, a esta altura do campeonato, todos os logradouros, becos e vielas da cidade encontravam-se enfeitadas e coloridas com os tons do uniforme da seleção canarinho. Como era bom se sentir vivo e fazer parte de toda aquela corrente positiva, de todo aquele espetáculo de grandiosidade e beleza. Apesar do visível estrago causado pela chuva, nada faria com que aquele sentimento de alegria e felicidade perdesse um pouco do seu brilho. Certamente, no outro dia um mutirão seria formado no intuito de reerguer as bandeirinhas e repintar, agora com demãos ainda mais encorpadas, os muros e os pisos que ficaram descaracterizados devido à ação da água que batia contra as paredes.

O torneio mexia com toda a nação, ou melhor, com todas as nações do mundo. E mexia com Iraquara, e muito. Trinta e duas seleções disputando o mais importante evento esportivo do planeta. Trinta e dois países lutando uma guerra pacífica, onde o vitorioso não é aquele que devasta um povo, extermina centenas de famílias ou arrasa os sonhos de milhares de crianças, mas sim o que mais balança a rede do adversário, fazendo nascer milhões de sorrisos orgulhosos por terem nascido justamente naquele país brioso e triunfante.

Encontrar o sono, naquele dia, tornou-se uma tarefa quase impossível. Fiquei em meu quarto, com a lâmpada desligada, matutando sobre o teor dos registros que preenchiam os brancos daquele ementário misterioso. A imaginação correu solta. Não havia limitações ou fronteiras para qualquer pensamento hipotético.

Após várias cogitações, decidi acreditar que “Fone” era um cientista social, um antropólogo ou qualquer pesquisador ligado a esses segmentos. Sim, esta era a melhor forma de eliminar todas as minhas titubeações concernentes ao homem e sua enigmática caderneta. Deveras, seria uma atitude demasiado inteligente da minha parte pensar assim.

Então, só me restava elaborar as devidas conclusões. Talvez aquele homem estivesse concatenando sobre como a rotina da vida de todos os iraquarenses muda drasticamente durante este ciclo de jogos. Seria ele integrante de um destes órgãos internacionais que a cada ano injetam novos dados sobre o andar das civilizações?, como, por exemplo, mortalidade infantil, expectativa de vida, explosão demográfica, analfabetismo, índices de pessoas infectadas pelo vírus HIV e demais moléstias que, infelizmente, ainda assolam várias regiões...

Talvez fosse esse o meu desejo mais profundo e sincero. É que tudo fica ofuscado quando chega esta época, até mesmo quando olhamos por detrás dos muros iraquarenses. As mazelas e os fantasmas que rondam a nossa realidade custam a aparecer. Parece que tudo vai de vento em popa, quando na verdade outros milhares choram as suas misérias e fomes.

Minha vontade era a de que existissem milhares de pessoas como “Fone”, trabalhando arduamente em prol de um mundo melhor, mais humanizado, menos desigual, enquanto multidões se divertem e se lambuzam em esplendores artificiais e quase sempre mecânicos. Apesar de, por inúmeras vezes, ter ouvido falar que ele, o “Fone”, havia se estirado na pista com sua inseparável bicicleta a fim de apressar as horas de sua vida. Que seja força da imaginação, não importa. O que interessa é a certeza de que já havia sido dado o primeiro passo, já que toda atitude humana tem de, antes de qualquer coisa, passar pelas aléias mais arborizadas de nosso universo ficcional.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Uma história de amor


Por Germano Xavier

Sou um escritor e tenho uma boa e velha máquina de escrever. Salvo os escritores de antes da invenção, para mim todo e qualquer escritor deveria ter uma máquina de escrever. Escritor que não tem uma máquina de escrever não é escritor. Desculpe-me se estou sendo radical, mas é que estamos em agosto, que é mesmo um mês de muita agonia.

Sem querer enfeitar demais a minha crônica já iniciada, preciso dizer que é muito difícil precisar a data de nascimento desse invento. Mas fiquemos com o nome do inglês Henry Mills em nossa memória. Foi ele que, no ano de 1713, conquistou a primeira patente para um protótipo do objeto. Pellegrino Turri, italiano da mais alta sociedade, também corre por fora nesse dérbi. Em 1808 ele inventou um artefato de que só temos notícia hoje, devido às cartas que ele escreveu para uma amiga cega com quem se comunicava, destinatária do objeto - e pensar que em 1808 ainda estávamos pensando em "independência".

Todavia, para não dizer que não falei das flores, um tal de Francisco Azevedo, brasileiro, criou um objeto semelhante que causou um verdadeiro rebuliço na Feira Internacional de Recife, em 1861. Depois disso, surgiram nomes e mais nomes, marcas e modelos distintos. A brincadeira transformou-se em negócio, em linha de produção, e o final da história todo mundo já sabe. Mas não estou aqui para contar a história da máquina de escrever, e sim para contar a história de amor e paixão que tive na adolescência, lá por volta dos meus menos de quinze anos de idade.

Lembro que, em minha infância, quando eu entrava numa casa de algum morador da minha cidade natal Iraquara e via uma máquina de escrever descansando sobre uma escrivaninha ou qualquer outro sustentáculo, metida a figurar como um objeto qualquer dentre as tradicionais mobílias antigas bastante apreciadas pelos iraquarenses, ficava eu imaginando "O dono desta casa deve ser um escritor. Olha que máquina bonita!" Era babação mesmo, perplexidade.

Ali, ao lado dela, eu acabava idealizando um mundo feito de palavras, um universo de letrinhas que surgiam na folha em branco quando alguém ousasse tocar aquele "instrumento musical". Para mim, os sons que uma máquina de escrever emite são os mais apaixonantes que existem. Cada um com um timbre diferente, com uma afinação particular. Cada tipo é um acorde único e cada tecla batida é um esforço sentimental do ser humano, revelam um manifesto de desejo e de esperança. Realmente único o tempo de se ouvir.

Quando completei treze anos, ganhei minha primeira máquina. Não foi bem um ganhar, mas assim considero. Meu padrinho Tibiro, que já tinha me dado uma bicicleta e um carrinho de controle-remoto, presenteou-me com uma nota de cem reais. Sim, 100 reais! Na época, e ainda mais para um menino de treze anos, era realmente uma fortuna. Disse ele que assim seria melhor, pois que eu poderia comprar o que eu quisesse. Eu tinha apenas 13 anos de idade e cem reais no bolso.

Bem... vou contar uma coisa, mas não pense nada de ruim acerca de mim. É que naqueles idos a última moda entre os meninos iraquarenses da minha idade, pelo menos na minha cabeça, era a de matar lagartixas e passarinhos com espingarda de chumbinho, ou de pressão, como preferir. Foi mesmo uma revolução. Eu que tanto atirei pedra com beca feita com galho bifurcado dos pés de planta do quintal lá de casa ou compradas já prontas nas feiras de sábado...

Pois bem, dito e feito. Eu já sabia o que comprar com o dinheiro que tinha ganhado do meu padrinho: uma reluzente espingarda de chumbinho CBS. Para isso, guardei a quantia até o final do ano. Era quando íamos para o Agreste pernambucano, passear e rever a família do meu pai. Sabe como é, férias em novas terras... sempre uma novidade. E assim aconteceu.

Chegado o grande dia da minha vida! O dia em que compraria uma legítima espingarda de chumbinho CBS. O valor era esse mesmo, não ia sobrar troco. E eu nem faria questão. Meu pai me levou numa grande loja de variedades. Certamente, lá eu iria encontrar o objeto que tanto queria. Entrei veloz. Saí pedindo informações:

- Por favor, onde fica o setor de armas?

Aquilo soava estranho para uma criança de recém-completados treze anos de idade. Segui as dicas. No segundo piso, à direita do corredor principal, deparei-me com o balcão de armas. Acelerei os passos sem imaginar que, para se chegar ao balcão onde estaria a minha tão adorada espingarda de chumbinho CBS, teria eu de atravessar antes um corredor repleto de máquinas de escrever. Isso mesmo, prateleiras e gôndolas recheadas de máquinas de escrever, de diversos modelos e preços. Eram de tamanhos e cores e marcas variadas.

Quase tive um troço, como se diz por aí. Foi paixão à primeira vista. Eu: uma criança de treze anos de idade e cem reais no bolso que na noite anterior havia sonhado com uma fantástica espingarda de chumbinho CBS. Ela: uma Olivetti Lettera 25 portátil, de fabricação mexicana. Não hesitei. Foi amor. Olivetti foi o nome da minha primeira paixão.

Naquele mesmo dia firmamos um compromisso para a vida inteira. Não, não restavam dúvidas, o que eu sentia por ela era mesmo o amor. Não haveria palavras que pudessem descrever o quanto eu a amava e o quanto eu ainda a amo. Viajamos juntos para diversos lugares. Juntos, sempre, eu e ela. Uma companheira inseparável - sem falar que ela jamais me decepcionou. E quando fico longe de Olivetti a saudade torna-se insuportável.

A bem da verdade é que nunca aprendi a arte de matar. E se algum dia conjuguei desse verbo, fiz sem pensar. Eu não seria um bom atirador nem daria para ganhar a vida como atirador de aluguel, comendo calangos, passarinhos ou codornas fritas ao fogo da noite escondida. Talvez esta crônica não existisse se tudo isso que acabo de contar não tivesse acontecido da maneira como aconteceu. Ai de mim, Olivetti!

Drummond, deixe as formigas em paz!

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Sobre viagens e cidades perdidas


Por Germano Xavier

Era sempre um dia alegre e de muita expectativa quando o ano novo despontava às nossas vistas. Aliás, a espera vesperal por aquela tradicional viagem chegava ao seio de nossa família como uma caixa de foguetes a estourar traques de alegria. Nunca fora tão bom deixar a cidade que suportava, o ano inteiro, os pesos do corpo e da alma. Era um tempo de visitas e revisitações a um passado-presente não muito distante. E era, também, a chance que o meu pai tinha de rever os seus parentes e irmãos, que viviam entre a seca nordestina e a criação de galináceos para o abate esporádico e tradicional.

O destino era o de sempre, um lugar chamado São Bento do Una, cidade de médio porte do Agreste pernambucano, surgida lá pelos meados de 1825 e elevada à categoria de cidade em 08 de junho de 1900. Um lugar que me remonta peças de um quebra-cabeça feito de estripulias infantes, lagartixas mortas a balas de chumbinho oriundas da espingarda de pressão dos primos Anderson e Cleiton, este o maior atirador dos quatro - o D’Artagnan e, nós, os Três Mosqueteiros, parafraseando o clássico de Alexandre Dumas(Pai). Isso a considerar, também, que meu irmão Gustavo fazia parte do quarteto assassino de pequenos répteis naquelas tardes ensolaradas de prazer e risos felizes.

Lembro como hoje a combustão interna que me atacava sempre que ouvia alguém lá em casa fazer, assim sem muito alarde e a qualquer hora do dia, uma espécie de contagem regressiva para a nossa partida.

- Faltam dois dias - alguém sempre lembrava.

- É amanhã, sairemos ainda de madrugada - a voz do pai direcionando vontades e esperanças.

Na época, meu pai contava com o Ford Del Rey de Luisinho, mecânico da cidade vizinha de Canarana-BA, carro grande e espaçoso, sempre emprestado para uma viagem que, por vezes, chegava a durar um mês.

O dia que tardava a vir, o dia que vinha...

Tudo escuro ainda na Iraquara de madrugadas frias, acostumada com a gelidez do ar que namora o alto das serranias, e uma família de malas justapostas no porta-malas de um carro acinzentado. As portas da casa trancadas, algumas luzes acesas para mentir presenças, o coração saltitando e a oração clássica ensinada por minha mãe:

“Desta casa vou saindo
nesta estrada vou entrando
com Jesus no meu caminho
e Nossa Senhora me acompanhando”.

Éramos quatro signos de um só desejo: viajar.

Um último aceno para a nossa casa na rua Tito Luna Freire, para o velho posto de gasolina na entrada da pacata Iraquara, um estalido sentimental de “Até breve, se Deus quiser!”, uma rota longa de aproximadamente 1.200 quilômetros pela frente, roteiro quase sempre variado pelo motorista-mor, meu pai. Era quase sempre assim, íamos por uma estrada, voltávamos por outra. E grande porção da Chapada Diamantina lentamente ia ficando para trás se olhássemos pelos retrovisores. E assim, num misto de apego ao que ficava e querença por velhas novidades, tocávamos a ir em frente.

Primeiras cidades ultrapassadas num rojão de 90 quilômetros por hora, ainda com o sol bocejando seus primeiros raios. Souto Soares, Cafarnaum, a frienta Morro do Chapéu, local de parar para apreciar os macaquinhos do saudoso restaurante. Pé na estrada novamente, e logo a “Terra do Ouro” Jacobina, porção piemonte da ilustre Chapada. Mais um pouco à frente, despontava Senhor do Bonfim - de um bom fim inicial, deveras. O pé calmo de meu pai ainda friccionando o acelerador do sempre ajustadinho automóvel e, já sem demora, 120 mil metros depois, surgia o símbolo maior de uma viagem divertida e indelével.

Era a cidade de Juazeiro, namorado de Petrolina, mulher mais moça.

Pronto! A maior das expectativas: atravessar a ponte Presidente Dutra, aquela coisa linda que nos fazia flutuar por sobre um rio São Francisco tão maravilhosamente colorido de um verdazul cintilante, cor de êxtase e frenesi - só lembrando que quem fazia o papel de guia turístico era o meu pai, sempre revelando nomes e histórias curtas dos lugares por onde passávamos. Eis a primeira impressão deste lugar que tenho salvaguardado em minha memória.

Duas cidades enamoradas, separadas por um vale de águas caudalosas e perenes, manancial de identidades e certezas de um povo que, no mínimo, devia viver sorrindo, tamanha a sorte de povoar uma localidade tão singular.

Aqui estaciono a viagem e, também, o itinerário deste texto, como de praxe fazia meu pai no posto de gasolina, já na saída de Petrolina. Parada para o almoço. Cheguei ao ponto onde queria.

Não suspeitava eu que, alguns anos mais tarde, de Iraquara viria a morar nesta cidade baiana, agora um estudante de Jornalismo recém-chegado à terra das instigantes carrancas, protetoras dos pescadores e dos homens fluviais. Confesso que Juazeiro era mais bonita e apaixonante na minha infância-adolescência, quando rapidamente perscrutava seus contornos e seus flancos coloridos. Do mesmo modo, acerco-me da mesma idéia e confirmo as fantasias diminuídas dos meus olhos quando nestes tempos vindouros retorno à cidade que me viu nascer.

Hoje, anos após desembarcar de um ônibus da viação Guanabara, que rumava à capital cearense como parada final, Juazeiro não passa de uma atriz coadjuvante, desbotada pela sua violenta e paradoxal paisagem social (fato ainda mais evidente do outro lado do rio), enegrecida por suas idiossincrasias bestiais de fins de semana, calejada por um povo “coberto de lama”, amarrado a partidos políticos e homens demagogos, doente de dor identitária ferida pela evolução das coisas.

Juazeiro, e também Petrolina, onde outrora fiz residência, são hoje apenas suportes para uma vida pacata de mais “um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior” - só para lembrar o cantor cearense Belchior, do interior do estado da Bahia, centro da Chapada.

Não há mais aquele cheiro impregnado de mistério nem o sabor de uma desconhecida essência corporal, o que, querendo ou não, minha Iraquara aprendeu a preservar, ainda que perdida em intensidades. Esvaiu-se a grandeza e a imponência dos arranha-céus presentes em ambos os rebordos, hoje meramente prédios cor de tisne, carceragens humanas.

Perdeu-se, tudo, ou quase tudo, a magia das sereias do rio, o imaginário mítico que eu mesmo construía ante o abisso das águas, a candente chama da emoção do atravessar a ponte - hoje rotina, a esfera radiosa de um local que, para mim, era povoado por deuses, titãs, ninfas, musas, entidades ultramarinas, heróis mil de um mundo que era só meu. E que, infelizmente, não o é mais. O que ainda restou, e o que ainda restará, eu sei, é somente este ver bravio de um povo atarrafador de sorrisos, de uma gente pescadora de sonhos, iguais àquela que emerge dos solos iraquarenses. Apenas...

terça-feira, 13 de março de 2012

Uma crônica em três tempos


Tempo I - Maria, a neta polivalente

Por Germano Xavier

Ela tinha tudo para ter sido apenas mais uma Maria dentre outras Marias, mas o destino quis com ela fazer diferente. Esta Maria na verdade escreve Anna como primeiro nome para assinar os documentos mais importantes - assim mesmo, com dois enes. Anna Maria Félix dos Santos, a filha do emblemático seu Douzinho e de outra Maria, a mãe. Maria diversa, Maria múltipla, de uma sabedoria incomum, mistura de mulher-mãe, de menina, de avó. Humana, como as demais Marias e também os Joões iraquarenses, forte e fraca, destemida, mulher de se ir à guerra, de sangrar e dar a própria vida em troca de uma causa maior: a vida. Dupla, rudimentar mulher moderna, sem adjetivos que a classifiquem, olha para o hoje e para o amanhã sem jamais se esquecer do passado.

Esta Maria foi gerada dentro do seio de uma família tradicional da cidade de Iraquara, a família Félix. Cegamente obcecada por um conservadorismo natural àquela época, viu-se a atravessar as correntes pesadas do tempo antigo na obrigação de obedecer em tudo aos seus pais, o que a fazia sentir-se enfraquecida diante do silêncio a que era imposta durante todos os primeiros anos de sua vida. Foi assim que, durante muito tempo, aguentou a carga da quase-inércia das horas naqueles idos. Mas esta Maria era uma Maria autêntica, e sendo assim arranjou forças para atravessar inúmeras barreiras ligadas à mulher, vencendo com o passar dos dias toda espécie de submissão e escrevendo sua história com muita garra e força de vontade.

Maria é hoje patrimônio vivo de Iraquara, mas nem só em chãos ricos em carbonato de cálcio, que permitiram que a região possuísse o segundo maior parque espeleotemático brasileiro, riquíssimo em formações raras em grutas e cavernas, ela viveu. Maria foi mais uma daquelas Marias que começaram a crescer após ter conhecido o significado da palavra sofrimento. Uma Maria que percebeu que seu estado latente de ser não era o caminho mais curto em direção à felicidade. Família, convívio social e trabalho foram as maiores causas para o brotar acinzentado de vários de seus dias. Mas como tudo na vida sofre uma reviravolta, eis que Iraquara, esta criança, cedo ou tarde viria a lhe reservar inúmeras satisfações.

Para ela, a cidade grafada em língua Tupi e com o significado de “toca de mel”, em referência ao poço de água cristalina e salobra que atraiu os primeiros viajantes tropeiros e possibilitou que em seu derredor fossem construídas aos poucos as primeiras casas de descanso para as pessoas e animais, para sempre se tornaria sua jóia mais preciosa. Razão para uma paixão desmedida, esta Maria não podia caminhar por uma outra trilha.

O bisavô desta Maria foi, segundo ela mesma conta, o fundador da cidade diamantina, que em 05 de julho de 2009 fará 47 anos de emancipação política e territorial. Por estes e outros fatos, Maria se sente na obrigação de cuidar da sua filha Iraquara, paixão que certamente durará o tempo necessário à eternidade. Hoje, já entrada em anos e firme em convicções, deseja continuar sendo uma zeladora da história da cidade, buscando se dedicar ao máximo no intento de difundir e promover a esfera cultural da localidade.

Através da expressão de sua palavra, seja em prosa ou em verso, Maria tenta, com unhas e dentes, perseverar nesta ação transformadora. Sapiente das inúmeras dificuldades para com o trato e a valorização do fazer literário, Maria segue sem desistir, lembrando do passado:

- Teresinha, já decorei todas as poesias de Guiomar Chagas, a sobrinha do doutor Américo²!
- Então, recita uma aí pra ver se é mesmo verdade o que você me diz.

