domingo, 14 de outubro de 2018

Sem um céu pertencido



Por Germano Xavier



Levantei por volta das seis horas da manhã, tomei dois potes de iogurte e fui continuar a leitura de um livro que ela me deu. É um livro curto, que sou capaz de devorar em uma tarde só. Mas as obrigações que tenho a cumprir nos últimos dias não estão me permitindo uma tarde nem uma noite propícia para uma leitura seguida, sem freios. Nunca mais consegui ler um livro numa sentada só, com fiz com a maioria dos livros do epiléptico da Rua do Ouvidor, do Assis, na mesa da cozinha na casa dos meus pais. Estou lendo de maneira fragmentada, mas ainda compulsiva. Sou doente por livros e quem me conhece parece desconfiar. O livro que estou lendo fala do amor, de um amor diferente e de um amor igual. Sim, uma memória no singular, como toda a história, apesar da ideia velha da pluralidade amorosa. Para mim, idéias não envelhecem. E devem ser reconstruídas, sempre. Como a própria ideia, a ideia do amor também é imortal. Mas o homem sim, o homem morre. Morre de várias mortes. Morre em vida e na própria morte, seja do corpo ou da alma. Mas a ideia do amor não falece, como o amor. Estou lendo calmamente, devagar, como quem degusta um bom vinho tinto. Sentindo o deslizar da personagem sobre as lâminas do sentimento-mor. O homem mata o amor no homem e recobra-o com outro amor, força geradora da vida. O motor que faz a vida, mesmo quando quase impraticável. Mas essa é uma análise romântica e imatura ainda. Preciso terminar de ler o livro para, quem sabe, não me sentir tão decrépito assim... ou não. Dor de cabeça o dia inteiro. Fui à farmácia e comprei uma cartela de um comprimido contra dor. A moça do balcão desconfiou de mim. Senti. Parei a moto na esquina e entrei vestido com um casaco bicolor e uma mochila nas costas. Com a cara barbuda, aparentando uns trinta anos de idade, entrei e pedi os comprimidos. Ela não olhou para mim durante todo o enlace mercantil. Eu olhei para ela e vi como era uma moça atraente perdendo a vida atrás de um balcão. Quanta ironia e quanta metáfora. Uma moça sadia ficando doente atrás de um balcão numa farmácia na esquina. Eu e ela e mais ninguém. “Obrigado”, disse. Ela agradeceu quase sem altura na voz, usando um “de nada” murmurante. Ainda demorei cerca de um minuto e meio entre o avistar a moto novamente na esquina e o ligar o motor. Pensei em voltar e pedir a mão dela em casamento. Ela possuía olhos de mulher boa para se casar, olhos velhos, quase tristes quase frágeis. Mas lembrei que tenho um amor e um amor que é mais que amor. Fui para casa, mas antes paguei a mensalidade do apartamento. Rua A, 500, apto 203. Um lugar até confortável. De frente para o parque recreativo da cidade. Entrei e engoli o comprimido. Minha cabeça pulsava. Escrevi um poema que tinha começado na noite anterior e li alguns contos. Não demorou muito e fui para algum lugar. Foi o dia de ganhar palavras. Um papel. Um papel amigo, de se querer fortalecer laços. A vida tratada com esmero por uma mão que acarinha o tempo. Tempo que não é para marcação de territórios. Eu até entendi. Sim, entendi. Mas disse que eu era daquele jeito mesmo e que não conseguia sorrir a todo o momento. Meu sorriso é difícil, e pesado quando sai de mim. A vida inteira fui tratado como o chato. O avesso à normalidade das ações, das relações. Já estou acostumado com esta parte de mim. Enfadonho, avesso, porém observador. Vivi os melhores dias de minha vida sem precisar expor a ninguém nada e não será agora o momento de mudar de comportamento. A menina do papel, Ela, entende tudo. É uma moça com a cabeça boa. E agradeci a ela como quem agradece um favor bom. E não era favor nenhum. Era amizade. A aula foi péssima, dor de cabeça, latejando. Faltando uma hora para o fim, saí da sala e fui para casa. Atravessei a ponte e minha cabeça dentro do capacete pulsava. Um alívio quando tirei. Entrei, tomei mais um comprimido da cartela de quatro, e deitei. Pensei na vida que eu levava, no nada que sou perante a mecânica capitalista e formatável que é essa vidinha do mundo lá fora. Aí pensei no passado e nos meus amores. Sim, porque amei todas e só amo uma. E não sei por que fiz este exercício. Talvez tenha esquecido alguma ou outra, sem maior relevância. Foi quando esqueci a dor de cabeça. Fiz uma lista, claro, sem citar nomes... O diabo abre a voz quando o dia nem acorda e esnoba um pensamento. Não existe paixão nesta vida, ninguém pode, ninguém deve. Não há possibilidade, não se pode tecer esperanças. Iludido é o homem que crê no amor, ainda que fraco. E as palavras do diabo são flores evasivas, não são flores melíferas. Nenhuma abelha, nenhum pólen. Sem saber o diabo que o mel demoliu a palavra. Acordo cedo, leio, como, bebo. Minha escrita vem depois de tudo, após sentir o clima do dia. Não redijo mediunidades ou lampejos sem céu pertencido, ainda que só tocados de leve. Acredito no tempo da palavra e em tudo o que o diabo se intromete. Não, eu não quero muito. Quero o pouco que me transforma, que me transporta. Quero o céu que é meu, o meu pedaço. E acredito na mão que, sem cerimônias, ama o outro. Ela tem uma amiga quase irmã que defende a teoria do encontro. Para ela, a felicidade é apenas uma mudança. Mudar com calma, mas mudar. Falei que a hora é a maior dor, que o tempo é longe e é tão perto do sofrer do peito. Disse ela que tudo um dia muda e a felicidade sonhada acontece. Aí pensei ser esnobe a ilusão de não crer que a vida é feita do apaixonar-se. E vi que estava certo o velho que passa. Triste é não ir. Por isso eu tenho medo de mim. Tenho medo porque não sei tudo sobre mim. Desconfio que muito de mim ainda não aconteceu, que muito de mim ainda vive dentro de mim, em sono. E cada dia é um novo susto, um novo espanto, um novo ser. Quando penso que tenho já pouco a aprender sobre as pessoas, sobre o mundo, vem alguém mais louco que eu e me diz ineditismos. Quase todo um dia investido em leitura e estudo não me diz nada sobre quem sou realmente. Mas a noite sempre vem clara de ensinamentos. A mulher que amo bebe comigo o líquido azul. E eu sei que aquela voz não é somente uma voz. É alguma coisa acordando em mim. O dia de hoje foi marcado pelo fim de mais uma tentativa. Não que eu esteja triste, pelo contrário, encontro-me muitíssimo feliz, principalmente por haver tentado. Mas é que eu tentei na esperança única de dar certo, de ajudar o outro, com o mesmo sentimento de quem ajuda o mundo a ser mais humano e menos pesado. Por motivos simples, porém conflituosos, a tentativa passou de conquista e confirmação para um esboço e um "quem sabe, num outro momento". Sem mágoas no coração, de nenhum dos lados, a vida segue seu caminho. Do meu lado, continuo o mesmo aspirante a realizador de sonhos que sempre fui. Não obstante, o sol apareceu radioso e vivaz. Parece ser o fim também daquele friozinho que cobria minhas pegadas ultimamente. Mas, do que somos feitos senão de metamorfoses constantes?! Eu mudo, tu mudas, ele muda, ela muda, nós mudamos, vós mudais, eles mudam, elas mudam... E, assim, a vida segue seu caminho. Hoje fui amor total. A tradução disto é um ato impossível. Shopenhauer estava certo quando disse que "todas as traduções são necessariamente imperfeitas". Os homens, nós homens, estão, diariamente, tentando fazer alguma espécie de tradução, sem suspeitar de que estejam apenas correspondendo palavras e idéias, e não unindo os sentimentos na direção da vida em liberdade. Eu fico aqui pensando com os meus botões se é mesmo possível interpretar sensações ou fugir da naturalidade com que elas nos chegam. Não seria melhor abrir o peito duro e permitir a entrada do vendaval da poesia da vida, sem mentir algum discurso inacabado ou manipulado a nós mesmos e por nós mesmos? Eu não sei onde estou, nem onde estive. Amanhã, quem sabe eu me encontre, porque hoje não posso mais... Hoje minha vida só não passou em branco porque tenho longe algum sentimento que não morre. Algo muito longe e muito perto que não sei bem explicar, nem quero. Estou aprendendo que é bem melhor não ficar dando explicações a toda hora. Ela hoje me deu algumas dicas preciosas de como fazer para não se perder mais e mais em si mesmo. No que concerne ao resto do dia, só mesmo uma ponte rotineira, alguns pensamentos na cabeça e muita vontade de seguir escrevendo. Muita vontade mesmo.


* Imagem: https://www.deviantart.com/sudor/art/Instant-44-132076106

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