domingo, 14 de outubro de 2018

Mot just



Por Germano Xavier


um texto escrito em 2008.



A luta que luto com meu corpo bem parece com a luta que luto com a minha cabeça. Parte alta de mim, gaturamo, quase um contraponto em melodia inacabada, minha cabeça é corolário, dedução coberta por uma pele lustrosa, minha crônica e meu humor e meu grande livro. E luto infinito. Um corpo-a-corpo que já não mais, ou nunca, preocupa-se com as consequências e exigências estéticas impostas pelo mundinho de já-agora-apodrecido-pela-beleza-forçada. Sempre foi de caráter secundário a publicação dos meus resultados. Para que serve um registro sobre o nada? Sim, todo mundo um dia quer provar alguma coisa a alguém. Ou quer provar alguém para alguma coisa.

E resultados sempre existem. Positivos ou não, eles sempre aparecem. Mas o que pode ser positivo? O que pode ser negativo? De quando nasci, luto com minha cabeça teimosa, manceba e também arredia. E não é diferente hoje nem será amanhã. A sensação que tenho é que a guerra que travo com este apêndice aéreo que sustento com a força de meu pescoço não termina nem terminará, pelo menos por tão cedo. Luto de suar a testa. É minha cabeça dizendo uma coisa, meu corpo pedindo outra. Mas nem sempre. E assim vai. Assim, vamos. Para onde é que nenhum dos dois sabe, ou saberá. Seguimos, e só. Somente e só, seguimos.

Hoje foi dia de receber sinais mais ou menos do tipo olá-você-está-vivo-parabéns. Um bom dia para mais um embate, mais um round. Saber até que ponto estar vivo é positivo ou negativo, eis a questão. Mas para que serve também uma dúvida? Você saberia me responder? Não queria eu a suposta melhora de vida encontrando a morte veloz numa esquina dissolvida em anelos libidinosos e fatais? Sou eu mesmo este ser que, em seus “claros?” anos de idade, ainda troca entornos de peripécias por um saudável equilíbrio relacional? E quem sou eu? Quem? Eu morro igual na idade nova. Morro. Vou escrever um poema de um fim. Talvez eu deva. Acabou aqui. Acabará? Acabamos? Somos acabáveis?

Minha vida é minha e minha morte é minha. Acabou aqui. Eu me faço. Eu me acabo. Deixo a álgebra e os cálculos em paz. A matemática de minha vida tem sido dura comigo em alguns sentidos. Em outros, consideravelmente mais dispensáveis, leve e acolhedora. Não desejei fazer conta de palavras. A poesia pesa menos que o ar. A poesia pesa mais que o ar. Mas não sabemos. Deixo tudo nas mãos do tempo que passa mudando tudo. Vi que preciso repetir isso mais vezes. Tentar explicar ou pedir explicação pode causar incômodo ou mudar a rotina dos ventos. Eu tinha ouvido conselho sobre isso. E como sabem, mudar também pode ser bom, mas nem sempre. Firmar teu pé no chão de alguma coisa e ir ao profundo daquilo é um sinal de força. Radicalismos à parte, ir às funduras das coisas é sempre mais gostoso.

Já perdi muito tempo nesta vida tentando comentar meus crimes mais perfeitos. Hoje sou outro. Ou aparento. Ainda repleto de falhas e fraquezas, mas outro. Para que servirá eu medir a onda do rio? E a tinta da mão? Ou a finura dos biscoitos? Melhor deixar o rio transbordar de qualquer coisa, sempre. E viver melhor do jeito que se sabe. Nunca me apeguei aos números, e não será agora que irei render-me a eles. Prefiro mil vezes a poesia torta de meus dedos. Ah, e como prefiro... Existem pessoas que salvam um dia que tende ao desastre.

