sábado, 20 de outubro de 2018

Roupa de menina



Por Germano Xavier


para Rainer Maria Rilke, in memoriam



ingressa teu corpo
| mínimo |
nesta fábula pequeno-burguesa

e compensa a morte
vestido de vida.


* Imagem: https://www.lpm-blog.com.br/?p=22966

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

São centauros meus cavalos (Parte I)



Por Germano Xavier



Gritei, com a voz fincada para dentro, em direção ao nada. O percurso palmilhado, aberto em fendas, a estrada, a solidão. Os dias passados para o homem. As noites passadas para mim. Esvaíram-se todos e tudo, absolutamente. Nenhuma contensão perante o tempo. Tudo sublimando, sumindo, indo. Quase tudo disse adeus, acontecendo, sendo. Todo o solo se diluiu em desassossegos. Um rumor de fantasia, talvez. E este homem sou eu, apenas humano, e como é impróprio esparramar-me no terreno do tempo e começar pelos detalhes mais escabrosos da memória! Na verdade, o dia é uma lástima neste aurorar de ano. A noite, idem. Toda noite é todo dia. Eu começo nesta exata hora e não sei o que isso representa em diferenças nem em semelhanças. Somente um bando de estorninhos acuados e velozes e em fuga, caçados, aparenta-se localizável através das janelas que são os olhos do homem, do homem que sou. Os pássaros me camuflam e o resto é angústia, calamidade para dentro e para fora - para fora e para dentro de mim. Sofro feito um animal caído - desinteligente? -, declarado morto por ter meramente levantado os dedos em riste e cerrado os punhos e querido se ser em completudes, em totalidades, ainda que tomado pela inicial vontade dos caminhos. Suspeitava que fosse um homem como qualquer outro homem do mundo, mas eu não aceitava fácil. Minha condição exigia uma determinada carga de negação. Causo contado sem nenhuma exclusividade, pouco inverossímil, pouco o bastante para ser somente real. Basicamente a tímida e nefanda história de uma paciente por demais corruptível: a história da soberania do ser. Um errante, perdido em si mesmo, marcado por suspeitas e conjurações que, por vezes, nem chegaram a existir. Aquele grito ouvido naquela noite de Natal soaria mais reacionário caso não tivesse sido eu mesmo o seu produtor, se não tivesse sido eu o próprio atormentado, se não fosse eu o meu particular abisso. Eu que nunca soube quem realmente fui diante do passado, se cresci, se amei alguém, se já odiei, se tive inimigos, se conquistei posses, se serei ou se sou. Toda a negatividade das ações, gestos de um mármore gélido, inacabado, de cor furtiva, companheiro de uma densa vida de aprovações e provações que eu mesmo não sei quando começou. Tudo estava dentro daquele barulho. E quando se está diante de uma estrada que você jamais ousou percorrer, o delírio tende a ser o único combustível, refleti, tentando suavizar-me momentaneamente, esperando que a reflexão e o silêncio viessem a disfarçar a real potência daquela hora. Foi pensando assim que, naquela noite de dezembro, aquele homem, aquele homem que sou eu, conheceu a conta dos fracos.


* Imagem: Amor de centauros (1635), de Rubens (Exposto na Fundação Calouste Gulbenkian - Lisboa/Portugal)

São centauros meus cavalos (Parte II)



Por Germano Xavier



Havia quatro tonalidades de azul no céu da cidade, mas eram azulidões frágeis propensas à volatilidade das ordens do mundo. Certamente se esgotariam e deixariam de ser azuis no absoluto negrume da noite. Talvez tudo entrasse em ruínas numa determinada fase do dia. Nada de tão especial se não fosse, aquele, o céu da cidade de um homem possuidor de uma vida. Cidades foram feitas para matar os homens, pensei, com uma branca impressão de que algum escritor teria imortalizado a frase que eu tinha acabado de construir. Talvez um poeta, daqueles tristes, malditos... hei de me lembrar um dia. Na verdade, aquela cidade não era a minha de origem. Por dentro, sabia que nenhum homem pode possuir a sua cidade. Cidades são como mães, que nos parem e que são desgraçadamente abandonadas pelos filhos, muitas vezes antes de se tornarem adultos. Afonso sentiu que estava em falta. É quase um costume saber-se rendido a todas estas manhãs e tardes ordinárias, a todas estas ocasiões especulativas, a todos estes comentários cegos. Decerto, ele estava em falta. Sim, em espera eterna, mutilado, de músculos quase flácidos, rosto ardido numa palidez indecisa, caído numa cama gritantemente nojenta de um pernoite barato ali no centro, virando sofregamente as páginas de um livro do Puig. Depois de alguns cochilos, signo das horas escuras, resolvi fazer um último ajuste no despertador. De chofre, a figura de Helia sobrevoou meus pensamentos. Dera-me o aparelhinho barulhento no mesmo dia em que falei a ela sobre a minha decisão, neste comenos já totalmente concretizada. Ele iria partir, mais cedo ou mais tarde, mas ele iria partir. A imagem daquela mulher ainda era muito viva em sua memória, mesmo depois de tantos meses separados. Talvez abraçasse os dias com a ternura do seu colo ou tivesse o busto da Nefertite ou fosse ela a entidade própria. Um abuso de efeitos femininos, com raízes de mulher que cortavam os solos mais impenetráveis. Helia gerava vãos enormes que lhe serviam de abrigo aos seus mais escuros vazios. Tinha ela lhe cortado com a faca que havia naqueles seus olhos, tinha ela ferido o homem com as armas do desconhecido que carregamos dentro de nossas carnes. Ele a habitava, peremptoriamente, dia ante dia, resoluto, em permanente frenesi e enlevo. Aqueles lábios rubros e candentes, como tremelicariam diante do susto noticioso! Não importa o que você esteja fazendo ou para onde você esteja indo, eu quero a sua felicidade, eu quero o seu bem! Você é um desgraçado, você me desgraçou, mas eu me preocupo com a sua vida! Saiba que sentirei a sua falta, como jamais me acontecera. Um pássaro, agora, sem asas, um pássaro de longos cabelos maviosos, de uma mistura de cores fortes, balouçantes, um pássaro de mãos melindrosas, extremamente macias, finas e de uma alvura definida, um pássaro de sonhos esgotados? Seria essa a Helia de agora?, já interrompida pela possibilidade de perder-me de vista?, pensou Afonso, num ataque cambaleante que misturava ódio e resignação. Ah, eu não seria tão fundamental assim, sussurrei. Eu não seria tão fundamental assim!, repetiu o homem, exclamando em bons decibéis para o lusco-fusco que dominava aquele aposento sinistro. O despertador marcava uma hora da madrugada e tudo era apenas lembrança, um passado que ele já queria esquecer.


* Imagem: https://www.deviantart.com/ar-ka/art/In-between-lines-143132646

São centauros meus cavalos (Parte III)



Por Germano Xavier



Helia quis falar de amor quando, do quintal da casa, atirou em minha direção o que sobrou de uma velha antena parabólica. Já estava melhor, agora desbravando o local onde eu estava. Falar de amor, para ela, era falar de tudo o tanto e mais, feição das horas. O que acabava tinha de ser amor, mas poderia ser chamado de avental, ou de cabide. Talvez o nome de um país. Inglaterra, quiçá! Helia era amante, e falava sempre no total das vestes do sentimento. A parabólica não passava de um mito. A captação dos sinais era feita por um receptor interno potentíssimo. As mensagens tanto chegavam como se despediam. A calha era sempre nova. Helia quis falar de amor até na vez em que fez dos longos canudinhos de alumínio da antena parabólica a letal arma contra a estupidez. Ela seria assim, brinquedo de se quebrar. A maquininha da boneca de plástico, o motorzinho de dentro a pulsar o sangue que havia. O coração de Helia batia no giro da pá do cata-vento. Batia girando, girava de teteia. Era sempre uma carinha de alegre o semblante daquela mulher. Ela amava, assim, como o vento ama a caminhada longa e sem barreiras. Amava sem pressa, sem cor o amor de Helia, sem cera, sincera. Amar era a palavra de Helia. Amar era o verbo de Helia. Amar fazia de Helia a mulher mais bela, porque era ela o amor. O amor era Helia, era sua palavra e o seu verbo, seu verbo materializado, vivo no papel, esperando longe a ânsia de ser. Foi Helia quem descobriu que para amar basta dobrar o fio da tomada e amarrar com o aramezinho o saco de pão, que o amor é volátil como o álcool que ela trouxe do supermercado para ajudar na feitura das unhas, que para amar é preciso desligar a televisão e deixar a caixinha de fósforo do lado esquerdo do fogão, para acender na véspera do vendaval. Helia amava abrindo potes e lavando os pratos, em exercício de cozinha. O tempero do amor era o caldo do feijão verde, com cebolas tostadas, alho e um pouco de sal. O amor corado, borbulhando a incerteza das horas e o próprio estado de efemeridade que é amar... Helia pegava as facas e ia cortando as carnes, esquartejando-as. O osso ficava para os cachorros que porventura... Todo o resto não combina com o amor. Amar é cortar, lâmina afiada de aparar fagulhas. Depois, Helia era máquina de moer, pois amar é moer, é pisar na carne, amassá-la, apertá-la, comê-la. Porque Helia era mulher de pular do telhado, sem medo de cair de rosto no chão e sangrar o sangue das enfermarias... Era uma boa desgraça ela, se assim eu pudesse afirmar. Suas asas, podadas, e o seu resto?, que fosse angústia aquele findar de vivências, mesmo assim, aturdido o relacionar-se, ele alquebrado, fragmentado, em pedaços, em miúdos. Mesmo assim. Estas coisas, estes fantasmas! Era o fim. Helia não era nada daquilo. Não há o que fazer, Helia. Ele rememorava. A casa no centro, o ar abafado do quarto, a lembrança ainda viva de que era ali, naquele cômodo, janela cerrada numa eternidade de medos, o local de nidificar, em excessos, demasiados amores. A casa com dois quartos, parte da parede em verde fraco, a janela para a noite escancarada quase sempre, aquela imensidão de sentimentos, de angústias e de dores. A lembrança dirigida à casa que havia sido o galpão de toda aquela fervura de corpos, o estábulo para tantos óleos humanos brotados da pele como uma erva que nasce, desenfreada, e interfere nas sequências horárias de um tempo muito maior. A lembrança de pé, saltitando sobre a testa. A memória de Helia, Mnemosyne, como diriam os gregos, mãe das musas. Fora ela, Helia, o despertar para algo que lhe traria dor, sinônimo para um caos fabricado, o passado penetrante a ferir esperanças. Não há o que fazer!, exclamei em urros. A coitada, olhando-se no espelho ínfimo do porta-batom de branco couro sintético, pensava sozinha. Primeiro que eu não existo com você. Existir sempre me foi um troço difícil. Não quero me complicar. Ainda mais nestes tempos tão civilizatórios, civilizantes. Dividem tudo, julgam tudo, mataram Deus, nem podemos mais transcender, nós não somos nada. O dia hoje está tão bonito, sei lá, deixa. Acordei cedo e me deu uma vontade de andar por um bosque que nem sei. Pus um livro na mochila. Vou ler quando chegar em algum lugar mais calmo. Minha tristeza viajou para longe. Foi tratar de negócios importantes, talvez. Morar longe dos centros de nós mesmos, talvez aí esteja o segredo para fugir do sofrimento. Dizem que é lá no bosque bonito que também fica o inferno. O inferno nos olha todo o dia, fica na espreita. Ele é terno - e tisne não? – e nos acompanha. Hoje eu optei por conhecer o inferno, não outra coisa. Quero-o porque ele me quer. Venha de onde vier, com a máscara que preferir, mas tem de ser ele. Quero ser derrubado. É a minha doença e talvez o meu último dia aqui neste lugar. O mundo é o meu lugar. Ou não é. Sou um terminal. Tenho a doença do meu pai e a doença do meu irmão e a doença do meu tio e a doença do chofer e a doença da ama e a da prisioneira e a doença da minha mãe... Eu tenciono algo e me acho responsável. Segura esta qualquer arma com o punho forte de você fêmea e me atire uma morte rápida se preferir. Que me paralise e me invalide, que me perturbe as vistas, ou que me torne nervoso e histérico, depressivo e suicida. Meu caso está registrado no amanhã e no hoje que é o agora. Vou me submeter ao tratamento dos desregrados. Por vida, sempre sofri e não estou aguentando mais. Você, que pode até sorrir um dia, irá relatar meus traumas e vai ver como sua infância foi tão nobre e silenciosa. A cura está no bosque e o bosque é sombrio. Lá, coisas desaparecem, homens se perdem, gritos são ouvidos, lamentos e lamúrias se expandem pelo ar. E quando eu cair por terra quem vai me amparar? Sou romântico e vou morrer. Sinto que posso levar algo, penso. Poderei levar a verdade? O que realmente importa daqui? Há alguma coisa que realmente sirva, que sentirei falta quando estiver morto? O teu sorriso? E o amor? Ninguém precisa do amor? Talvez já seja noite e eu estou te falando, falando, estou apenas falando, estamos sós, com quem estou falando? Quem é este que me cerca agora? Quem é este ser que me atormenta na quase-morte? Chega de saudade, chega de pouca ciência, chega de pouca miséria. Eu espero pela desgraça plena. Apague o café, seu fogo. Feche a torneira. Encoste sua cabeça aqui. Saia daí e venha. Vem, meu bem, e me diz obrigado. Que o inferno é tão lindo, lá vou ler um poema. Você vai ficar e vou te bater na cabeça. Vou beber teu sangue, vou matar teu filho que ainda não nasceu, serei tua e você poderá voltar. Repousa aqui, estira estas pernas e vem, amor, vem que é hora, não se iluda mais, o céu só é um novo assassino. Faremos alguma pornografia, celebraremos o nojo, como quiseres, mas venha. Um banho nessa vida de festim! Corre para cá, encontro-te, e me traz, por favor, o teu medo do demônio. Helia dizendo, quase vomitando. O quarto se transformara em uma ilha, incrustada na memória ancestral dos dois, escrita nos recônditos logradouros da consciência. Um mero quarto no centro da cidade, avenida Menezes Coimbra, 312. Um quarto peninsular, ligado ao humano apenas pelo fio da incerteza e do mistério. Tola, Helia! Tola!, insisti abertamente a me autoflagelar em constantes ataques verborrágicos que, no fundo, de nada adiantavam. Deixou cair a mão esquerda na altura de um dos bolsos frontais da calça jeans, puxou um cigarro. A chama curta do isqueiro, logo a baforada inaugural perfumaria os arredores. Helia pensava, não pode ser, todo esse tempo de entrega, de devoção, de uma quase submissão total àquele canalha, e agora... E agora o sumiço, a repentina saída, estratégica?, do homem que por ela fora amado sem economias. Não suspeitava que a dor estivesse tão próxima do gozo. Não era cabível ter de conviver com a ausência, com o vago, justo ela, Helia, vinte e sete anos de espera, mulher pronta, sonhos maternais, já experiente na arte da bordadura, dois ou três conjuntos de peças infantis na estante, esperando, pois tinha de ser dele, possuir o rosto dele, a carne grossa dos lábios dele, que tanto sugou seu néctar amante. Já ele conduzia-se ao desconcerto, ajeitando sua envergadura de anjo - ou de demônio? -, para tentar voos mais distantes. Rumava para a mesma Auto-Estrada do Sul do conto de Cortázar. Ou não. Era uma tentativa, sim, e ele devia ser o camponês do Ariane, especulando sigilosamente sobre o simplório mistério de saber para onde estaria se dirigindo, flutuando deliberadamente por sobre seus delírios, solto e preso, em sandices. Minha Alétheia!, exclamava. Sua verdade, seu destino. Tão quisto era assim como o esquecimento mais puro.


* Imagem: https://www.deviantart.com/kpavlis/art/Waiting-140246784

São centauros meus cavalos (Parte IV)



Por Germano Xavier



Ouvi dizer que ela estava sentindo uma angústia, uma dor muito profunda. Eu não sabia que as pessoas sentiam dor. Imaginei ser o único. Ela resolveu telefonar para mim. Uma conversa rápida, cinco minutos ininterruptos. Cinco minutos dum aconchego em minha alma. Desejou me ver. Pediu. Veio, de ônibus. Eu ainda estava por perto. Não havia sido a despedida, aquela. Sempre quis demonstrar independência. Na verdade, nunca conseguiu fugir da saia da mãe. Uma burguesa. Certamente. Eu era diferente. Havia algo de diferente em mim. Não olhou para o meu rosto. Silenciosamente, oito ou nove passos, a geladeira. Bebeu água. Sentou-se. Abriu a pequena bolsa de couro sintético e retirou de dentro uma cartela de comprimidos. Não eram comprimidos, eram cápsulas. Estava com febre, uma moleza no corpo a dominava. Eu devia ser muito diferente. Colocou o remédio na boca, bebeu um gole d'água. Baixou a cabeça. Todos estão de mau humor, pensei, até os ratos. Eu havia alugado um quartinho no meio da cidade que logo iria ser deixada para trás. O carteiro passou e deixou duas correspondências junto à porta que dá acesso ao mundo. Eram dois envelopes brancos de tamanhos diferentes. Apenas observei os remetentes, assim como os endereços deles. Achei melhor não abri-los, apesar de saber que fazer isso não implicaria em absolutamente nada. Os antigos moradores da casa onde vivi meus últimos dias atualmente não passavam de fantasmas. Assim eu imaginava. Com o passar do tempo foram chegando mais correspondências. Eram muitas, de variados tamanhos e cores. A maioria com logomarcas impressas de empresas e bancos. Fui obrigado a reservar uma parte do velho guarda-roupa para organizar as missivas. Eram muitas. Onze dias se passaram e nada dos proprietários da casa. Ficaram de vir pegar o adiantamento pelos dias que eu ficaria lá, mas. Só consegui ouvir a voz de uma mulher que naquele dia havia combinado comigo que iria deixar as chaves com a vizinha, e que eu não me preocupasse. Cada vez mais curioso, eu relutava para não cair na tentação de dar uma espiada. Foi que não suportei e decidi abrir uma. A primeira de todas que eu havia guardado. Era um envelope branco com as bordas coloridas. Rasguei o papel silenciosamente. Helia estava ao meu lado, pálida de febre. O barulho do crepitar do papel poderia assustar os fantasmas. Retirei a folha de dentro e percebi que nada havia, nenhuma palavra, nenhum desenho. Somente a brancura do papel. Abri a segunda e lá estava, apenas o branco. A terceira, a quarta, a quinta... Só o branco. Não havia nada, mas o carteiro, sempre que podia, deixava uma ou duas correspondências na porta da casa onde moro momentaneamente. Eram de variados tamanhos e cores os invólucros. E o mundo lá fora continuava a passar. Nem com evento de tamanha estranheza Helia conseguiu fazer cara de espanto. Ela continuava absorta, sentada sobre sua perdição em tons rosáceos. Há exatos sete dias desejou sair de sua casa, de seu lar, verdadeiro?, de sua cidade. O que realmente importava para ele era o fato de ter posto suas pernas em fuga, mesmo em pensamento. Tanto que idealizei, tanto que briguei comigo, que lutei. Ele tinha saído daquele lugar infernal, lugar onde tinha deixado de se ser, local onde começava a sua vida prostituída, sua parcela vendida, seus setores mercadológicos, como impressos em papel jornal. Pela primeira vez sentia aquilo dentro dele, uma energia penetrante, reveladora de suas maquinagens potentes, antes enferrujadas. Helia! Vespa sem dó, sem pena, foste tu o rumo todo de minha perdição!, regurgitou ferozmente para si mesmo, olhando para a figura desalmada da criatura feminina que pendia para um desarme total. Mulher que acabava por encadear desde a mais insignificante manifestação utópica por liberdade ao maior grau de lucidez nas ações direcionadas a si mesma. Para ela, os sonhos eram como águas de excelência, águas que se fundiam num convite desavisado, vaga-lumes ao entardecer. Ele - eu - caía em suas lanças, em seus arcos, quando dúvida, quando devaneio. Por que, Helia?, perguntava-me, inocentemente. Aquele convite irrecusável feito pelo bater de asas daquela mulher, agora ex-amante, ex-amor, ex-mulher-mais-linda-do-seu-mundo, ex-tudo, sem pressa de se chegar ao fim, tão vagos eram aqueles passos, os dela, sutis, resumidos de direito numa incandescência mágica. Havia pedido que ficasse, que por favor não fosse embora, com uns olhos que prejudicavam as mais rudes emoções. Ele sabia que o passado era uma usina, uma usina que fervia. A madrugada, cindida, teimava.


Imagem: https://www.deviantart.com/kpavlis/art/The-runner-139501905

São centauros meus cavalos (Parte V)



Por Germano Xavier



Corria a noventa quilômetros por hora entre automóveis espantados que o deixavam ainda mais solitário e opaco. E novamente a imagem daquela mulher, agora reluzindo na parte superior do pequeno espelho retrovisor em forma de gota, ali, ao seu lado. Todos os fogos acesos em sua parcela anímica, todas as combustões internas a queimar e colorir de um tisne imperfeito sua pele, seu cenho. Seus pulmões arfavam, desconfiados da veracidade do instante. Aprofundava o pé no duro acelerador daquele castigado possante, depositando todo o peso do medo, toda a carga de suas subjetivações, tal qual um paladino montado num corcel que galopasse desejos, que resfolegasse passados. Ela apareceu, assim, quando ele menos esperava. Apareceu mudando tudo ou quase tudo de lugar e sorrindo e tinha um sorriso bonito. Bonito como o meu coração. Como o coração que sempre pensei que eu tinha. Como o coração que eu sempre imaginei que era o meu coração. Tudo tão rápido, tudo tão veloz. A linha de partida e a linha de chegada. Tudo tão rápido, tudo tão veloz e tudo tão bonito. A linha do tempo se delineando. Ela morava no centro. Eu também morava no centro. Uns vinte minutos caminhando. Lá na praça da igreja foi o local do nosso primeiro encontro. Na noite e no vazio das pessoas noturnas, nosso primeiro encontro depois de alguns encontros muito mais que desencontrados. Helia era encorpada, seios fartos, boca carnuda e usava óculos. Um vestido cinza ela vestia, com bolsos grandes na altura dos mamilos. Eu tinha dito que a beijaria ao primeiro sinal de engraçamento. Não perderia tempo e não desperdiçaria nenhum segundo ao lado dela naquela noite de tão entusiasmante conhecimento. Saí de casa pontualmente, tecendo esperanças. Sem esnobar virtudes, dedilhei uma canção antiga de uma banda arranhando as unhas no cós da minha calça jeans já um pouco sofrida pelo uso. Era uma canção bonita. Bonita como o meu coração. Como o coração que sempre pensei que eu possuía. Bonita como o coração bonito que eu sempre imaginei que era o meu coração, e só o meu. Meus passos leves por fora e pesados por dentro. Minha alma em apuros. Minha alma evasiva, parecendo inaugurar um complexo de dúvidas em mim. As pessoas noturnas e as pessoas quase-noturnas encurralando minha carapaça andante, meu esqueleto robusto indo, minha arquitetura forte fugindo da desgraça do convívio unilateral e partindo para a felicidade ou para o axadrezado recanto dos moribundos desalmados. Eu tinha de escolher. Ela estava a me esperar, sabia disso. Pensava e vinha logo um tufo de alívio no meu tórax, entrado pelos pulmões, ar mais ameno. Ela, sim, ela estava a me esperar no vazio do banco da praça vazia da igreja fechada e dos homens noturnos e quase-noturnos nem tão vazios assim de miséria e breu. Eu estava cada vez mais perto dela, da mulher que eu queria naquela noite, para ser e fazer dela a minha noite. Eu sabia que se eu pensasse nela e na proximidade cada vez maior entre o meu corpo e o corpo dela, certamente chegaria mais rápido, com mais vontade, bramando um arco de voz cortante e animalesco. Eu sabia que ela me esperava, porque ela queria toda a boniteza do meu coração, toda a sua castidade, toda a sua paciência, toda a sua timidez. Tive a impressão, num ligeiro estalar de tempo, que nossas veias pulsavam num mesmo diapasão, latejando a voz maior do corpo. Uma espécie de sintonia preambular, metade anacrônica metade feita do agora. Eu perto, eu longe. Perto do coração inconsolável de Helia, longe de minha demolidora verdade. Longe de qualquer coisa que pudesse me deixar ainda mais distante. Mais dois ou três quarteirões vencidos. Meus pés calçados, roçando o pó endurecido e caído de todo um dia. Continuei. Foi quando apontei na grande praça central. Minha mente esgotada de tanta confabulação. Minha enciumada armadura já partícipe de um qualquer desastre, especulando e calculando probabilidades. Eu já ali, eu mesmo, esperando qualquer coisa. Esperando até Helia, em seu vestido cinza com dois bolsos na altura dos mamilos, com a fartura doce de seus seios melíferos, desvencilhados de qualquer medo maior senão do medo de cair nas garras do amor. Amor que não escolhe praças, que não escolhe horas nem vezes, que simplesmente fere e marca com a brasa incandescente a epiderme das repúblicas humanas. Ah, Helia, se você soubesse o quanto te quis durante o curto passeio que naquela agora me imprimia! Se você soubesse o quanto pronunciei teu nome ao vento durante o intervalo do não-ter e do ter você em totalidade! Se você soubesse, Helia, o quanto a aflição me dominou, o quanto amuadas por receio tilintaram minhas vozes internas e o meu coração... meu coração bonito! Aquele mesmo coração que sempre imaginei que era o meu coração e que só eu o possuía. Porque meu coração era tão bonito que ninguém mais poderia ter um igual ou qualquer outro que se assemelhasse ao meu coração, tão bonito, tão bonito, incapaz de qualquer maldade. E como foi complicado a presença, tua presença tão grande diante de mim, abarrotando-me de luas, emplumando-me de uma carga de sombra e silêncio. Mas como foi maravilhoso o nosso mistério, a nossa palidez diante de tudo, o nosso momento tão nosso, ali, dois e um, unindo zodíacos inversos ao contratempo dos vendavais. Nossas mãos se entrelaçando como quem quer a completa destruição dos embuços e das paredes. Nossos olhos se olhando na fundura da poesia anarquista de nossas embalagens de vidro e espelho. Nossas bocas... como foi tudo tão especial, tudo tão principal, tão puro, nossas bocas dando voltas e mais voltas por sobre o eixo das línguas. Como esquecer dos nossos sexos se cheirando, em pelos ouriçados, castigados pela curta maldição das abotoaduras. E tudo logo se abrindo, seus regaços sendo preenchidos com a vulcânica seiva produzida pelo meu coração bonito, meu coração tão bonito que não cabia mais em mim e que explodia em você, bem dentro de você, só em você, escorrendo aquele líquido signo da brancura da nossa hora. Insuspeitosas foram as ânsias iniciais. O conhecimento distante, nosso e arraigado e eterno. Você me trazia os adobes e eu elevava nosso castelo, de vime o amor, torto em se querer direito. Aligeiradamente, como dona de minha fazenda, cercou-me de tuas fronteiras indispensáveis lá pela noite de teu sorriso. É do conhecimento de ti, mulher, o fermento que extravasava o líquido que tenho cá dentro - o não da máscara de se ser fantoche sagrado. Os deuses, se é que eles existem, vinham narcisos a nos olhar em súbito frenesi. E bebiam do nosso vinho. E sucumbiam diante de nossas virtudes. E invejaram do nosso amor austral, sem freios e sem obviedades, natural, humano, como deve ser o puro amor. E quando me surgias, assim, a poucos metros de minha mão, cálida, suave em se deixar ao enlevo maior do mundo, encarnava eu a canção do sequioso encontro, a música da necessidade de ser aquilo que queríamos ser, em qualquer instante, em baile, naquele nosso espaço azul. Dançamos nosso tango-corpo, o primeiro de muitos, porquanto desejamos, porquanto vivemos, únicos, coadunados. Embriagamo-nos, deitados sobre a nuvem de nossos planos, embriagamo-nos apaixonadamente, embriagamo-nos loucamente... como num sonho rebelde e jovem e real. Quantos foram os laivos que antecederam e sucederam os trejeitos do gozo, Helia!, quantas foram as expiações que realizamos juntos, na coberta daquelas estrelas que nos flechavam através da janela aberta. Quantas foram as minhas invasões e minhas cruzadas em suas terras mais protegidas, e como foi tão forte e como foi tão bom. Ah, Helia, o quanto nos castigamos e o quanto eu desconhecia o maligno do meu coração! Aquele mesmo coração bonito que sempre imaginei que fosse o meu. Aquele mesmo bonito coração que pensei mil vezes ou mais ser tão bonito e puro e incapaz de qualquer maldade. Você me amou, Helia, e eu não fui capaz de tanto. Você me amou com a força de esperar a campainha acender o uivo meu, ainda da calçada, esperando a voz de retorno. Meu coração bonito agora me provando o contrário de todas as minhas elucubrações. Meu coração nem tão bonito assim, assassinando os nossos meses juntos, decapitando as minhas idas à sua casa, degolando as nossas horas loucamente amadas e todas as memórias edificadas sobre o mesmo travesseiro. Meu coração, Helia, que você pensou ser só seu, inteiramente seu, absolutamente seu, como quem possuísse um outro ser, meu coração arrancando para fora à língua da víbora do amor e te emprestando o veneno eterno da ilusão. Ah, Helia, não foi minha culpa! Não foi do meu querer tanta desgraça e tanta mágoa! Foi esta coisa que guardo aqui, veja!, esta coisa que mora em meu peito, sinta!, por favor!, chegue mais perto!, esta coisa vermelha, feita de sangue que vive dentro de mim, esta coisa que tem vida própria, Helia, que não sei dominar, animal silvestre, sem dono, arredio, cavalo trotando no planalto baldio, besta do inferno, Helia, esta coisa!, toda a culpa é dela, toda a culpa, toda!, Helia, toda, pois são centauros meus cavalos. Sentiu-se surpreendido por um toque de afirmação que, bem de leve, lançava-o a um entranhado estado de soluços que lhe cercavam todo o corpo de prazer. Seguiria, veloz e um tanto quanto esfuziante, por pelo menos dois quartos daquela madrugada, espalhado pelas divagações que ele mesmo houvera edificado. Uma estrada escura, completamente escura, deficiente em sinalização, margeada por uma gramínea rasteira de um tom que, àquela hora da noite, parecia desbotado e próximo de um cinza dissoluto. Grandes roçados desapareciam com a mesma volúpia que em seus flancos surgiam. Por vezes, um ou outro animal silvestre que atravessava a pista alertava-o sobre a existência de vidas, mormente sobre a sua. Duas ou três raposas, sob os auspícios da lua, alguns répteis rastejando e buscando as presas, almejando abocanhá-las, feri-las, devorá-las gananciosamente... tudo por ele passava. E aquela vida de fuga marchando, marcada por curtos silvos esporádicos que tocavam o oceano de seus ouvidos, reprimindo-o de certa forma, impedindo-o de rumar livre, com o sentimento curioso de poder ir sem restrições alguma, em despejo de potência máxima, sem freios nem travos, apenas sentindo o repentino impulso de um vento estranho e agradável içando aquelas suas asas podadas, aquele seu resto.


* Imagem: https://www.deviantart.com/pstoev/art/around-the-streetmarket-1-167897271

domingo, 14 de outubro de 2018

Diante do não sabido



Por Germano Xavier



Não, eu não sei amar. Confesso, ainda não aprendi a arte da dissimulação. Eu sou bem moço, sim, mas já bem crescido para saber que a vida é uma provocação. E das mais infames. Sou um sujeito quedo. O silêncio é a parte mais sobressalente em mim. As pessoas não entendem que esse é o meu jeito de ser, de me expressar, de me comunicar. Sinto que elas estão sempre esperando algo oriundo de minha face ou mão ou boca, alguma palavra a mais ou alguma loucura que eu possa fazer de súbito, matar alguém, estrangular o professor ou executar a pessoa com quem converso. Mas eu só sinto. Não sei o porquê de tudo isso. Parece que sonhei. E no sonho acendi a lâmpada do meu quarto e percebi que os ratos tinham desaparecido. Talvez estivessem escondidos em algum móvel, pensei, em estado de alerta, prontificados ao ataque. Tremo só de pensar naquelas centenas de pequenas mandíbulas, atarraxadas em minha pele, grudadas em meu cabelo, roendo-me, sangrando-me. Olhei para o chão. Parecia estar seco. Hesitei. Imaginei, mas depois de muita luta decidi levantar de onde estava. Havia uma escuridão longa depois e que não sei como dizer. Não há um pequeno feixe de luz que consiga penetrá-la. Não que eu seja um admirador das trevas, mas a noite é o momento mais misterioso e instigante. A noite, no sonho, não respeitava os solitários. Destino longínquo. Separava-se de si mesmo em pulsares e alguns goles de bebida quente. Rumava. Realmente estava sendo difícil se ser ultimamente. Difícil, porém ele era já menos triste. Podia até se sentir um pouco mais feliz em raros instantes. Eu, sombra perfeita do que o mundo é capaz de fazer com a humanidade, passivamente comporto-me num assento confortável e cinza-verde de cor. Deixo que o vento que vem vindo do exterior sussurre e prostre-se diante dos meus olhos, agora cosmopolitas. Uma morbidez ilusória e procedente do dia que não seria mais um dia normal. Em minhas reentrâncias correm cósmicas as sensações que parecem subterrâneas. Sob alguma minha forma de sotaina, algo poderia acontecer a qualquer instante. Os papiros foram escritos e simultaneamente lidos pelas retinas visionárias que meu corpo não suporta. Átimo. Surpresas foram destruídas, todos os focos tristes em que pensava. Metafísica trac trac trac, tesoural, dilacerantes tracs que vinham predominar minha existência. Segundos aproveitáveis, não se sabe, de nada sabemos, ou serenos?, ao lado do vibrátil plasma feminil que dialogava potencialmente com minha alma, coitado de quem, ou em? Dizia coisas belas. Falava com tamanha ternura que me deliciei cruamente. Que palavras possuo, ainda lembro!, sangue feliz no final. Sei que não me encontro nesse arrebol cotidiano. Sei que ainda existem, sob as fardas e uniformes, corações como o meu, tão lindamente deflorados. Acordei rodeado por capinzais extremamente altos. Tinha invadido o acostamento da rodovia por onde circulava. A marca de borracha no asfalto, riscado naquele anil desbotado pelo sol. Levantei e percebi o estrago que tinha causado ao carro. O farol do lado direito em caquinhos, o para-choque arrebentado, uma roda levemente empenada. Havia entrado forte no matagal. Estou vivo, e isso me retirava um pouco o desânimo matinal. Entrei no carro novamente e dei a partida. O motor teimou um pouco, mas roncou forte instantes depois. Joguei pela janela alguns cigarros fumados pela metade, duas garrafas de uma vodka barata, alguns recibos e peguei a estrada sem dó. Um chiado fino surgiu e, pelo que me parecia, vinha das proximidades da jante dianteira esquerda. Ele que não sabia para onde ir deveras, onde se esconder. De quem?, perguntava-se, sem pronunciar voz. Ouvia vozes que muralhas de concreto sussurram no flamejar dos segundos insuspeitosos. Eram tão estranhas e ao mesmo tempo disfônicas, que tentava sem grande sucesso parar de escutá-las com o gesto de sufocar com as mãos suas orelhas. Estes clamores, tão voluptuosos para alguns, não o faziam sentir orgulho por ser proprietário de um sentimento valioso e único como o amor. Ouvia as mesmas vozes de sempre e agradecia às paredes por terem sido escudos, livrando-lhe da vista o vômito que os homens repelem de suas bocas más e carnívoras. Os sons humanos modernos, contemporâneos, perderam sua verdadeira lógica. Não havia mais transparência no aquário afetuoso dos entes que lhe habitavam - alguns ainda insistiam em dizer que toda essa transformação vo-ca-bu-lar dera-se pela enorme necessidade de sempre se estar em renovação, para não ficar para trás nessa corrida cada vez mais doméstica pela vida. Todavia, como ser tão ordinário, a ponto de sepultar a beleza natural do nosso caráter?, pensava. Tornara-se muito difícil discutir tais assuntos, porém era indiscutível sua serventia para o seu desenvolvimento enquanto homem. Era impressionante a percepção que tinha do mundo atual, parecia-lhe não haver nenhuma tentativa ou esforço para que coisas que já fizeram parte do manual dos homens, e que agora se encontravam em processos de putrefação num destes baús enterrados pelo universo, voltassem ao cotidiano de normalidades. A espécie perdera o mapa do tesouro e com isso o próprio tesouro também. O seguimento que daríamos a todo esse bordel era incerto, mas tranquilamente previsível acaso levássemos em conta a realidade dos fatos. Era como dizer que muitos preferiram andar descalços, mesmo tendo em casa um calçado para proteção dos pés. Como bom seria se tudo isso fosse uma questão de esquecimento, que ao sair de casa os indivíduos sempre se esquecessem ou não se lembrassem de pôr no bolso de suas camisas as sensibilidades e as intuições. Quisera ele que fosse assim! A verdade é que estamos pintando o nosso próprio quadro biográfico com tintas frias, cujos princípios ativos são a extinção e o erro. A vida não cessa, o tempo se esconde entre árvores e o homem sempre a padecer diante de seus próprios olhos. Alguém de muito longe derrama lágrimas de arrependimento e angústia ao ver o estrago que sua obra-prima está a fazer no enredo panorâmico da sinfonia que lhe foi destinada. O criador lamenta ter criado em seu paraíso não só a serpente e o fruto proibido, mas milhões de cobras e aranhas peçonhentas enfeitiçadas por verbos malignos. Não há mais o que modelar, tudo já havia sido escrito e lapidado. Pena que muitos não leram os ensinamentos ou não souberam interpretar o texto da maneira certa. O nosso tálamo agora é coletivo, o serviço foi feito por todos que contribuíram incessantemente para esta arquitetura perversa e mitigada. A carcaça fica e o miolo se desfaz. A música é feliz, sem saber que podia ser mais, a lua já iluminou mais corações, o brilho radiante das estrelas já foi mais autêntico. Antigamente, pensou, o fim era apenas um novo recomeço. Hoje, o fim é o coto do nada, dilacerado pela ordem que dopa a mentalidade emocional original dos nossos cromossomos, fazendo-nos perder grande parte da visão resoluta que tínhamos sobre a verdade e sobre tudo aquilo que nos faz bem. Neste momento, entra em cena o lobo mau, que não é o das histórias infantis, mas o mesmo que se vestiu de cordeiro e que acabou nos cativando pela sua delicadeza e ingenuidade. Uma seringa com uma solução, pitadas de purpurina injetada em nossas veias sem qualquer tipo de cerimônia. Este sim é seu real semblante, que nos amordaçou com suas correntes de metal e ecos de aço, tornando-nos servos e escravos do hábito, do modismo, do belo e da miséria espiritual. Este é o lobo vigente, a babilônia do ontem, do hoje e de sempre, a bomba atômica do medo, esta é a comitiva do governo, ou melhor, do desgoverno. O homem se perdeu na matéria, no esboço do certo, na crua ânsia de ser mais. Acabou se machucando em espinhos e nas rochas pontiagudas escorregou. A cicatriz vingou toda a dor e o ser que se diz humano traz hoje na bagagem as sequelas de uma escolha sem retorno. A morte veloz é agora sua maior consequência. Traído pelos seus próprios gestos, exilou-se, ele-eu-nós, em nosso próprio lar, nossas casas, casulos. O sangue da ferida aberta não estanca, rejubila-se em alimentar o solo sedento por adubos orgânicos. Como é cruel ter de usar máscaras para não ser intoxicado pela sujeira que nos impede a naturalidade, que nos priva de um belo adjetivo derivado de nossa tão explorada e subestimada mãe natureza. Ao relento, inspiro uma harmonia demente, puxada pelos acordes da britadeira e pela regência mágica das betoneiras. Ao invés de aproveitarmos a noite para sonharmos com um mundo mais digno e justo, preferimos acertar o sono para não perdermos as horas. Tudo reincide, recai sobre a terra, menos a vida que não é retroativa... inúmeras pessoas registram em folhas de papel teses sobre reencarnação ou ressurreição, mal sabendo elas que tais ações podem acontecer a qualquer momento e que, para isso ocorrer, só é necessário um incentivo pessoal, para que floresça o renascer e a redenção que a todos falta. Estou divagando? Sinto um novo resmungar em meus tímpanos... é só mais um anjo torto com estranhos pedidos e alertas. Ele implora de joelhos para que eu pare de pensar, de falar. Por que devo parar? O oitavo anjo do apocalipse responde: Se você não parar com essa conversa, eles irão te prender. Eles quem? Os torturadores e trituradores. Mas que crime cometi? Pensar, amar, viver... Mas isso não é crime! Meu caro amigo, qualquer ideologia contrária aos interesses do dragão é potencialmente exterminável. Não querem formar pessoas capazes de domar o seu ego ou que tenham um conteúdo crítico sobre as novas regras que impuseram. Somos a ameaça aos seus reinados e domínios. Cortaram-nos a língua e as mãos, furaram nossos olhos com estacas gananciosas e porcas. Restou-me o choro por não ter mais como reunir meu exército e fazer uma frente de combate contra todo o mal que nos assola. Meu sexto sentido me revela a morte de irmãos e irmãs que, como eu, defendiam o bem a qualquer preço. A triste sensação de que não haverá mais recomeço e que o fim será somente o fim me salta aos nervos. Sentado onde estou vou à morte lentamente, numa tétrica solidão forjo meu arsenal vingativo numa paranoia que me altera. O silêncio me afaga, meu companheiro nas horas mais insanas e improdutivas da minha existência. Quando mais uma lua se aproxima, recordo que ali na estante guardo medalhas de honra ao mérito, verdadeiros símbolos de uma guerra que tracei. Lá se vai um espião, um amante dos dizeres, vai ao chão que os vermes hão de usar como alimento num prato rico em sonhos e proteínas de esperança. Vai ao céu porque tens o seu lugar. O homem morre ante a vida que o acolheu, pois carrega o pecado de não saber amar sem mentir. Falava alto consigo mesmo e ele não tinha respostas. Foram longos quilômetros pela estrada vazia, o carro se arrastando, até encontrar uma casa rosada com um letreiro já apagado pelo tempo que estampava: Pousada 31. A placa de metal localizava-se próxima à porta. Uma pousada naquele fim de mundo. Aproveitável e útil, realmente. Mas era dia, manhã, e ele precisava mesmo era de um bom banho e de um café reforçado. Não pensou duas vezes. Estacionou seu Ariane bem em frente à porta de entrada. Desconfiado, caminhou em direção ao balcão, dando passos cautelosos. Havia um cheiro forte de charque frita no recinto. No balcão principal, ninguém. Tocou a pequena campainha de ferro que se encontrava na ponta esquerda da mesa. Por um breve instante pensou ter escutado o som do silêncio. Pouco depois uma sombra se ergueu lá no fundo do estabelecimento. Percebeu que não estava sozinho ali. Nesse ínterim, resolveu passear seus olhos pelas paredes do lugar, repletas de pôsteres e frases pintadas em cores chamativas. Uma, em especial, chamou sua atenção. Era uma carta, já amarelecida, assinada por um desconhecido, grudada no alto por duas tachinhas de metal. Enquanto ouvia passos vindos dos fundos, o homem leu a epístola. Eu compro clichês para dizer "te amo", e sou bem mais feliz assim. Eu que sempre fui o que sempre repudiei, agora logro das benesses de um aprendizado baseado em indeléveis experiências e estúpidas frustrações. Hoje sou mais político, prático das noções do pensar bem e do bem pensar. Alguns livros me substanciaram, e eu sou eles e o mundo que me rodeia juntos. Eu compro clichês para dizer que "te juro", e minha angústia cotidiana é combustível e brasa. Ah, como sou tão maior em minha ilusão diária! Como sou tão mais perto daquilo que sempre manifestei desejo! Como sou tão mais em me saber defeito! A minha criança interna me filosofando, a infância no dorso em pitadas reaparecendo. A maturidade, atividade para especialistas, me operacionalizando gritos de progresso. Ah, quanto orgulho de mim, quanta satisfação em me saber distante daquele outro eu, agora em sono letárgico. Quanta dádiva, meu justo senhor! Quanta glória! E eu comprando clichês para dizer que "o futuro é nosso", dialogando com meus fantasmas estafetas, aqueles, que de um dia para o outro, sem nada avisar, deitaram chão pelo além e me privaram de minha falta de autonomia. Outono de 1988. Era somente dúvida o errante homem. Lembrou dela, seu mais que atual espectro. Não sabe o porquê, mas ela lhe surgiu, novamente, ali mesmo. Agora deveria estar no 312 da Menezes Coimbra, aquele continente criado sem precisar esperar a ação de placas tectônicas, aquele universo mítico-austral onde se renovavam constantemente, lugar de apuros e mergulhos, de beijos e abraços, mágoas e amores. Lembrou dele, ele mesmo, daquele que tinha sido há pouco tempo, daquele que não mais desejava ser. Cerca de um minuto após ter terminado a leitura, escutou passadas bem próximas e a respiração ofegante e desconfortante de uma anciã que vestia uma túnica azul de veludo, adornada por um xale de renda carmim demasiado extravagante. Mais pessoas pareciam se levantar e vir em direção de onde permanecia o homem, aturdido. Que desejas, forasteiro?, de chofre, a velha interrogou. Rápido, virou o rosto. Estava diante, mais uma vez, do não sabido.


