Por Germano Xavier
(ou apenas um cântico de alerta às humanidades de Iraquara)
Quem a mim autoriza dizer que tenho amor? Quem assim sabe de mim a ponto de me projetar tais excedentes qualidades ou intempéries? Se sou realmente bonito ou forte? Se pareço estar mais triste neste mês? Se não mereço a janta pobre que sobrevive em meu prato? São apenas perguntas, meu gentil amigo? Ou serão tão-somente as pérolas que nascem nas ostras do outro território, quase sempre o do inimigo, e que invadem as águas de lastro dos nossos navios de viver, e que não nos protegem das nossas tempestades nem nunca de nossos dissabores? Pois que pensei na tarde de hoje sobre o nosso sadismo diário, sobre nossas espécies de inveja, sobre nossas vesânicas afetações amorosas, que nos assassinam lentamente como em nossas fraquezas diárias. Estes sentimentos que se utilizam, em grande parte das vezes, de questionários para se manifestarem, nos causando sustos, surpresas, dores, nódoas na carne e no espírito.
Eu, você, o primo da Neuma que morreu ano passado, a irmã da lavadeira, o sobrinho do prefeito, todos nós, nascidos em Iraquara, somos feitos daquilo que atualmente a ciência tem como o seu maior tesouro: a certeza de que tudo é incerto ou pode vir a ser. Tudo, meu tão gentil amigo, absolutamente tudo que nesta Iraquara chapadense possa existir é porque é incerto. E não é necessário demonstração nenhuma de vida, mas apenas existir. O início do desfecho para este raciocínio que persiste no erro eu simplesmente deixo para você. Sim, quero que você conclua o pensamento. Primeiro porque fui eu que resolvi escrever tais faculdades e, segundo, porque pela lógica o leitor aqui é você. Eu não tenho a intenção de concluir nada. Você, caso queira, pode realizar o que falta. Mas não faça se isso soar para você como uma obrigação, por favor.
Acordei cedo hoje e até agora não tive um instante de certeza em mim. São tantas coisas que precisamos fazer, ser, ter, usar, manipular, tocar, sonhar, que facilmente apresento-me de mente trancada, pesado, pesadamente, o dia inteiro. É tudo tanto, que sempre perco a noção minha do antes e do depois. Às vezes, penso que toda a culpa pela minha própria desgraça é oriunda de mim mesmo, que não tenho ou ainda não encontrei o norte das coisas. Penso que sou mais um daqueles abomináveis seres tão fantasticamente obcecados pelo amor e todas as suas caras e taras, posto que me basta um leve assombro para que eu passe a desejar desfrutar de toda a complexidade ideológica de um cavaleiro antigo ou de um qualquer rude xerife de uma qualquer historieta western, passando por vampiros, sedutores, caixeiros-viajantes, cowboys e terminando por ir aos principados. E depois de todo o terremoto, penso e concluo - agora, sim - que somos incertos, tanto eu quanto você, feitos prioritariamente de incertezas e que nem por isso temos bons e estimados valores.
Atenção, povo de Iraquara, estamos precisando amar mais!
Estando muito aquém de tudo ou muito além de nada, é sem dúvida o amor que funda toda essas minhas mitologias heróicas e olimpianas - e não seriam nossas? -, surgindo em todas as esferas de nossas já por demais iniciadas vidas. Somos tão incertos que preferimos afirmar que temos amores, assim mesmo no plural. E não nos afeta a dor de uma mentira mal colocada quando profanamos aos quatro cantos do mundo que podemos ser medievais, modernos, bizantinos, trovadorescos, sádicos, humanistas e maquiavélicos ao mesmo tempo, porque nunca fomos de pensar que o amor pudesse marcar a superação dos conflitos sociais, familiares, entre homens e mulheres, apesar das religiões e das fés inventadas e já quase inumeráveis insistirem em tais possibilidades. E tudo isso advogo pela causa de todos os iraquarenses, porque estou mais para aquele sujeito que não pretende gastar sua idade idosa numa praça, jogando damas com tampinhas de refrigerante ao lado de velhos tão mais velhos que eu, e que mais pensa o amor sobre tudo e sobre todos não como uma fatalidade ou uma patologia, sempre desintegrado, espiritual, condenado à maldição pecadora quando do seu lado sexual, sempre imaginário e anuclear, mas como um suor fugido, que escapa porque é simplesmente liberto de quaisquer amarras.
Sou um sujeito normal que acordou cedo hoje, apenas. Um cidadão jovem que não acredita no amor polarizado e universalizado de que mostram os jornais e a televisão. Um homem que pensa que ainda não possuímos a capacidade de decantar o amor, de fotografá-lo, filmá-lo, entrevistá-lo, falsificá-lo, desvendá-lo, saciá-lo... porque penso que o amor está além de ser uma construção livre e que objetiva uma realização pessoal. A liberdade no amor está em sua congênita contumácia. Por isso não podemos materializá-lo, jamais. O amor é necessário à vida coletiva, a uma comunidade, e sobrevivendo numa esfera individualista perde seu caráter doentio, de delírio e de escapismo, porque se apequena e não mais consegue transgredir, violar, não fere e deixa de matar. O amor é um ser imenso e, portanto, assim deve se sentir, como um dominador e não um dominado. Penso tudo isso porque ainda sou daqueles seres que não conferem prioridade ao amor sintético, produzido sem o ingrediente do amor louco. A significação que dou a um beijo é toda uma imprensa sentimental e incerta, dentro de uma normalidade fundada em raiva e ódio. Nosso atestado de loucura.
A fantástica morte do "amor sintético”- justamente o que não quero para nós, povo iraquarense - é um retorno ao amar loucamente. O "amor de aventura", que se comunica com o outro, que reconhece e é reconhecido, que se perde e se afirma perante um alter-ego que conjuga o Eros e a Psyché num movimento de profundo individualismo talvez fosse o atalho para o amor-comum, o amor-de-todos, o amor-que-abarca.
Iraquarenses de ontem e de hoje, amai-vos uns aos outros! Porque quiçá a mais bela sugestão de resposta a perguntas sobre as incontáveis incertezas nossas, sobre navios à deriva, sobre naufrágios misteriosos e mares revoltos, sobre como seguir e aguentar toda esta rotineira catástrofe sem sentir tanta dor, sem medir tanta morte pelo caminho, sem enxergar tanto inferno no apenas acinzentado azul, está simplesmente no sol que nasce e morre, ininterruptamente, como a mim, como a nós...
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