sábado, 22 de maio de 2010

O cinismo do sol


Por Germano Xavier

Onde estão as algemas? Preciso prender o Tempo! Devo armar uma tocaia, eu sei. E pegá-lo por trás, sem que ele perceba. Mas, onde estão as algemas? Não sei onde as deixei. Estou perdido. O frio é insuportável! É noite... Pequenos insetos voadores circundam os vidros translúcidos das luminárias dos becos da cidade que dorme a morte diária. Muitos fantasmas me espiam. Eles desejam o medo... querem que eu sinta medo... Bravo sou! Mas, onde estão as alg...

Que frio intragável! A escuridão noturna é a ironia do sol. O sol é mesmo um cínico, um partidário da rutilante desfaçatez. Sinto o vento gélido que vem dobrando as esquinas vazias, sem almas. Frio... Preciso amarrar o Tempo! Vou construir armadilhas para pegá-lo desprevenido. Espalharei ardis por toda a cidade. Isto me custará um tempo. As copas das árvores balançam numa dança macabra, elas parecem sinalizar alguma coisa.

O frio é cada vez maior. As algemas! Procurei por todos os lugares e nada. Estou perdido. Não conseguirei o que quero. As velhas casas parecem tão vivas. Mas, e o Tempo!? Meu Deus, onde estarão as algemas? Minha cabeça, onde estará?

Antes em forma de brisa, os ventos agora resolveram se agigantar. Eles sopram forte. O cenário é de esquisito. Sinto frio... Meu corpo treme. Sinto-me fraco, cansado. Vou descansar um pouco. Encosto numa parede e recolho algumas armadilhas para perto de mim. Folhas são sinfonias que escuto. Minha visão é confusa. Acho que vejo alguém se aproximando. Uma sombra. Um vulto. E cada vez mais perto. A sensação de frio é desumana. Tento um velho agasalho, não adianta. Meu Deus, será Ele? Algo de feições muito estranhas está vindo em minha direção. Beiro a cegueira. Por Deus, as algemas! Onde estarão as algemas? Até quando este suplício? A sombra... A sombra que desaparece. Não vejo nada. Tudo é silêncio e noite. Indesejável frio! Preciso prender o Tempo! Mas...

Saí em disparada. Os loucos...

O sol se lança. Um novo dia atravessa o caminho dos meus olhos. E eu que preciso prender o Tempo! Eu que preciso! Ainda o frio. Sento na calçada. As antigas formas se reconfiguram. Daqui, pacientemente, espero o Tempo passar...

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Solto no tempo


Por Germano Xavier

o amor volta desesgotado
como num céu só azul
tomado pelo branco fundo
e como refúgio sem pragas
um pássaro negro voa.

aceita o convite do vago
e enche o vão,
bota em baque a explosão
presa no disparo.

pooowww!
quem cairá será homem?
ninguém regressa de uma morte
mesmo sem queda.

quem ama impele a deixa
e deixa
o passado solto no tempo.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Uma conversa, uma espreita


Por Germano Xavier

XIV

"É, se Deus quiser tudo vai melhorar!"

"Ah, não sei não. Eu duvido! Do jeito que as coisas vão..."

"A gente precisa pensar positivo, acreditar no ser humano e nunca desistir de lutar por nossos objetivos. E também nunca deixar de ter fé, porque sem fé tudo desanda."

Li isso em um destes livros de auto-ajuda, onde se ensinam as melhores formas de ser feliz, como se a vida tivesse uma cartilha.

"Sei não, eu sou meio cética em relação a esses pensamentos. Para mim, a vida é dura mesmo. Isso é baboseira editorial, só para vender livros."

"Não é bem assim, como você pensa. Estes livros de auto-ajuda sempre estão certos. Se a gente seguisse as 'receitas' que existem neles, o povo certamente encontraria a felicidade, a alegria de viver, a harmonia e até saberia a maneira mais fácil de arranjar dinheiro, porque você sabe, hoje em dia quem não tem a bufunfa se dá mal na vida, muito mal..."

"Eles ensinam a ganhar dinheiro, é?"

"Eu até já consegui comprar um aparelho celular para cada um dos meus filhos! Um televisor de plasma para ver os jogos da Copa, um aparelho de dvd para o meu caçula - ele adora aqueles musicais da Xuxa -, um microsystem de 6000 watts de potência de última geração, uma lavadora de 8 quilos igual a da propaganda, uma mesa de jantar giratória do tamanho daquela que foi utilizada no último reality-show da Globo, um relógio que projeta as horas na parede do meu quarto e outro que mostra até as horas no Japão, um casaco de pele italiano, um colar de ouro 24 quilates, um apartamento naquele condomínio de classe alta que saiu no jornal, dois conversíveis, vinte câmeras embutidas, dezoito seguranças particulares, cinco babás de descendência européia e muito mais. Tudo porque segui à risca os meus livros de auto-ajuda."

"Amiga, como a sua vida mudou!"

"É, graças ao meu bom Deus, a minha vida mudou completamente."

"E como vai a família?"

"Estão todos bem. O Eduardo está estudando na Inglaterra, a Ana Maria é dona de uma rede de supermercados em São Paulo e o meu caçula está seguindo os passos do pai."

"Ah, e o teu marido, mulher! Como vai o Adamastor?"

"Ele está bem, mas muito atarefado. Depois que abriu a Igreja da Universalidade Cristã do Amor do Bom Deus Sagrado do Quinto Dia, ele quase não tem mais tempo para vir aqui. Sabe como é, aquela igreja é a nossa fonte de vida. Tudo que temos hoje devemos a ela. Aleluia, Senhor! Aleluia!"

(...)

Ai, como dói a minha cabeça! Até parece que levei uma martelada ou coisa parecida. É a civilização, meus caros! É esta podre civilização! O que é isso? Quem são vocês? O que estão fazendo, seus impostores? Eu preciso urgentemente da minha puçanga! Onde estão meus comprimidos, onde estão? Não fujam de mim! Eu não sou louco! Eu não sou louco! Eu sou apenas um sonhador que acredita em "Mundos". Onde os meus "pássaros coloridos"? Onde a corda, eu preciso afastar meus olhos desta visão perturbadora! Vocês sabem o que fazer. Eu confio em vocês! É que eu preciso descansar um pouco. A liberdade está aí, como eu já disse, na fumaça dos seus cigarros. Eu sei de tudo que te fere! Eu sei!