Minha vida "bonita" não daria nem um livro policial “noir” de quinta categoria, daqueles em que nada acontece na trama que nos deixe perplexos ou assustados ou ansiosos pelo final. Eu só vivi para o gasto até hoje, fiz apenas o que pude, conheci a carne de algumas mulheres e poucas me arranharam a pele. Alguma, ou uma. Nada muito. Vida que está. Mas, como eu disse, existem certos tipos de pessoas que nos puxam o corpo, bem na hora do pêndulo que fulmina o balanço da derradeira hora, e nos estende o braço dizendo eu-estou-aqui-contigo-não-vá.

Dia marcado pela imprestabilidade das ações e pelos votos esperançosos de que o dia de amanhã seja menos criminoso comigo. "Você está chovendo hoje", ouvi até isso. Eu perguntei o que aquilo significava e fiquei sabendo que era coisa boa. Sim, talvez, poderia até ser, mas a água que jorra em mim é mais uma água salgada que doce. Não consigo parar com toda esta angústia, toda esta sensação de que o tempo apenas vai, passa e não espera. Que faço diante de tudo isso? A chuva em mim não é torrencial, é uma chuva passageira.

Ela apareceu depois de um fim de semana de sumiço. Apareceu e me trouxe novidades. Pensei que ela, não a chuva, ela, pensei que ia dizer que tinha acertado quinze números na loteria e tinha ficado milionária e que ia comprar uma casa na Toscana e que ia me levar com ela. Mas não foi nada disso e foi algo melhor. É que eu estou ficando conhecido. E como diria o Autran Dourado, reconhecimento bom é aquele que a gente sente nas outras pessoas, sem forçar a barra. Posso escrever dois contos e três poemas. Leio a terceira parte do livro do Gabo e Delgadina está amando o velho e eu posso ser mesmo um escritor. Ela acaba de fazer quinze anos de idade, o mesmo número dos possíveis números da loteria. O velho tem noventa e um anos. Faça a conta. Noventa e um menos quinze é uma vida de anos.

Mas sou daqueles que não acreditam na idade do amor. O amor é o próprio tempo e, como todos sabem, o tempo engole tudo. Dois meninos que quase não pude ver direito de tão miúdos, pretos, um nu e um com um saco branco escondendo suas vergonhas ainda não vergonhas, agachados, do tamanho da calçada em maior relevo, juntos, comendo alguma coisa de resto de festa juntos a uma pequena poça de água parada, os dois ali, pequenos cachorrinhos e a imagem da extravagância humana em contraste, o gozo pós-prazer feito do coto dos que podem e da reaplicação pelos que não podem.

Eu tinha visto o "bicho" de Bandeira, ou melhor, os bichos, e desperdicei a chance de registrar aquilo para o mundo. De qualquer forma, a imagem está guardada em mim e me faz pensar em algumas coisas. Não consegui continuar o passeio e segui para casa. Pessoas matam pessoas, eis uma afirmação. Tudo certo, tudo errado. Confesso a você que me matou ontem que sou este ser quase desprezível e imprestável perante o belo e dinâmico e funcional mundo atual. Lagarta que sou, o voo me parece apenas um longínquo desejo.

Acordo e vou aos lugares e você que me matou ontem sabe bem os lugares que visito. Quando iniciei um projeto de vida com você que me matou ontem, quis mostrar a você que sou um ser desprezível ou quase-nada perante o belo e dinâmico e funcional mundo atual. Engraçado como o pensamento toma ares de verdade e consegue alcançar patamares de altura tão elevados. Sem esperar, tinha já eu confabulado preâmbulos também atabalhoados e, por vezes, modulares diante da sua mágica figura que me matou ontem.

No meu inventário, marquei com um xis a palavra qualquer. Uma palavra que parece ser mais forte que o próprio amor. Mas você me matou ontem e você também sabe que seres desprezíveis ou quase-isso não morrem assim do nada, sem razão menor para que sejam. Esquece-se que sou uma fênix e que minhas flamas não se avulsam assim. Digo a você que me matou ontem que, caso queira matar-me de verdade, basta algumas palavras e te desejarei um belo resto de vida. Corpo morto.


* Imagem: https://www.deviantart.com/oo-rein-oo/art/Some-Dance-To-Forget-409834519

Nenhum comentário: