segunda-feira, 15 de outubro de 2018

São centauros meus cavalos (Parte III)



Por Germano Xavier



Helia quis falar de amor quando, do quintal da casa, atirou em minha direção o que sobrou de uma velha antena parabólica. Já estava melhor, agora desbravando o local onde eu estava. Falar de amor, para ela, era falar de tudo o tanto e mais, feição das horas. O que acabava tinha de ser amor, mas poderia ser chamado de avental, ou de cabide. Talvez o nome de um país. Inglaterra, quiçá! Helia era amante, e falava sempre no total das vestes do sentimento. A parabólica não passava de um mito. A captação dos sinais era feita por um receptor interno potentíssimo. As mensagens tanto chegavam como se despediam. A calha era sempre nova. Helia quis falar de amor até na vez em que fez dos longos canudinhos de alumínio da antena parabólica a letal arma contra a estupidez. Ela seria assim, brinquedo de se quebrar. A maquininha da boneca de plástico, o motorzinho de dentro a pulsar o sangue que havia. O coração de Helia batia no giro da pá do cata-vento. Batia girando, girava de teteia. Era sempre uma carinha de alegre o semblante daquela mulher. Ela amava, assim, como o vento ama a caminhada longa e sem barreiras. Amava sem pressa, sem cor o amor de Helia, sem cera, sincera. Amar era a palavra de Helia. Amar era o verbo de Helia. Amar fazia de Helia a mulher mais bela, porque era ela o amor. O amor era Helia, era sua palavra e o seu verbo, seu verbo materializado, vivo no papel, esperando longe a ânsia de ser. Foi Helia quem descobriu que para amar basta dobrar o fio da tomada e amarrar com o aramezinho o saco de pão, que o amor é volátil como o álcool que ela trouxe do supermercado para ajudar na feitura das unhas, que para amar é preciso desligar a televisão e deixar a caixinha de fósforo do lado esquerdo do fogão, para acender na véspera do vendaval. Helia amava abrindo potes e lavando os pratos, em exercício de cozinha. O tempero do amor era o caldo do feijão verde, com cebolas tostadas, alho e um pouco de sal. O amor corado, borbulhando a incerteza das horas e o próprio estado de efemeridade que é amar... Helia pegava as facas e ia cortando as carnes, esquartejando-as. O osso ficava para os cachorros que porventura... Todo o resto não combina com o amor. Amar é cortar, lâmina afiada de aparar fagulhas. Depois, Helia era máquina de moer, pois amar é moer, é pisar na carne, amassá-la, apertá-la, comê-la. Porque Helia era mulher de pular do telhado, sem medo de cair de rosto no chão e sangrar o sangue das enfermarias... Era uma boa desgraça ela, se assim eu pudesse afirmar. Suas asas, podadas, e o seu resto?, que fosse angústia aquele findar de vivências, mesmo assim, aturdido o relacionar-se, ele alquebrado, fragmentado, em pedaços, em miúdos. Mesmo assim. Estas coisas, estes fantasmas! Era o fim. Helia não era nada daquilo. Não há o que fazer, Helia. Ele rememorava. A casa no centro, o ar abafado do quarto, a lembrança ainda viva de que era ali, naquele cômodo, janela cerrada numa eternidade de medos, o local de nidificar, em excessos, demasiados amores. A casa com dois quartos, parte da parede em verde fraco, a janela para a noite escancarada quase sempre, aquela imensidão de sentimentos, de angústias e de dores. A lembrança dirigida à casa que havia sido o galpão de toda aquela fervura de corpos, o estábulo para tantos óleos humanos brotados da pele como uma erva que nasce, desenfreada, e interfere nas sequências horárias de um tempo muito maior. A lembrança de pé, saltitando sobre a testa. A memória de Helia, Mnemosyne, como diriam os gregos, mãe das musas. Fora ela, Helia, o despertar para algo que lhe traria dor, sinônimo para um caos fabricado, o passado penetrante a ferir esperanças. Não há o que fazer!, exclamei em urros. A coitada, olhando-se no espelho ínfimo do porta-batom de branco couro sintético, pensava sozinha. Primeiro que eu não existo com você. Existir sempre me foi um troço difícil. Não quero me complicar. Ainda mais nestes tempos tão civilizatórios, civilizantes. Dividem tudo, julgam tudo, mataram Deus, nem podemos mais transcender, nós não somos nada. O dia hoje está tão bonito, sei lá, deixa. Acordei cedo e me deu uma vontade de andar por um bosque que nem sei. Pus um livro na mochila. Vou ler quando chegar em algum lugar mais calmo. Minha tristeza viajou para longe. Foi tratar de negócios importantes, talvez. Morar longe dos centros de nós mesmos, talvez aí esteja o segredo para fugir do sofrimento. Dizem que é lá no bosque bonito que também fica o inferno. O inferno nos olha todo o dia, fica na espreita. Ele é terno - e tisne não? – e nos acompanha. Hoje eu optei por conhecer o inferno, não outra coisa. Quero-o porque ele me quer. Venha de onde vier, com a máscara que preferir, mas tem de ser ele. Quero ser derrubado. É a minha doença e talvez o meu último dia aqui neste lugar. O mundo é o meu lugar. Ou não é. Sou um terminal. Tenho a doença do meu pai e a doença do meu irmão e a doença do meu tio e a doença do chofer e a doença da ama e a da prisioneira e a doença da minha mãe... Eu tenciono algo e me acho responsável. Segura esta qualquer arma com o punho forte de você fêmea e me atire uma morte rápida se preferir. Que me paralise e me invalide, que me perturbe as vistas, ou que me torne nervoso e histérico, depressivo e suicida. Meu caso está registrado no amanhã e no hoje que é o agora. Vou me submeter ao tratamento dos desregrados. Por vida, sempre sofri e não estou aguentando mais. Você, que pode até sorrir um dia, irá relatar meus traumas e vai ver como sua infância foi tão nobre e silenciosa. A cura está no bosque e o bosque é sombrio. Lá, coisas desaparecem, homens se perdem, gritos são ouvidos, lamentos e lamúrias se expandem pelo ar. E quando eu cair por terra quem vai me amparar? Sou romântico e vou morrer. Sinto que posso levar algo, penso. Poderei levar a verdade? O que realmente importa daqui? Há alguma coisa que realmente sirva, que sentirei falta quando estiver morto? O teu sorriso? E o amor? Ninguém precisa do amor? Talvez já seja noite e eu estou te falando, falando, estou apenas falando, estamos sós, com quem estou falando? Quem é este que me cerca agora? Quem é este ser que me atormenta na quase-morte? Chega de saudade, chega de pouca ciência, chega de pouca miséria. Eu espero pela desgraça plena. Apague o café, seu fogo. Feche a torneira. Encoste sua cabeça aqui. Saia daí e venha. Vem, meu bem, e me diz obrigado. Que o inferno é tão lindo, lá vou ler um poema. Você vai ficar e vou te bater na cabeça. Vou beber teu sangue, vou matar teu filho que ainda não nasceu, serei tua e você poderá voltar. Repousa aqui, estira estas pernas e vem, amor, vem que é hora, não se iluda mais, o céu só é um novo assassino. Faremos alguma pornografia, celebraremos o nojo, como quiseres, mas venha. Um banho nessa vida de festim! Corre para cá, encontro-te, e me traz, por favor, o teu medo do demônio. Helia dizendo, quase vomitando. O quarto se transformara em uma ilha, incrustada na memória ancestral dos dois, escrita nos recônditos logradouros da consciência. Um mero quarto no centro da cidade, avenida Menezes Coimbra, 312. Um quarto peninsular, ligado ao humano apenas pelo fio da incerteza e do mistério. Tola, Helia! Tola!, insisti abertamente a me autoflagelar em constantes ataques verborrágicos que, no fundo, de nada adiantavam. Deixou cair a mão esquerda na altura de um dos bolsos frontais da calça jeans, puxou um cigarro. A chama curta do isqueiro, logo a baforada inaugural perfumaria os arredores. Helia pensava, não pode ser, todo esse tempo de entrega, de devoção, de uma quase submissão total àquele canalha, e agora... E agora o sumiço, a repentina saída, estratégica?, do homem que por ela fora amado sem economias. Não suspeitava que a dor estivesse tão próxima do gozo. Não era cabível ter de conviver com a ausência, com o vago, justo ela, Helia, vinte e sete anos de espera, mulher pronta, sonhos maternais, já experiente na arte da bordadura, dois ou três conjuntos de peças infantis na estante, esperando, pois tinha de ser dele, possuir o rosto dele, a carne grossa dos lábios dele, que tanto sugou seu néctar amante. Já ele conduzia-se ao desconcerto, ajeitando sua envergadura de anjo - ou de demônio? -, para tentar voos mais distantes. Rumava para a mesma Auto-Estrada do Sul do conto de Cortázar. Ou não. Era uma tentativa, sim, e ele devia ser o camponês do Ariane, especulando sigilosamente sobre o simplório mistério de saber para onde estaria se dirigindo, flutuando deliberadamente por sobre seus delírios, solto e preso, em sandices. Minha Alétheia!, exclamava. Sua verdade, seu destino. Tão quisto era assim como o esquecimento mais puro.


* Imagem: https://www.deviantart.com/kpavlis/art/Waiting-140246784

Nenhum comentário: