segunda-feira, 23 de março de 2020

Pensando o inconsciente humano




Por Germano Xavier



O texto O inconsciente maquínico – ensaios de esquisoanálise, de Félix Guattari, inicia-se deslocando os posicionamentos construídos pelos psicólogos ou psicanalistas para um patamar ou plano de menor relevância, alegando que as máquinas abstratas do inconsciente humano percorrem um trajeto onde não há choques com os chamados “estádios”, pois além de não serem processos automáticos, estão desligadas dos reagenciamentos dos modos de codificação e de semiotização do inconsciente.

Para Guattari, a criança não é um complexo individualizado, mas sim uma totalidade em construção intensa, onde outros componentes semióticos “exteriores” podem acelerar, inibir ou redirecionar os efeitos dos componentes biológicos, sócio-econômicos e materiais que a atravessam. As interações com o campo social são muito mais presentes do que se imaginava. A família, a escola, as leis, e tudo mais que rege o comportamento humano, são os fatores primordiais para o sufocamento das mudanças biológicas que se processam no adolescente.

A criança é já uma série de máquinas abstratas, não nela inscrita, mas que a atravessa, e quando dentro de alguma outra máquina abstrata, sofre uma mudança radical na ordem de suas manifestações internas inatas, deixando de lado a espontânea prosperidade e florescimento de seus gestos para se adaptar à expressões adultas e “maquinadas” de um modelo existente. Toda essa adaptação funciona como uma arma repressora e coibitiva, aniquilando qualquer forma vigente de desejo original, e cristalizando índices maquínicos dentro de uma nova máquina abstrata.

A repressão não procura submergir completamente a criança, mas se inserir nas forças que envolvem a formação dos significados. O conjunto repressivo não age sobre o conjunto das máquinas desejosas, porém antes, por meio de máquinas abstratas, vai do socius ao indivíduo. As máquinas do poder dominante só podem ser eficientes quando se prendem à zonas bio-psico-sociais.

Enquanto que os índices, os sintomas, podem a todo momento se espalhar e permitir que se instale o retorno poderoso das antigas estratificações, as máquinas abstratas continuarão ameaçando-as com uma possível transformação revolucionária. As máquinas abstratas inconscientes podem materializar sua própria dissociação voltando ao processo primário dos índices maquínicos, a adaptação normal ou neurótica às realidades dominantes e à potencialidade de uma diagramatização desestratificante. O inconsciente só existe após a sua manifestação nas estruturas semióticas ou nas estratificações sociais ou materiais.

Guattari amplia o pretendido período de latência descrito pelos freudianos à esfera das passagens de um agenciamento para outro, marcado pelas repressões sociais. A máquina do ensino tem por fim primordial transformar as coordenadas semióticas da criança. O período de latência é, neste contexto, um fabricar pessoas que dura quinze anos, e objetiva submeter os indivíduos até o mais íntimo de suas fibras nervosas aos sistemas de produção capitalista.


sábado, 21 de março de 2020

Tio Didi




Por Germano Xavier


Dava uma certa apreensão quando a gente resolvia que no fim do ano iríamos passar alguns bons dias em Pernambuco, especialmente no Pernambuco do meu pai, o Pernambuco atravessado pelo castigado Rio Una, revendo parentes, tios e primos, refazendo todas aquelas aventuras infantojuvenis e que, porventura, ainda cabia a nós dar uma continuação. E uma das coisas que sempre passava pela minha cabeça antes mesmo de partirmos para São Bento do Una era saber se o sítio de Tio Didi estaria tão bonito quanto no ano anterior. 

Era um lugar de espírito quase mítico, úmido e seco ao mesmo tempo, verde e cinza, com cheiro próprio, de uma atmosfera particular que acabava por contrastar com todo o seu derredor. De um lado, via-se alguns galpões onde ele criava galináceos em grandes proporções para posterior venda (a região é uma das maiores produtoras de frango e derivados do país), uma casa simples ao centro e do outro lado da propriedade uma lagoa, com vistas para a rodovia e seus carros das décadas de oitenta e noventa zunindo e se perdendo na primeira curva, que era quase em sempre multipovoada de marrecos coloridos, onde pássaros e garças pousavam seus voos mais deslumbrantes aos finais das tardes.

Tio Didi era um grandalhão, pra lá dos 1,90m de altura, matuto dos bons, contador de histórias engraçadas, típico homem guerreiro de um Brasil profundo que precisou batalhar pelo pão abençoado de todos os dias com suas unhas e seus dentes. Sem grandes estudos formais, foi um grande mestre na arte de lidar com as coisas da natureza. Os tempos eram outros, as preocupações com os direitos dos animais também, gostava de caçadas na companhia de irmãos e amigos. Todavia, apesar de saber tudo isso hoje, os animais gostavam dele. Lembro de seus vira-latas obedientes a todo tipo de necessidade, de seu papagaio falastrão e de um sofrê (corrupião) que vez ou outra saía do alpendre, voava sua vida de pássaro livremente e voltava para dentro da casa do meu tio como se sentisse saudade daquele homenzarrão. Percebia sua dedicação em dar comida aos cães, aos marrecos, a preocupação com a água da lagoa. Enfim, era um homem integrado ao seu quintal - e que belo quintal!

Mas a vida é muito estúpida, às vezes. E triste foi perceber, aos poucos, o declínio do meu tio, aquela sua vida inteira entrelaçada em problemas conjugais e também com o álcool em forma de bebida. Aquele gigante se rendendo aos poucos às doenças do corpo, aos males da alma, o sítio sendo repassado para os outros e ele logo se encostando à morada do irmão mais próximo, irmão mais velho, meu tio Abdoral, ali do outro lado do asfalto onde a vida parecia ter a mesma densidade de pedra e a peleja diária era a mesma. Gado pouco, granjas que não ofertavam mais nenhum futuro, tentativas e mais tentativas. Muito rapidamente a lagoa se transformou num imenso buraco seco de piso rachado. Veio a secura de anos sem chuva. Veio o outro dono do lugar. Foram-se as garças, os marrecos, os cães. Ficou a desolação em meus olhos adolescentes. Ficou muito mais coisa em mim do que parece. Ficou tanta coisa.

Mas lembrar é uma forma de vencer. A vida. A lembrança é o lugar onde guardamos aqueles que nos marcaram. E quando algo ou alguém nos marca, este algo ou este alguém jamais morre. Fica. Como se na forma de adubo, a ajudar na caminhada da eterna semente perene que somos. Até o fim. Pois no fim há o Tempo. O Tempo coloca tudo em perspectiva. Até a dor. O Tempo voa. E também não passa. É uma gaiola. Como a gaiola do concriz do meu tio Didi. A gente abre e fecha ela, sempre, mas no fim voltamos para nossas casas. E depois de muitas experiências, de idas e vindas, a gente aprende que tudo muda. Então, o inferno de hoje será diferente amanhã. Mesmo que seja outro inferno, outra dor. Mas será diferente. Isso dá um certo conforto.

Ontem liguei para o meu pai. A notícia ainda era recente. A voz do meu pai estava embargada. Tentei escapar do assunto algumas vezes, para não alimentar o instante. Nossas raízes estão indo. E não tem outro jeito. A gente acaba lembrando de tudo que pode lembrar, de tudo que dá. Lembrar é tão importante quanto escrever. Para mim, sinto que as coisas acontecem quando escritas. Para avançar, é preciso escrever. Para finalizar. Para ser. É preciso escrever. Escrevo o que é muito real para mim. Muito vivo. Minha escrita/literatura me movimenta. É bonito ver. Sentir. Por isso estas palavras em memória deste irmão do meu pai, em memória do meu tio Didi, que não morreu. Mas que ficou. Em algum lugar. Dentro. Bem dentro. Um lugar ainda sem nome em mim, onde ponho tudo aquilo que me ajudou a chegar aqui, a ser até aqui. A estar aqui. 

Tio Didi, muito obrigado. Muito obrigado.


* Imagem: Acervo Germano Xavier

domingo, 15 de março de 2020

Corona



Por Germano Xavier


não sendo a de espinhos
| pois esta já carregamos | pode
ser até que me adorne os breus


P.S. Mais um vírus está aí. Cuidemo-nos.


sexta-feira, 6 de março de 2020

Entrevista com Stenio Erson, autor de CERCO




Estrevista para o Blog O EQUADOR DAS COISAS
LIVRO: CERCO, de Stenio Erson.


Germano Xavier – O que a literatura significa para você?

Stenio Erson – A literatura significa uma possibilidade que o ser humano encontrou para poetizar a vida real. É uma manifestação artística que utiliza-se das diversas possibilidades que a comunicação, através da linguagem e criatividade, permite. Nesse sentido, a literatura é um instrumento de liberdade e expressividade, capaz de despertar sentimentos diversos e transformações infinitas.

GX – Em sua jornada como leitor e professor ligado à difusão da literatura, qual a experiência de leitura que mais te marcou? E por quê?

SE – Sempre busquei em minha trajetória enquanto professor, criar estratégias de apreciação e disseminação da arte literária. Nesse processo, o trabalho que mais me marcou foi a ação que desenvolvi com a obra “Felicidade não tem cor” de Júlio Emílio Braz. O enredo traz a questão do preconceito e aborda a história de Fael, narrada por uma boneca de pano chamada Maria Mariô. Ambos se sentem muito incomodados por serem negros. Por um lado, nenhuma das meninas escolhia a boneca negra para brincar. Por outro, Fael era um menino muito excluído que sofria muito preconceito por conta dos apelidos que seus colegas colocavam nele. Por isso, decidiu ir atrás de Michael Jakson para descobrir como ele conseguiu ficar branco.

No início do ano letivo, observei que na sala de aula do 7° ano, havia muitas ocorrências de preconceito entre eles, muitos alunos sofrendo bullying por meio de apelidos racistas. Isso me incomodou bastante, pois os alunos não percebiam o quanto a sala era composta por uma diversidade étnica.

Durante a leitura da obra ocorreu muitos debates relevantes, sempre relacionando com o que acontecia na sala de aula. No dia da culminância do projeto os alunos fizeram uma análise completa da obra para os presentes apontando a depreciação que os apelidos causam, a relevância de respeitar a diversidade existente na sociedade. Nos estandes um painel com as fotos individuais de cada alunos, de modo a se observar a diversidade e valorizar cada característica, além de fotos de negros que ficaram famosos por habilidades artísticas ou esportivas.

Enfim, após essa ação observei o quanto as pessoas que convivem na escola e que possuem características negras, passaram a valorizar sua identidade étnica, principalmente em relação ao uso de penteados que potencializam as características do povo negro. Passou a ocorrer uma aceitação natural do outro, não só em sala de aula, mas também na relação com alunos de outras turmas.

Essa ação mostrou a potência que a literatura tem de promover a reflexão e a transformação.

GX – Como surgiu a ideia para o seu livro de estreia CERCO e como está sendo a receptividade da obra?

SE – A ideia de elaboração da obra Cerco surgiu a partir dessa real necessidade que a sociedade atual tem de conquistar um território de atuação da nossa liberdade. Vivemos numa sociedade que a cada dia reduz a liberdade que temos e nos conduz para o nosso cerco, seja ele social, emocional, afetivo, psicológico, moral, violência física, dentre outros.

Após as eleições de 2018, com a aceitação e a implantação das ideias bolsonarianas no cenário social brasileiro, o autoritarismo e as decisões autocráticas, passaram a serem utilizadas em muitos setores que antes tinha uma relação democrática habitual. Tal ocorrência contribuiu para o crescimento de uma tentativa de negar ou tentar descaracterizar as lutas de segmentos sociais que em algum momento da história tiveram que se mobilizar e articular estratégias para desarticular o cerco anunciado.

Essa instabilidade social, demonstrou que a luta contra o nosso cerco deve ser diária e que precisamos enfrentar esses elementos que ameaçam nossa liberdade. Sinalizou que a conquista de território só ocorre com movimento, seja ele feminista, étnico, de gênero, enfim.

Então, com base nesse conceito, procurei adequar alguns contos antigos para essa temática e a produzir contos novos para compor a coletânea da obra, de modo que se pudesse apresentar os personagens e sua relação com os elementos de opressão e desarticulação da nossa liberdade.

GX – Fale-nos um pouco sobre o seu processo de criação, Stenio.

SE – Iniciei meu processo de escrita no teatro. No ano de 2003 fui um dos fundadores do Grupo Cultural Lamparinas do Sertão, em atividade até hoje. Nessa instituição cultural, além de atuar e dirigir espetáculos, escrevi inúmeros enredos teatrais. Esses momentos de formação artística me qualificou para ler e analisar obras literárias significativas, bem como adaptar e produzir enredos teatrais, adequando-os a uma identidade sertaneja e uma linguagem teatral peculiar.

Esse contato com a arte teatral, foi extremamente significativo para o meu processo de criação literária, pois passei a prestar muita atenção nos movimentos que ocorrem em minha volta e também nas narrativas orais que tenho acesso através de memórias vivas que me levam a realizar pesquisas.

Muitos desses elementos: uma frase, uma palavra, uma expressão, uma imagem, uma história; sinalizam caminhos para a construção de enredos literários; ora totalmente fictícios; ora com pitadas de um caráter memorial; ora baseados em fatos reais, mas com traços fortes de ficção.

Geralmente, primeiro registro a ideia, depois organizo a ideia para uma proposta de construção de uma malha literária, em seguida desenvolvo a ideia, deixo-a por um tempo sem voltar ao que foi produzido, por fim, releio e vejo se a proposta será original e relevante para, só após prosseguir com a proposta literária ou engavetá-la.

GX – Seu livro CERCO possui um caráter memorial muito forte, quase predominante, e que se estende a toda estética social que envolve o território da Chapada Diamantina e seu povo. Foi um traço proposital? Como se deu isso em CERCO?

SE – A Chapada Diamantina sempre foi narrada por olhares externos de mídias diversas que valorizam, predominantemente, as belezas naturais. Ficava sempre questionando o porquê de tantas narrativas ricas ficarem ocultadas ou silenciadas na memórias desse povo, sempre desconsiderado nesse cenário. Nesse processo, acredito que de forma predominante, prevaleceu na obra Cerco, o perfil de narrativas narradas por personagens originários da Chapada que apresentam com o olhar peculiar, o nosso o cenário, a nossa identidade cultural, as nossas histórias. Ou seja, o olhar nosso sobre o que é nosso, uma visão peculiar sobre a identidade cultural da Chapada que vai além do que as belas paisagens. A ideia foi dá voz aos oprimidos, de modo que eles pudessem apresentar seu olhar sobre essa luta diária de enfrentar tudo que reduz nosso território e viabiliza o nosso cerco, diante desse cenário que não é somente feito de paisagens, mas também de pessoas.

GX – Como você vê, hoje, o cenário literário e artístico da Chapada Diamantina?

SE – Acredito que o cenário de produções literárias na Chapada Diamantina ainda se apresenta de forma um tanto tímida, porém em ascensão. Alguns eventos literários têm acontecido de forma muito consistente, abrindo possibilidades para que escritores da região possam disseminar suas produções literárias. No entanto, acredito que ainda falta uma conscientização das secretarias de educação de cidades da Chapada Diamantina para incentivar o consumo dessas obras no âmbito educacional, de modo que a literatura regional possa se estabelecer e contribuir para a formação de leitores e novos escritores.

GX – Achei o conto “Nunca mais vi Irene”, presente em CERCO, de uma plasticidade arrebatadora. É um conto bem curto, um tanto diferente dos outros do livro. Fale-nos um pouco acerca dele.

SE – A ideia da construção da malha literária do conto “Nunca mais vi Irene” sempre havia sido de uma narrativa curta. Essa proposta, viabilizou o uso de frases reduzidas, dinâmicas, capazes de produzir movimentos que conduzem o leitor a um desfecho surpreendente. A ideia surgiu a partir de um suicídio que ocorreu no cenário da Cachoeira da Fumaça. Esse fato, teve repercussão e muitas mídias começaram a tentar denegrir, desconstruir, condenar o cenário como perigoso e um ambiente para não se visitar. Diante disso, procurei dá um novo rumo a esse fato a partir do fazer literário, um ar de misticismo misturado com sonho, de modo a valorizar tanto a cena narrada quanto o cenário. Não se sabe a verdadeira intenção de Irene ao levar seu amor para o deslumbrante cenário da Cachoeira da Fumaça, se vivenciar um momento romântico num lugar encantador ou registrar seu desaparecimento misterioso justamente no clímax do enredo, deixando o leitor diante da labuta de tentar compreender se o desfecho é algo real, místico ou apenas um sonho.

GX – Stenio, vem novidade por aí? Se sim, compartilhe com os leitores d’O Equador das Coisas”? Deixe suas considerações finais aqui, se possível.

SE – Sim. A obra que talvez esteja mais pronta para lançamento é uma peça teatral que narra o retorno nos dias atuais, por conta de uma crise hídrica, dos primeiros portugueses que navegaram o Velho Chico no ano de 1501. Nesse processo, os portugueses irão se deparar não só com elementos da modernidade, mas também com elementos que caracterizam as comunidades ribeirinhas e a identidade sertaneja do rio São Francisco. O espetáculo foi apresentado como forma de experimento, pela primeira vez, na UNEB Campus XXIII em Seabra, no dia 17 de abril de 2015 no evento “Fifó Cênico: Iluminando a Arte Sertaneja” por atores do Grupo Cultural Lamparinas do Sertão, com direção minha. A proposta é que esse espetáculo seja retomado nesse ano de 2020.

Além dessa proposta, tenho trabalhado bastante em um romance, novos contos e poesias, além de livros infantis.


* Imagem: Arquivo Stenio Erson

domingo, 1 de março de 2020

Os manejos em assanho de Orobó (Parte V)



Por Germano Xavier


reza a lenda que duas montanhas se erguiam 
na parte norte do corpo de uma mulher
eram dois vulcões a ativar o redemoinho do mundo



A ordem era: atacar o cume, chegar ao fim.
Mas antes, na amurada das horas,
apegar-se às duas montanhas da carne.

Casas do leite maternal, pousos para o cansaço
das mentes: o grande algodão das tuas mamas.

Ikan fez-se feto. Muhatu permitiu a sucção vital.
Era, pois, o alimento mais vivaz de toda a sua lida.

Ali, entregue à maciez da pele, Ikan era Muhatu.
E toda a temperatura foi sendo um redemoinho.

E a Terra se lançou em mais encontros. E o Sol cumpriu
o seu duro dever: anunciar a passagem do Tempo.