* Imagem: https://www.deviantart.com/pstoev/art/stories-from-the-station-12-204327260

Uma presença incômoda



Por Germano Xavier



Hoje, véspera de feriado, beiro a morte. A minha morte. Por onde passei, pessoas denunciaram preocupações, perguntaram-me sobre o meu estado, se eu estava passando por algum problema ou se tinha acontecido algo comigo. Porque, nas vozes e mentes destas pessoas, meu rosto aparentava cansaço, sofreguidão e uma tristeza de rios. Não havia resposta em mim, nem teria como. Creio que morri um pouco hoje. Um pouco de manhã, um pouco de tarde e, finalmente, um pouco de noite. Engraçado, também morro agora enquanto escuto os passos da proprietária deste hotel, um pouco é certo. Morro, mas é um morrer para se viver, um morrer para se prosperar, um findar-se no digno intento de renascer-se. Não tenho mais dúvida, preciso continuar morrendo. É uma questão de sobrevivência, de encontro, de fuga. Necessito da morte para viver. Todavia, enquanto ela não me abraça com o todo de sua envergadura, sigo a viver, em reduzidas linhas, minha morte. Persisto, sempre, a viver do meu ar, do meu sopro, inalando minha existência, absorvendo com a alma minha morte mais vital.




Eu moraria. Eu morar ia, eu amaria e amar iria caso fosse possível atravessar a ponte aquática do destino. Distância atenta ao andar dos passos do coração, vergel cruzado pelo verde de se querer, aleia albina essa toda em torno de transcender o ser. Uma pintura cravada na tela do amor é uma celebração inteira. Nós. Fogos seriam acesos nas madrugadas frias e o júbilo das estrelas encontraria no escuro o abrigo dos brilhos. Eu estaria aberto sobre a fenda dos sentimentos e uma cor de presente o mundo teria na lançada curva da estrada. Eu moraria no mar-céu que é só teu. Eu moraria na dor marítima do teu gemido. Moraria no encontro de tuas marés. Eu moraria. E você estaria sempre no pedestal da calçada mais alta na rua enladeirada mais densa de sabores. Cinzento, o firmamento velho se contorceria em lágrimas e uma chuva de vivas lamberia o ácido de tua pátina amorosa. Bronze, prata e ouro. O amor em lumes em ti. Eu. Raso. Passo alto sem tocar superfície. Saudade é uma verdade doída, menino. Amor nem pensar. Café seco com instinto na manhã decorrida ativa o nada que não suportamos. Eu viajo pensando na esquina onde dobram as pernas. Estar sentado é estar pronto para alguma coisa também que não ou que sim. Raso, insisto. Assim, sem nem. Um universo tão distante. Uma força. Uma forma. Evoco essa prosperidade dos tempos idos em mim. Eu costumava achar diamantes sem me esforçar tanto. Achava-os, empós um mundo em punhado puro. Cascalhada era a minha sina. E hoje? Não é mais fundo, tudo? Jaçados seixos pontificam a trilha de se ir. Para onde, quando nada? Para quando, quando sempre? Refugo. Pareço partida. Vejo diamantes na água que bebo. Me diamanto. A água traz um reflexo. Há alguma coisa nela que adocica. Acendo e incendeio. Há um fogo molhado. Arreio minha cavalgadura e teimo. Teimo.



* Imagem: https://www.deviantart.com/deviousclown/art/Waiting-for-something-180810558

Sem um céu pertencido



Por Germano Xavier



Levantei por volta das seis horas da manhã, tomei dois potes de iogurte e fui continuar a leitura de um livro que ela me deu. É um livro curto, que sou capaz de devorar em uma tarde só. Mas as obrigações que tenho a cumprir nos últimos dias não estão me permitindo uma tarde nem uma noite propícia para uma leitura seguida, sem freios. Nunca mais consegui ler um livro numa sentada só, com fiz com a maioria dos livros do epiléptico da Rua do Ouvidor, do Assis, na mesa da cozinha na casa dos meus pais. Estou lendo de maneira fragmentada, mas ainda compulsiva. Sou doente por livros e quem me conhece parece desconfiar. O livro que estou lendo fala do amor, de um amor diferente e de um amor igual. Sim, uma memória no singular, como toda a história, apesar da ideia velha da pluralidade amorosa. Para mim, idéias não envelhecem. E devem ser reconstruídas, sempre. Como a própria ideia, a ideia do amor também é imortal. Mas o homem sim, o homem morre. Morre de várias mortes. Morre em vida e na própria morte, seja do corpo ou da alma. Mas a ideia do amor não falece, como o amor. Estou lendo calmamente, devagar, como quem degusta um bom vinho tinto. Sentindo o deslizar da personagem sobre as lâminas do sentimento-mor. O homem mata o amor no homem e recobra-o com outro amor, força geradora da vida. O motor que faz a vida, mesmo quando quase impraticável. Mas essa é uma análise romântica e imatura ainda. Preciso terminar de ler o livro para, quem sabe, não me sentir tão decrépito assim... ou não. Dor de cabeça o dia inteiro. Fui à farmácia e comprei uma cartela de um comprimido contra dor. A moça do balcão desconfiou de mim. Senti. Parei a moto na esquina e entrei vestido com um casaco bicolor e uma mochila nas costas. Com a cara barbuda, aparentando uns trinta anos de idade, entrei e pedi os comprimidos. Ela não olhou para mim durante todo o enlace mercantil. Eu olhei para ela e vi como era uma moça atraente perdendo a vida atrás de um balcão. Quanta ironia e quanta metáfora. Uma moça sadia ficando doente atrás de um balcão numa farmácia na esquina. Eu e ela e mais ninguém. “Obrigado”, disse. Ela agradeceu quase sem altura na voz, usando um “de nada” murmurante. Ainda demorei cerca de um minuto e meio entre o avistar a moto novamente na esquina e o ligar o motor. Pensei em voltar e pedir a mão dela em casamento. Ela possuía olhos de mulher boa para se casar, olhos velhos, quase tristes quase frágeis. Mas lembrei que tenho um amor e um amor que é mais que amor. Fui para casa, mas antes paguei a mensalidade do apartamento. Rua A, 500, apto 203. Um lugar até confortável. De frente para o parque recreativo da cidade. Entrei e engoli o comprimido. Minha cabeça pulsava. Escrevi um poema que tinha começado na noite anterior e li alguns contos. Não demorou muito e fui para algum lugar. Foi o dia de ganhar palavras. Um papel. Um papel amigo, de se querer fortalecer laços. A vida tratada com esmero por uma mão que acarinha o tempo. Tempo que não é para marcação de territórios. Eu até entendi. Sim, entendi. Mas disse que eu era daquele jeito mesmo e que não conseguia sorrir a todo o momento. Meu sorriso é difícil, e pesado quando sai de mim. A vida inteira fui tratado como o chato. O avesso à normalidade das ações, das relações. Já estou acostumado com esta parte de mim. Enfadonho, avesso, porém observador. Vivi os melhores dias de minha vida sem precisar expor a ninguém nada e não será agora o momento de mudar de comportamento. A menina do papel, Ela, entende tudo. É uma moça com a cabeça boa. E agradeci a ela como quem agradece um favor bom. E não era favor nenhum. Era amizade. A aula foi péssima, dor de cabeça, latejando. Faltando uma hora para o fim, saí da sala e fui para casa. Atravessei a ponte e minha cabeça dentro do capacete pulsava. Um alívio quando tirei. Entrei, tomei mais um comprimido da cartela de quatro, e deitei. Pensei na vida que eu levava, no nada que sou perante a mecânica capitalista e formatável que é essa vidinha do mundo lá fora. Aí pensei no passado e nos meus amores. Sim, porque amei todas e só amo uma. E não sei por que fiz este exercício. Talvez tenha esquecido alguma ou outra, sem maior relevância. Foi quando esqueci a dor de cabeça. Fiz uma lista, claro, sem citar nomes... O diabo abre a voz quando o dia nem acorda e esnoba um pensamento. Não existe paixão nesta vida, ninguém pode, ninguém deve. Não há possibilidade, não se pode tecer esperanças. Iludido é o homem que crê no amor, ainda que fraco. E as palavras do diabo são flores evasivas, não são flores melíferas. Nenhuma abelha, nenhum pólen. Sem saber o diabo que o mel demoliu a palavra. Acordo cedo, leio, como, bebo. Minha escrita vem depois de tudo, após sentir o clima do dia. Não redijo mediunidades ou lampejos sem céu pertencido, ainda que só tocados de leve. Acredito no tempo da palavra e em tudo o que o diabo se intromete. Não, eu não quero muito. Quero o pouco que me transforma, que me transporta. Quero o céu que é meu, o meu pedaço. E acredito na mão que, sem cerimônias, ama o outro. Ela tem uma amiga quase irmã que defende a teoria do encontro. Para ela, a felicidade é apenas uma mudança. Mudar com calma, mas mudar. Falei que a hora é a maior dor, que o tempo é longe e é tão perto do sofrer do peito. Disse ela que tudo um dia muda e a felicidade sonhada acontece. Aí pensei ser esnobe a ilusão de não crer que a vida é feita do apaixonar-se. E vi que estava certo o velho que passa. Triste é não ir. Por isso eu tenho medo de mim. Tenho medo porque não sei tudo sobre mim. Desconfio que muito de mim ainda não aconteceu, que muito de mim ainda vive dentro de mim, em sono. E cada dia é um novo susto, um novo espanto, um novo ser. Quando penso que tenho já pouco a aprender sobre as pessoas, sobre o mundo, vem alguém mais louco que eu e me diz ineditismos. Quase todo um dia investido em leitura e estudo não me diz nada sobre quem sou realmente. Mas a noite sempre vem clara de ensinamentos. A mulher que amo bebe comigo o líquido azul. E eu sei que aquela voz não é somente uma voz. É alguma coisa acordando em mim. O dia de hoje foi marcado pelo fim de mais uma tentativa. Não que eu esteja triste, pelo contrário, encontro-me muitíssimo feliz, principalmente por haver tentado. Mas é que eu tentei na esperança única de dar certo, de ajudar o outro, com o mesmo sentimento de quem ajuda o mundo a ser mais humano e menos pesado. Por motivos simples, porém conflituosos, a tentativa passou de conquista e confirmação para um esboço e um "quem sabe, num outro momento". Sem mágoas no coração, de nenhum dos lados, a vida segue seu caminho. Do meu lado, continuo o mesmo aspirante a realizador de sonhos que sempre fui. Não obstante, o sol apareceu radioso e vivaz. Parece ser o fim também daquele friozinho que cobria minhas pegadas ultimamente. Mas, do que somos feitos senão de metamorfoses constantes?! Eu mudo, tu mudas, ele muda, ela muda, nós mudamos, vós mudais, eles mudam, elas mudam... E, assim, a vida segue seu caminho. Hoje fui amor total. A tradução disto é um ato impossível. Shopenhauer estava certo quando disse que "todas as traduções são necessariamente imperfeitas". Os homens, nós homens, estão, diariamente, tentando fazer alguma espécie de tradução, sem suspeitar de que estejam apenas correspondendo palavras e idéias, e não unindo os sentimentos na direção da vida em liberdade. Eu fico aqui pensando com os meus botões se é mesmo possível interpretar sensações ou fugir da naturalidade com que elas nos chegam. Não seria melhor abrir o peito duro e permitir a entrada do vendaval da poesia da vida, sem mentir algum discurso inacabado ou manipulado a nós mesmos e por nós mesmos? Eu não sei onde estou, nem onde estive. Amanhã, quem sabe eu me encontre, porque hoje não posso mais... Hoje minha vida só não passou em branco porque tenho longe algum sentimento que não morre. Algo muito longe e muito perto que não sei bem explicar, nem quero. Estou aprendendo que é bem melhor não ficar dando explicações a toda hora. Ela hoje me deu algumas dicas preciosas de como fazer para não se perder mais e mais em si mesmo. No que concerne ao resto do dia, só mesmo uma ponte rotineira, alguns pensamentos na cabeça e muita vontade de seguir escrevendo. Muita vontade mesmo.


* Imagem: https://www.deviantart.com/sudor/art/Instant-44-132076106

Sobre as mínimas gentilezas



Por Germano Xavier



Voltei. As voltas e regressos sempre me doem. Fica uma sensação esquisita de que não devíamos nos permitir, no canto esquerdo de uma salinha sem vida, a oblação de um cântico de luz. Sofre imaginar que toda volta é um recomeço, e que recomeços tendem ao que não vingou, ao que não foi ou ao que não poderia ser. Combato, hoje, minhas obviedades mais satélites, e na procura de um fusível perdido, curto um curto que, se não é de choque, é circuito de se ir. Ainda ontem foi isso, mas sei que não me fui. Perigo é fazer o retorno impossível, o retorno insubstancioso. Melhor caminhar torto pelo caminho vital, quebrando caras e bocas, beijando luzes e lamas, estéticas mancebas. Eu tinha por mim que ontem o relógio do mundo tocou as horas que sempre desejei. E fui ponteiro, bússola de mim, mendigo do tempo, gauche vivedor, e errante. A gente sempre tem a sensação de que na próxima esquina, na padaria da rua, no banco do consultório médico, desponte o algoz voraz, surgindo pelo portão principal, decidido em nos capturar. E para isso retornos servem. Para nos dizer das horas possíveis...


Amundsen

Tua adolescência febril se materializando, e eu lendo teus reflexos pela janela do meu quarto, solitário entre tantos papéis, o teto de estrelas brilhando por sobre a minha cabeça, a imaginação fluindo ventanias, viajando velas por mares tão singulares, levando-me a crer que aquela borboleta que pousou em teu ombro, no bosque da fantasia, por ora passeara ao meu lado, de mãos dadas, pegadas germinando pastos de esperança, vestígios deliberando vontades, a essência contígua e mútua fomentando florações. Conhecer-te um dia, no lar peninsular de minha ilha, fazer-te minha, inteiramente, sem desperdícios... Conhecer-te a ti, para conhecer-me mais, para desvendar-me, posto que sou baú de arcanos. Conhecer-te um dia, apenas. Conhecer-te para o sempre, para o que não se finda, para a não necessidade de outros conheceres, para permanecer perene, até o fim, até a última gestação do amor, até a derradeira fagulha, até a última centelha minha se apagar... e eu cair, debruçado, sobre o mesmo chão que me viu feliz.


* Imagem: https://www.deviantart.com/sudor/art/Nils-Labadie-Photographs-84-208302030

Combustível e brasa



Por Germano Xavier



Chegando em casa

Toda noite isto. Os degraus da escada elevando meu corpo cansado até a porta de ferro. Pintada em amarelo, a porta não existe a esta hora da noite. Logo as chaves possibilitam um encontro com meu corpo, minha alma e meu universo. Lá fora, a impresença das ventanias me sufoca. É nesta hora que começo a tocar tua epiderme, consciente dos fogos e dos fogaréus. Não diria a mais ninguém tua esfera saturnal, posto ínfimas as consequências de bem. Nosso universo cantado em desejos e estratégias de amar. Tua literatura ocular lendo meus abissos, e a reciprocidade em flores e casas de cancelas que escancaram o amor. É quando me deito c'os pardais, c'os canoros pintassilgos de ti em mim, co'as cópulas eólicas de nossos ventos que nos sabem eternos e instantes...


Em Cartago...

Perto daqui, como o Agostinho Santo, buscarei a verdade. Minha verdade é minha própria vida, ninguém me impedirá! A disciplina, poeta, é necessária, como correr o risco de perder a bandeira no alto de sua elevação. Os mastros sempre tendem à queda, perigosamente. Mas, eu sei, minha hora há de chegar, a devida hora para alguma coisa. Hoje, pela manhã, percebi isso na voz daquele que dizia "vai", e me aconteceu. Não sei explicar, aconteceu, assim, vitoriosamente, em louros e silvos de pintassilgos.


Meu filósofo

Eu compro clichês para dizer "te amo", e sou bem mais feliz assim. Eu que sempre fui o que sempre repudiei, agora logro das benesses de um aprendizado baseado em indeléveis experiências e estúpidas frustrações. Hoje sou mais político, prático das noções do pensar bem e do bem pensar. Alguns livros me substanciaram, e eu sou eles e o mundo que me rodeia juntos. Eu compro clichês para dizer que "te juro", e minha angústia cotidiana é combustível e brasa. Ah, como sou tão maior em minha ilusão diária! Como sou tão mais perto daquilo que sempre manifestei desejo! Como sou tão mais eu em me saber defeito! A minha criança interna me filosofando, a infância no dorso em pitadas reaparecendo. A adolescência, atividade para especialistas, operacionalizando-me gritos de progresso. Ah, quanto orgulho de mim, quanta satisfação em me saber distante daquele outro eu, agora em sono letárgico. Quanta dádiva, meu justo senhor! Quanta glória! E eu comprando clichês para dizer que "o futuro é nosso", dialogando com meus fantasmas estafetas, aqueles, que de um dia para o outro, sem nada avisar, deitaram chão pelo além e me privaram de minha falta de autonomia. Eu ainda ando.


* Imagem: https://www.deviantart.com/sudor/art/Instant-1697-183661334

Coisas velhas de hoje



Por Germano Xavier



Normalidade


Um dia normal dentro de minha vida é assim. Estou triste, cabisbaixo e minha impaciência com as coisas é a única razão que me coloca em movimento. No restante de mim, sou somente silêncio. A manhã ingerida à cara de enjôo. Indesejáveis horas. Repentinamente, ocorre-me sempre uma vontade louca de cometer um suicídio. E lembro que, na cidade onde hoje moro, passa um rio bastante caudaloso. O rio é enorme, mas não sei se ele seria capaz de suportar o peso de todas as minhas angústias. Talvez, se desse modo o fizesse, ele também resolvesse morrer ao meu lado. Seríamos simplesmente espetaculares em nossas mortes. Seríamos, para sempre, dissidentes de nossas antigas concepções. Eu, profundamente decepcionado com a realidade. Ele, o rio, uma criatura feita com as lágrimas do povo, e com as minhas. Assim, abriria os braços no ponto mais alto da ponte e, feito uma ave de rapina, voaria meus últimos instantes de aflição e de desejo insano. Depois, mergulharia no véu negro da morte, acreditando ter ido ao encontro da liberdade do meu espírito misterioso. Todavia, todo este afã cessa sempre e acabo dentro de uma sala de aula abafada, com inúmeros adjetivos sentados em apenas um substantivo. A cabeça começa a doer. O sangue parece se movimentar em meu organismo. Pego de uma caneta e de uma folha de papel, mas as veias latejam, surrupiando todas as palavras que eram minhas de origem. Sinto-me fraco e desprotegido. O sol começa a se esconder por trás do horizonte. A lua, ainda quase invisível, expressa seus primeiros gestos iluminatórios. Por final, a noite. Por final, o sono... e a profunda e silenciosa certeza de que amanhã será mais um dia dentro da minha tangida normalidade.



Olhos novatos


Hoje eu tive um sonho. É noite e uma mulher me espia de uma mínima senda da janela de sua casa. Acabei de me mudar e é conflituante essa sensação de me sentir um estranho. Vejo que todos lançam olhares de curiosidade sobre mim. Sinto-me indefeso, sem saber como atacar. Nessas horas, é inteligente um pouco de paciência. Um revide impensado e prematuro traria consequências jamais quistas. O melhor que posso fazer é esperar. É o fim do meu sonho. A espera.



Reencontro


Sexta-feira, 16. Uma agonia. Ontem revi um dos meus vários fantasmas da infância. Por isso, hoje, por onde estive andei encabulado, numa espécie de assustamento que tomou conta de todos os meus passos. O teto branco do apartamento onde moro deixou de ser o simples teto branco do apartamento onde moro, transformou-se no teto antigo, forrado em madeira, da antiga casa onde nasci, recheado de imagens que eu perscrutava noturnamente, silenciosamente, diariamente. Um teto de lembranças esquisitas, morada de algumas entidades que me fizeram companhia por um longo tempo, antes de começar a perder, paulatinamente, a minha potencial essência para o fantástico, natural quando se observa o levantar dos anos.

Sexta-feira, 16. Uma noite singular, por excelência. Tive a nítida impressão de que eu me fui novamente, como há muito... Eu a me levantar, suado, com uma adaga de prata em minha mão direita, na esquerda um escudo de bronze, olhar rijo, direcionado ao vago, aquele mesmo caçador, aquele mesmo guerreiro, menino, em busca de aventuras estranhas, que só ele vivia, procurando encontrar a sua sombra, o seu outro, o seu desconhecido, ele mesmo, sempre.


* Imagem: https://www.deviantart.com/sudor/art/Rue-Desaix-131971066

A velha mesa de todos os dias



Por Germano Xavier



Sylvia, por quê?

Eu sabia ler tuas aflições, não era como o Ted. Eu te respeitava. Eu te amava, mas tu preferistes a sublimação. Adorava quando tu me confessavas o todo dos teus dias, sempre infames. Teu Ariel quase pronto, deixado na cabeceira de tua cama em Londres, matar-me-ia anos depois. Teu vago aposento não era vago, Sylvia, era turba. Não me perdestes, nem eu a ti. Estou contigo, nestes nossos tons confessionais, isentando-te de qualquer culpa. Onde quer que estejas, estarei ao teu lado, lendo-te em devaneios e surfando-te em instituições nefelibatas. Naquele 11 de fevereiro de 1963 eu te amei como ninguém poderia.

Um beijo, Sylvia, do teu amante eterno.



Um bilhete para dizer adeus


Eu deixo estas palavras sobre a cama porque ainda estou com você. Apesar de nossas brigas, quase sempre tão tolas, ainda não posso. Lembra de fechar o registro da água quando for sair. A pia está vazando e a prestação do sofá já chegou. O dinheiro está em teu porta-jóias. Eu vou indo porque preciso. Jamais me esquecerei de você. Mas a memória é também o esquecer-se, e eu devo. Amei você quando pude.

Desculpa, não posso mais.
Teu.



Um último dia


Eu não sabia que ontem era meu último dia. Talvez eu jamais desconfiasse de tal acontecimento. Um último dia é sempre algo tão longe, tão dissoluto. O derradeiro dia é tão... tão... infinito. Distante! E também impalpável, sem medidas. Mas, então, o que me faz escrever senão a existência de um fim, de uma presente imagem do que se acaba? Por que não deixar um último registro de mim, para que um derradeiro olhar atinja meu universo, mesmo que seja apenas a forma de minha arcada dentária num pão dormido, ali mesmo, sobre a velha mesa de todos os dias?


* Imagem: https://www.deviantart.com/janek-sedlar/art/Secret-path-through-valley-of-upside-down-carrots-411772114

Mot just



Por Germano Xavier


um texto escrito em 2008.



A luta que luto com meu corpo bem parece com a luta que luto com a minha cabeça. Parte alta de mim, gaturamo, quase um contraponto em melodia inacabada, minha cabeça é corolário, dedução coberta por uma pele lustrosa, minha crônica e meu humor e meu grande livro. E luto infinito. Um corpo-a-corpo que já não mais, ou nunca, preocupa-se com as consequências e exigências estéticas impostas pelo mundinho de já-agora-apodrecido-pela-beleza-forçada. Sempre foi de caráter secundário a publicação dos meus resultados. Para que serve um registro sobre o nada? Sim, todo mundo um dia quer provar alguma coisa a alguém. Ou quer provar alguém para alguma coisa.

E resultados sempre existem. Positivos ou não, eles sempre aparecem. Mas o que pode ser positivo? O que pode ser negativo? De quando nasci, luto com minha cabeça teimosa, manceba e também arredia. E não é diferente hoje nem será amanhã. A sensação que tenho é que a guerra que travo com este apêndice aéreo que sustento com a força de meu pescoço não termina nem terminará, pelo menos por tão cedo. Luto de suar a testa. É minha cabeça dizendo uma coisa, meu corpo pedindo outra. Mas nem sempre. E assim vai. Assim, vamos. Para onde é que nenhum dos dois sabe, ou saberá. Seguimos, e só. Somente e só, seguimos.

Hoje foi dia de receber sinais mais ou menos do tipo olá-você-está-vivo-parabéns. Um bom dia para mais um embate, mais um round. Saber até que ponto estar vivo é positivo ou negativo, eis a questão. Mas para que serve também uma dúvida? Você saberia me responder? Não queria eu a suposta melhora de vida encontrando a morte veloz numa esquina dissolvida em anelos libidinosos e fatais? Sou eu mesmo este ser que, em seus “claros?” anos de idade, ainda troca entornos de peripécias por um saudável equilíbrio relacional? E quem sou eu? Quem? Eu morro igual na idade nova. Morro. Vou escrever um poema de um fim. Talvez eu deva. Acabou aqui. Acabará? Acabamos? Somos acabáveis?