Foi lendo as poesias da colega de classe Teresinha, quando ainda morava em Ponte Nova¹ e contava seus 15 anos de idade, que germinou o gosto pela arte poética nesta Maria. Vendo-se desafiada a recitar poemas escritos por Guiomar, lá ia a Maria provar que a poesia entrava fácil pela couraça do seu espírito, demandando apenas uma maior dedicação ao trabalho de artesã das letras. Enfim, foi lendo Guiomar que esta Maria virou poeta. Admiradora do movimento romântico, Maria também percorre os campos da poesia que enaltecem a geografia privilegiada da região, assim como o desprendimento necessário para psicografar textos.

Certo dia, conta ela, entre o dormir e o não-dormir, entre o devaneio e sono, teve uma visão. Olhou para o teto e viu uma caravela a se aproximar, flutuando sobre nuvens, cercada por raios de luz com pontas preenchidas por pequenas estrelas. Encontrava-se além da sua própria imaginação, como parece ter sido todo o seu percurso vital. Médium-católica, voz-sentir, psicofônica, intuitiva, constituída de pressentimentos, professora polivalente de história, geografia, L.P.L.B, Religião, Educação Moral e Cívica, Filosofia et caetera, esta Maria um dia sonhou que era uma rosa no meio do jardim cheio de outras rosas e beija-flores. Sonhou simples, como quem apenas quer ser parte de todo o colorido de um tempo, sem suspeitar que ela, esta Maria de vanguarda, bem poderia ser todo o roseiral.


Notas.
1- Hoje cidade de Wagner-BA.
2- Américo Chagas, médico.

P.S. Esta crônica é a primeira parte de uma trilogia baseada numa entrevista com a escritora iraquarense Maria Neta - como é mais conhecida -, realizada no início do ano de 2009. Este texto faz parte do Livro-Reportagem intitulado "Iraquara - Em memória de Nós", que escrevi em 2009 (ainda não publicado) e com o qual realizei defesa de TCC do curso de Comunicação Social - Jornalismo em Multimeios no Departamento de Ciências Humanas III (DCH III) da Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Uma crônica em três tempos


Tempo II - A Iraquara do seu Juquinha


Era ele, sempre, como num ritual sagrado e atemporal. Todo santo dia, lá estava “seu” Juquinha, recarregando as lâmpadas dos postes de luz de Iraquara. Foi um avanço quando o prefeito da cidade de Seabra-BA, Manoel Teixeira Leite, ainda na década de 50 do século XX, destinou à cidade algumas unidades das lâmpadas Petromax e Colemam, e em pontos estratégicos iluminou as ruas iraquarenses, outrora escuras e amedrontadoras. Acostumados com uma Iraquara feia e noturnamente intransitável àquela época, pois não havia energia elétrica nas ruas, tampouco nas casas, os antigos moradores, que acendiam fifós em suas casas, acabavam clareando um pouquinho as calçadas nuas e sujas. Ao verem seu Juquinha malinando naquele arcabouço metálico pendurado no mastro, de inox e ar no bojo, bombeando ar para o receptáculo onde ficava a camisa de amianto e a mistura de álcool e querosene, sentiam-se felizes porque o breu tinha hora para acabar, mesmo que por um curto espaço de tempo.

Iraquara bem poderia ter sido, durante seus primeiros anos de vida, cenário para filmes de faroeste norte-americano, com aqueles lugarejos vazios de almas e cheios de mistérios. Iraquara já foi uma cidade-fantasma, não é exagero dizer. As estradas, quase todas em precário estado de conservação, de cascalho e barro, não facilitavam o contato com as outras cidades. A falta de calçamento apropriado, a presença de buracos no meio das vias públicas, o lamaçal em que se transformava quando a chuva apertava, tudo isso fazia com que o recolhimento dos habitantes dentro de seus aposentos fosse marca de um passado nada distante. A falta de conforto, em todos os sentidos e segmentos, era visível. Sem higiene nem saúde, porcos, jumentos e outros animais disputavam com pessoas restos de alimentos após o fim da feira dos sábados, a fim de se lavarem as almas esfomeadas.

E o “seu” Juquinha, tio da Maria Neta¹ escritora, assim como outros personagens iraquarenses, iluminando tudo sem pedir muito ao destino, as dores e as alegrias deste povo que traz o pé encardido como sinal de bem-aventurança desde o momento da nascença. Clareando as quedas das mulheres casadas quando tentavam driblar as poças e os charcos - um escândalo para a época. Aquela luzinha temporária, esgotável, alumiando as infâncias maravilhosas, de brincadeiras de pular, de correr, de esconde-esconde, de galinha-gorda, de dar bolo, pega-pega, baleado, jeribita, boca-de-forno, elástico, casinha, panelinha e de boneca. Tudo para ver a meninada mais livre, sem esta falsa felicidade que os jovens de Iraquara estampam hoje em seus rostos, mancebia regada a combustíveis alienantes e mecânicos.

Incansável Juquinha, dando carga com a força dos braços para ver Iraquara crescer, para ver a menina Maria se deslumbrar com uma boneca que chorava e a outra que dormia, trazidas por seu pai dentro de uma malinha de lá de Belo Horizonte, em uma de suas inumeráveis viagens pelo Brasil. Eram brinquedos que ninguém possuía na cidade, sem falar na cama Patente para as bonecas que também ganhou. Para ver a Maria voltar do Instituto Ponte Nova nas férias, hoje cidade de Wagner-BA, e engolir piaba viva e amarrar cabaça no corpo para aprender a nadar no rio que a sede nunca possuiu, mas que foi distribuído em abundância pelos povoados de Caiçara, Ingazeira, São José, Pratinha, Riacho do Mel e tantos outros. Luz para ver a Maria sonhar em ser aeromoça, policial feminina, assim como ajudar a “costurar” perna de rapaz ferido e ver o doutor Américo Chagas cauterizar gente doente usando de talos de folha de côco raspados e enrolados em algodão. Tio bombeando luz para que a Maria pudesse ler nas noites as revistas O Cruzeiro e Manchete que o pai Abdias Dourado fizera assinatura, para no futuro ver nascer dentro dela o gosto pela escrita e pela educação.

Juquinha que quis ver o "vestido venturoso" no corpo da Maria, ganhado do deputado Souto Soares, depois de recitado o seguinte versejo numa festa de recepção ainda bem lá nos idos de brotação citadina:

"Neste dia venturoso
cheio de luz e esperança
aceitas, doutor Souto,
estas flores por lembrança?"

Homem Juquinha que viu a chegada do “motorzinho” movido a óleo diesel que acendia Iraquara todinha às 18 horas, dava sinal que ia apagar dez para as dez da noite e que parava de gerar energia pontualmente às 22 horas, dispensando no porvir próximo seu trabalho de acendedor de postes, num já calculado pequeno indício de "progresso" dos tempos aportando na Chapada, sem ter dó de ninguém.

Iraquara mudou, sim, e cresceu - o mínimo que poderia crescer, é de se saber - em débito impagável para com milhares de Juquinhas, que com amor e ação fizeram com que os dias iraquarenses fossem preenchidos com radiações luminosas, ancorados nos raios matinais que não cansam de nos surpreender quando ultrapassam a barreira das serras e dos morros diamantinos.


Notas.
1 – Anna Maria Félix dos Santos é escritora, autora do livro Iraquara Ontem, hoje e sempre.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Eu estive em Palmeiras

 Por Germano Xavier

Resolvi escrever sobre lugares importantes em minha trajetória de vida, mais precisamente sobre minha passagem nesses locais, que geralmente eram/são cidades, tentando investigar um pouco do que em mim ficou incrustado no que tange às absorções adquiridas por meio das mais diversas experiências de convívio e também de aproximação-afastamento pessoal-interpessoal após minhas chegadas, andanças e partidas nos/dos referidos territórios. E para começo de conversa, parto do meu objeto primeiro de análise: a cidade de Palmeiras, Chapada Diamantina, Bahia, Brasil.


Apesar de eu ter nascido em Iraquara, também Bahia e Chapada Diamantina, no meio do ano de 1984, fui ainda muito pequeno para Palmeiras, cidade que fica situada na Chapada Diamantina Meridional (Centro-Sul baiano) e que possui cerca de dez mil habitantes. Por necessidades de diversas ordens, meu pai montou lá um consultório odontológico e levou toda a família – mãe, meu irmão mais velho e eu, além de meu tio Jackson, no auge de seu adolescer, e tempos depois duas secretárias do lar para auxiliar nas necessidades caseiras. Meu pai trabalhava para a prefeitura da cidade e também atendia na cidade de Lençóis, juntamente com Dr. Freire, com quem ia em seu Dodge Polara num determinado dia da semana.

Dessa época, não me recordo de absolutamente nada, absolutamente nada mesmo, pois eu era realmente muito infante. Segundo pesquisas de institutos importantes, o ser humano só começa a guardar imagens memoriais a partir dos seis anos de idade, e eu ainda não tinha essa idade quando em Palmeiras residi por aproximadamente dois anos, portanto não posso mensurar muita coisa vivida naqueles idos... Desse tempo, só guardo algumas poucas fotos que venceram a barreira das horas que teimam em amarelar os papéis e que porventura ainda sobrevivem em minhas gavetas imiscuídas a outras fotografias mais recentes. Todavia, diz meu pai que a atmosfera de Palmeiras, em meados dos anos 80 do século XX, era a de uma típica cidade pacata do interior, com picos de frio em determinadas épocas do ano, climinha agradável marcante da região chapadense, não muito diferente do que ainda se apresenta nos dias atuais.

Via-se enormes dragas “lavadoras” de areia dos fundos das águas espalhadas pelas margens de diversos rios do local, propriedades de algumas empresas especializadas em mineração-garimpagem ou de gente influente nesse meio, da mesma forma que se ouvia falar, vez ou outra, de que fulano ou sicrano houvera arrematado uma pepita de diamante por aquelas bandas e sumido sem deixar vestígios e nenhuma explicação... O “grande comércio”, se é que assim podemos chamar, ficava nas mãos de poucas famílias, a citar os Rocha, e a outra parcela ficava restrita a produtores rurais de pequeno porte que traziam suas mercadorias para serem comercializadas nas feiras-livres. Geralmente eram produtos de setores ligados à agropecuária ou de ordem artesanal, animais provenientes de criações próprias e alimentos facilmente encontrados na região. O setor de serviços também era importante para fazer girar a terra dos palmeirenses.

Como todo bom integrante da região que ficou conhecida como das Lavras Diamantinas, Palmeiras foi, em tempos de antanho, um importante arraial que tinha como fonte de riqueza a exploração do diamante, que cresceu e se refinou, mas que com a escassez das preciosas pedras, logo entrou em decadência, apesar de ter sido lento este processo em seus domínios. O Capão, hoje ponto turístico de grande importância para a localidade, devido ao grande fluxo de estrangeiros e brasileiros peregrinos que todos os anos desembarcam por lá, não passava de uma vila ainda pouco explorada e pouco conhecida, até mesmo pelos próprios nativos. As pessoas tinham de se deslocar em automóveis de passageiros para chegar tanto ao Capão quanto aos outros lugarejos pertencentes ao território de Palmeiras, e o modelo de carro mais utilizado para a realização de tal trabalho naquela época era o Ford Rural – até hoje encontramos pelas ruas palmeirenses alguns exemplares deste exótico veículo -, tarefa de desempenho realmente muito difícil.

Minhas primeiras lembranças “vivas” de Palmeiras já datam de tempos mais próximos, quando frequentemente íamos para suas paragens fazer compras em alguns supermercados da cidade, que ofereciam preços mais convidativos ou, também, para simplesmente almoçar, como que num passeio de fim de semana frequentemente praticado pelas gentes da Chapada, que aproveitam a enorme oferta de rios e balneários para desfrutar os seus respectivos recessos. Era marcante o desenrolar da mecânica da feira-livre, a presença de muitos jumentos que carregavam as mercadorias de seus donos para o centro popular de comércio, aquilo tudo me reclamava muita atenção. Assim como suas ruas estreitas, a arquitetura de algumas casas, o cheiro de história que seus habitantes exalavam.

Depois, já na adolescência, recordo-me de ter ido prestigiar por duas ou três vezes o Carnaval de Palmeiras, festa das mais tradicionais do interior baiano. Era todo mundo atravessando o pequeno trajeto, que ia de uma praça a outra, embalados por pequenos “trios elétricos”, para só depois desembocar na praça onde o palco principal estava instalado e onde os principais shows musicais se dariam. Talvez andando no meio daquela muvuca intensa foi que presenciei pela primeira vez o uso de certos entorpecentes pelos foliões. “Loló”, lança-perfume, cigarros de maconha eram facilmente vistos sendo consumidos por alguns jovens. Como meu espírito nunca foi o de cair na algazarra, ia mesmo para compor com meus olhos as sensações de toda aquela atmosfera, no silêncio que guarda. Meu jeito de “brincar” aquela festa era a do observador que deposita em si a lembrança dos mínimos detalhes.

Meu tio, o mesmo que morou lá conosco, até hoje brinca quando passa de frente à entrada de Palmeiras, dizendo: “Visite Palmeiras, antes que acabe...” Nada muito grosseiro nem tão despretensioso assim, talvez reflexo do que ele viu com seus próprios olhos ao longo dos anos que lá passou. Hoje revisito Palmeiras vez ou outra – em 2011 fui lá duas vezes – e aproveito para visualizar antigas reminiscências que trago comigo em meus dentros, que começam a partir do momento que me atiro ao declive bastante sinuoso da serrinha cortada pela estrada que dá para seus braços misteriosos sempre abertos aos que lá resolvem aportar...

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Nossos sádicos quase-amores

Por Germano Xavier

(ou apenas um cântico de alerta às humanidades de Iraquara)


Quem a mim autoriza dizer que tenho amor? Quem assim sabe de mim a ponto de me projetar tais excedentes qualidades ou intempéries? Se sou realmente bonito ou forte? Se pareço estar mais triste neste mês? Se não mereço a janta pobre que sobrevive em meu prato? São apenas perguntas, meu gentil amigo? Ou serão tão-somente as pérolas que nascem nas ostras do outro território, quase sempre o do inimigo, e que invadem as águas de lastro dos nossos navios de viver, e que não nos protegem das nossas tempestades nem nunca de nossos dissabores? Pois que pensei na tarde de hoje sobre o nosso sadismo diário, sobre nossas espécies de inveja, sobre nossas vesânicas afetações amorosas, que nos assassinam lentamente como em nossas fraquezas diárias. Estes sentimentos que se utilizam, em grande parte das vezes, de questionários para se manifestarem, nos causando sustos, surpresas, dores, nódoas na carne e no espírito.

Eu, você, o primo da Neuma que morreu ano passado, a irmã da lavadeira, o sobrinho do prefeito, todos nós, nascidos em Iraquara, somos feitos daquilo que atualmente a ciência tem como o seu maior tesouro: a certeza de que tudo é incerto ou pode vir a ser. Tudo, meu tão gentil amigo, absolutamente tudo que nesta Iraquara chapadense possa existir é porque é incerto. E não é necessário demonstração nenhuma de vida, mas apenas existir. O início do desfecho para este raciocínio que persiste no erro eu simplesmente deixo para você. Sim, quero que você conclua o pensamento. Primeiro porque fui eu que resolvi escrever tais faculdades e, segundo, porque pela lógica o leitor aqui é você. Eu não tenho a intenção de concluir nada. Você, caso queira, pode realizar o que falta. Mas não faça se isso soar para você como uma obrigação, por favor.

Acordei cedo hoje e até agora não tive um instante de certeza em mim. São tantas coisas que precisamos fazer, ser, ter, usar, manipular, tocar, sonhar, que facilmente apresento-me de mente trancada, pesado, pesadamente, o dia inteiro. É tudo tanto, que sempre perco a noção minha do antes e do depois. Às vezes, penso que toda a culpa pela minha própria desgraça é oriunda de mim mesmo, que não tenho ou ainda não encontrei o norte das coisas. Penso que sou mais um daqueles abomináveis seres tão fantasticamente obcecados pelo amor e todas as suas caras e taras, posto que me basta um leve assombro para que eu passe a desejar desfrutar de toda a complexidade ideológica de um cavaleiro antigo ou de um qualquer rude xerife de uma qualquer historieta western, passando por vampiros, sedutores, caixeiros-viajantes, cowboys e terminando por ir aos principados. E depois de todo o terremoto, penso e concluo - agora, sim - que somos incertos, tanto eu quanto você, feitos prioritariamente de incertezas e que nem por isso temos bons e estimados valores.

Atenção, povo de Iraquara, estamos precisando amar mais!

Estando muito aquém de tudo ou muito além de nada, é sem dúvida o amor que funda toda essas minhas mitologias heróicas e olimpianas - e não seriam nossas? -, surgindo em todas as esferas de nossas já por demais iniciadas vidas. Somos tão incertos que preferimos afirmar que temos amores, assim mesmo no plural. E não nos afeta a dor de uma mentira mal colocada quando profanamos aos quatro cantos do mundo que podemos ser medievais, modernos, bizantinos, trovadorescos, sádicos, humanistas e maquiavélicos ao mesmo tempo, porque nunca fomos de pensar que o amor pudesse marcar a superação dos conflitos sociais, familiares, entre homens e mulheres, apesar das religiões e das fés inventadas e já quase inumeráveis insistirem em tais possibilidades. E tudo isso advogo pela causa de todos os iraquarenses, porque estou mais para aquele sujeito que não pretende gastar sua idade idosa numa praça, jogando damas com tampinhas de refrigerante ao lado de velhos tão mais velhos que eu, e que mais pensa o amor sobre tudo e sobre todos não como uma fatalidade ou uma patologia, sempre desintegrado, espiritual, condenado à maldição pecadora quando do seu lado sexual, sempre imaginário e anuclear, mas como um suor fugido, que escapa porque é simplesmente liberto de quaisquer amarras.

Sou um sujeito normal que acordou cedo hoje, apenas. Um cidadão jovem que não acredita no amor polarizado e universalizado de que mostram os jornais e a televisão. Um homem que pensa que ainda não possuímos a capacidade de decantar o amor, de fotografá-lo, filmá-lo, entrevistá-lo, falsificá-lo, desvendá-lo, saciá-lo... porque penso que o amor está além de ser uma construção livre e que objetiva uma realização pessoal. A liberdade no amor está em sua congênita contumácia. Por isso não podemos materializá-lo, jamais. O amor é necessário à vida coletiva, a uma comunidade, e sobrevivendo numa esfera individualista perde seu caráter doentio, de delírio e de escapismo, porque se apequena e não mais consegue transgredir, violar, não fere e deixa de matar. O amor é um ser imenso e, portanto, assim deve se sentir, como um dominador e não um dominado. Penso tudo isso porque ainda sou daqueles seres que não conferem prioridade ao amor sintético, produzido sem o ingrediente do amor louco. A significação que dou a um beijo é toda uma imprensa sentimental e incerta, dentro de uma normalidade fundada em raiva e ódio. Nosso atestado de loucura.

A fantástica morte do "amor sintético”- justamente o que não quero para nós, povo iraquarense - é um retorno ao amar loucamente. O "amor de aventura", que se comunica com o outro, que reconhece e é reconhecido, que se perde e se afirma perante um alter-ego que conjuga o Eros e a Psyché num movimento de profundo individualismo talvez fosse o atalho para o amor-comum, o amor-de-todos, o amor-que-abarca.

Iraquarenses de ontem e de hoje, amai-vos uns aos outros! Porque quiçá a mais bela sugestão de resposta a perguntas sobre as incontáveis incertezas nossas, sobre navios à deriva, sobre naufrágios misteriosos e mares revoltos, sobre como seguir e aguentar toda esta rotineira catástrofe sem sentir tanta dor, sem medir tanta morte pelo caminho, sem enxergar tanto inferno no apenas acinzentado azul, está simplesmente no sol que nasce e morre, ininterruptamente, como a mim, como a nós...