segunda-feira, 15 de outubro de 2018

São centauros meus cavalos (Parte II)



Por Germano Xavier



Havia quatro tonalidades de azul no céu da cidade, mas eram azulidões frágeis propensas à volatilidade das ordens do mundo. Certamente se esgotariam e deixariam de ser azuis no absoluto negrume da noite. Talvez tudo entrasse em ruínas numa determinada fase do dia. Nada de tão especial se não fosse, aquele, o céu da cidade de um homem possuidor de uma vida. Cidades foram feitas para matar os homens, pensei, com uma branca impressão de que algum escritor teria imortalizado a frase que eu tinha acabado de construir. Talvez um poeta, daqueles tristes, malditos... hei de me lembrar um dia. Na verdade, aquela cidade não era a minha de origem. Por dentro, sabia que nenhum homem pode possuir a sua cidade. Cidades são como mães, que nos parem e que são desgraçadamente abandonadas pelos filhos, muitas vezes antes de se tornarem adultos. Afonso sentiu que estava em falta. É quase um costume saber-se rendido a todas estas manhãs e tardes ordinárias, a todas estas ocasiões especulativas, a todos estes comentários cegos. Decerto, ele estava em falta. Sim, em espera eterna, mutilado, de músculos quase flácidos, rosto ardido numa palidez indecisa, caído numa cama gritantemente nojenta de um pernoite barato ali no centro, virando sofregamente as páginas de um livro do Puig. Depois de alguns cochilos, signo das horas escuras, resolvi fazer um último ajuste no despertador. De chofre, a figura de Helia sobrevoou meus pensamentos. Dera-me o aparelhinho barulhento no mesmo dia em que falei a ela sobre a minha decisão, neste comenos já totalmente concretizada. Ele iria partir, mais cedo ou mais tarde, mas ele iria partir. A imagem daquela mulher ainda era muito viva em sua memória, mesmo depois de tantos meses separados. Talvez abraçasse os dias com a ternura do seu colo ou tivesse o busto da Nefertite ou fosse ela a entidade própria. Um abuso de efeitos femininos, com raízes de mulher que cortavam os solos mais impenetráveis. Helia gerava vãos enormes que lhe serviam de abrigo aos seus mais escuros vazios. Tinha ela lhe cortado com a faca que havia naqueles seus olhos, tinha ela ferido o homem com as armas do desconhecido que carregamos dentro de nossas carnes. Ele a habitava, peremptoriamente, dia ante dia, resoluto, em permanente frenesi e enlevo. Aqueles lábios rubros e candentes, como tremelicariam diante do susto noticioso! Não importa o que você esteja fazendo ou para onde você esteja indo, eu quero a sua felicidade, eu quero o seu bem! Você é um desgraçado, você me desgraçou, mas eu me preocupo com a sua vida! Saiba que sentirei a sua falta, como jamais me acontecera. Um pássaro, agora, sem asas, um pássaro de longos cabelos maviosos, de uma mistura de cores fortes, balouçantes, um pássaro de mãos melindrosas, extremamente macias, finas e de uma alvura definida, um pássaro de sonhos esgotados? Seria essa a Helia de agora?, já interrompida pela possibilidade de perder-me de vista?, pensou Afonso, num ataque cambaleante que misturava ódio e resignação. Ah, eu não seria tão fundamental assim, sussurrei. Eu não seria tão fundamental assim!, repetiu o homem, exclamando em bons decibéis para o lusco-fusco que dominava aquele aposento sinistro. O despertador marcava uma hora da madrugada e tudo era apenas lembrança, um passado que ele já queria esquecer.


* Imagem: https://www.deviantart.com/ar-ka/art/In-between-lines-143132646

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