Minha vida é minha e minha morte é minha. Acabou aqui. Eu me faço. Eu me acabo. Deixo a álgebra e os cálculos em paz. A matemática de minha vida tem sido dura comigo em alguns sentidos. Em outros, consideravelmente mais dispensáveis, leve e acolhedora. Não desejei fazer conta de palavras. A poesia pesa menos que o ar. A poesia pesa mais que o ar. Mas não sabemos. Deixo tudo nas mãos do tempo que passa mudando tudo. Vi que preciso repetir isso mais vezes. Tentar explicar ou pedir explicação pode causar incômodo ou mudar a rotina dos ventos. Eu tinha ouvido conselho sobre isso. E como sabem, mudar também pode ser bom, mas nem sempre. Firmar teu pé no chão de alguma coisa e ir ao profundo daquilo é um sinal de força. Radicalismos à parte, ir às funduras das coisas é sempre mais gostoso.

Já perdi muito tempo nesta vida tentando comentar meus crimes mais perfeitos. Hoje sou outro. Ou aparento. Ainda repleto de falhas e fraquezas, mas outro. Para que servirá eu medir a onda do rio? E a tinta da mão? Ou a finura dos biscoitos? Melhor deixar o rio transbordar de qualquer coisa, sempre. E viver melhor do jeito que se sabe. Nunca me apeguei aos números, e não será agora que irei render-me a eles. Prefiro mil vezes a poesia torta de meus dedos. Ah, e como prefiro... Existem pessoas que salvam um dia que tende ao desastre.

Minha vida "bonita" não daria nem um livro policial “noir” de quinta categoria, daqueles em que nada acontece na trama que nos deixe perplexos ou assustados ou ansiosos pelo final. Eu só vivi para o gasto até hoje, fiz apenas o que pude, conheci a carne de algumas mulheres e poucas me arranharam a pele. Alguma, ou uma. Nada muito. Vida que está. Mas, como eu disse, existem certos tipos de pessoas que nos puxam o corpo, bem na hora do pêndulo que fulmina o balanço da derradeira hora, e nos estende o braço dizendo eu-estou-aqui-contigo-não-vá.

Dia marcado pela imprestabilidade das ações e pelos votos esperançosos de que o dia de amanhã seja menos criminoso comigo. "Você está chovendo hoje", ouvi até isso. Eu perguntei o que aquilo significava e fiquei sabendo que era coisa boa. Sim, talvez, poderia até ser, mas a água que jorra em mim é mais uma água salgada que doce. Não consigo parar com toda esta angústia, toda esta sensação de que o tempo apenas vai, passa e não espera. Que faço diante de tudo isso? A chuva em mim não é torrencial, é uma chuva passageira.

Ela apareceu depois de um fim de semana de sumiço. Apareceu e me trouxe novidades. Pensei que ela, não a chuva, ela, pensei que ia dizer que tinha acertado quinze números na loteria e tinha ficado milionária e que ia comprar uma casa na Toscana e que ia me levar com ela. Mas não foi nada disso e foi algo melhor. É que eu estou ficando conhecido. E como diria o Autran Dourado, reconhecimento bom é aquele que a gente sente nas outras pessoas, sem forçar a barra. Posso escrever dois contos e três poemas. Leio a terceira parte do livro do Gabo e Delgadina está amando o velho e eu posso ser mesmo um escritor. Ela acaba de fazer quinze anos de idade, o mesmo número dos possíveis números da loteria. O velho tem noventa e um anos. Faça a conta. Noventa e um menos quinze é uma vida de anos.

Mas sou daqueles que não acreditam na idade do amor. O amor é o próprio tempo e, como todos sabem, o tempo engole tudo. Dois meninos que quase não pude ver direito de tão miúdos, pretos, um nu e um com um saco branco escondendo suas vergonhas ainda não vergonhas, agachados, do tamanho da calçada em maior relevo, juntos, comendo alguma coisa de resto de festa juntos a uma pequena poça de água parada, os dois ali, pequenos cachorrinhos e a imagem da extravagância humana em contraste, o gozo pós-prazer feito do coto dos que podem e da reaplicação pelos que não podem.

Eu tinha visto o "bicho" de Bandeira, ou melhor, os bichos, e desperdicei a chance de registrar aquilo para o mundo. De qualquer forma, a imagem está guardada em mim e me faz pensar em algumas coisas. Não consegui continuar o passeio e segui para casa. Pessoas matam pessoas, eis uma afirmação. Tudo certo, tudo errado. Confesso a você que me matou ontem que sou este ser quase desprezível e imprestável perante o belo e dinâmico e funcional mundo atual. Lagarta que sou, o voo me parece apenas um longínquo desejo.

Acordo e vou aos lugares e você que me matou ontem sabe bem os lugares que visito. Quando iniciei um projeto de vida com você que me matou ontem, quis mostrar a você que sou um ser desprezível ou quase-nada perante o belo e dinâmico e funcional mundo atual. Engraçado como o pensamento toma ares de verdade e consegue alcançar patamares de altura tão elevados. Sem esperar, tinha já eu confabulado preâmbulos também atabalhoados e, por vezes, modulares diante da sua mágica figura que me matou ontem.

No meu inventário, marquei com um xis a palavra qualquer. Uma palavra que parece ser mais forte que o próprio amor. Mas você me matou ontem e você também sabe que seres desprezíveis ou quase-isso não morrem assim do nada, sem razão menor para que sejam. Esquece-se que sou uma fênix e que minhas flamas não se avulsam assim. Digo a você que me matou ontem que, caso queira matar-me de verdade, basta algumas palavras e te desejarei um belo resto de vida. Corpo morto.


* Imagem: https://www.deviantart.com/oo-rein-oo/art/Some-Dance-To-Forget-409834519

sábado, 6 de outubro de 2018

O Brasil, a neurose política e o mal-estar na civilização



Por Germano Xavier



FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


Até onde ou quando poderá a espécie humana, dentro da esfera de sua própria evolução cultural, controlar as mais diversificadas perturbações trazidas à vida pelos instintos humanos de agressão e autodestruição? Esta é a pergunta que Sigmund Freud (1856-1939) nos deixa ao final do seu ensaio O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO, publicado originalmente em 1930, em Viena. Pergunta esta que teima em embalar o sono e o sonho (por que não dizer?) de muitos brasileiros nos nossos dias atuais.

Em tempos de intolerância política, de ódio escancarado, de preconceitos mil, de dualismos aflorados, de bolsonaros e corruptíveis, o pendor à agressão é hoje a arma nada-branca mais utilizada tanto nas discussões em redes sociais quanto em debates na/da vida real. O agressor, o opressor verbal ou atitudinal, por estar a provar algo ou a desmentir um feito considerado por ele falso/fake  e que vai de encontro aos seus "tão bem fundados" preceitos, parece estar sempre em defesa de algo justificável ou justo, mesmo que o outro acabe sofrendo algum tipo de consequência. Freud (2011, pg. 57-58), no ensaio supracitado, vai dizer que a existência dessa paixão pela agressão “é o fator que perturba nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios. Devido a essa hostilidade primária entre os homens, a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração”.

Parece não haver mais a possibilidade do errar ou, muito menos, do perdoar. As verdades parecem únicas e invioláveis, até mesmo indestrutíveis. A humanidade parece estar em regresso capital, voltando a um tempo em que a ideia absoluta prevalece sobre a razão e sobre a racionalidade. O cenário político nacional tem sido a prova cabal para essas afirmações. A barbárie fora instalada até onde menos se esperava. O indivíduo é ele e só, e de nada importa o escutar e o refletir conjuntamente com e para o outro. A visão do outro é sempre a lógica impura ou logo é alterada e distorcida, mesmo que à força. O interesse comum não mantém nada nem ninguém. “Paixões movidas por instintos são mais fortes que interesses ditados pela razão” (FREUD, 2011, pg. 58).

Recorre-se a tudo, então, para colocar limites ao instinto do Homem. E aí o problema começa a ganhar tamanho desproporcional. O vandalismo é retomado em todas as suas acepções de sentido. Práticas abusivas, desrespeitos éticos e julgamentos sem embasamento viram cartas marcadas sobre a mesa das negações e das negociações. É quando o não começa a vencer o sim, de goleada e com ajuda da arbitragem (leia-se Poder Judiciário & Adjacências). Toda uma base racional pende para um lado e o equilíbrio torna-se algo muito raro de se ver e, principalmente, de se praticar. Um verdadeiro deus nos acuda ou um salve-se quem puder.

Para Freud (2011, pg. 41), “boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais exigências individuais e aquelas do grupo, culturais; é um dos problemas que concernem ao seu próprio destino, a questão de se este equilíbrio é alcançável mediante uma determinada configuração cultural ou se o conflito é insolúvel”. O grande pai da psicanálise não retira do caminho a influência do gosto pessoal, do eu e nem do desejo por liberdade que são coisas vivas no Homem, mesmo colocando a liberdade individual em outra caixinha, por exemplo, que não a dos bens culturais.

O modo como vem sendo reguladas as relações humanas no Brasil, e também no mundo, as relações sociais e políticas em si, talvez seja a grande engrenagem gripada dentre todo o maquinário funcional da vida em coletividade dos dias presentes. Hoje, para algo se legitimar, uma maioria precisa se esforçar para engolir o que é indivíduo. Parece ser preciso se opor a toda forma de individualidade para que uma ideia ou uma prática termine por vingar ou para que entre em movimento. Mas todo e qualquer esboço de coletividade não é também um punhado de indivíduos, de diferentes?

Quais paliativos usaremos daqui para frente, do nosso presente para o nosso futuro, para que suportemos as dores, as decepções, as ânsias e as angústias do viver? Será mesmo necessário buscar, sempre que possível, a alternativa mais rápida e mais fácil? Vamos mesmo nos inebriar com altas doses de desumanidade e de desapreço ao próximo? Sabemos que num mesmo espaço não há condições favoráveis para a existência de duas matérias, porém deixar que haja infiltração de substâncias de reflexão no todo desse Corpo é tarefa quase obrigatória. Ou então seguiremos caminhando para os lados contrários, para o acabamento burro do pensamento e que, por fim, nos levará para uma eterna conservação do que é de ordem primária, esquecendo, destarte, que somos seres perfeitamente desenvolvíveis, melhoráveis, aperfeiçoáveis.


* Imagem: http://jornalfatosenoticias.com.br/pt-br/publicacoes/voce-sabe-o-que-e-neuroseij/