sábado, 9 de julho de 2011

Goya (uma análise)


Por Germano Xavier

Breve histórico:

Acima está a tela nomeada de “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808” e é de autoria do pintor espanhol Francisco de Goya, mais comumente conhecido por Goya. A obra data de 1814, é feita a óleo e mede 266x345cm em sua versão original. Atualmente, a pintura encontra-se no Museu do Prado, em Madri.

Goya nasceu no povoado de Fuendetodos, no ano de 1746, nas localidades de Saragoza, Espanha. Faleceu em 1828, na França, seu último reduto, abrigo de solidão e exílio voluntário, haja vista que era um profundo desgostoso dos modos de governar de D. Fernando VII, déspota assumido. Mesmo cego, Goya assumiu o papel de primaz pintor da corte de seu país.

A tela “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808” é considerada a prima obra do artista espanhol.


Análise:

Partirei do princípio de que a pintura é imagem como qualquer outro tipo de registro imagético, como uma fotografia, um anúncio, um panfleto, entre tantos outros modelos. Por também fazer uso da linguagem não-verbal, a qual se caracteriza pelo desprezo diante da palavra propriamente dita, a tela “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, classificada como pertencente ao período romântico, justo por estar inserida dentro desse contexto social e cultural que percorre boa extensão dos séculos XVIII e XIX, permite a conceituação e compreensão dos estratagemas básicos utilizados pelo artista no todo processual e construtivo de seu desejado discurso visual.

Imbricados, os elementos da tela de Goya possibilitam a fomentação de uma teia de enunciações que, por serem de amplidão infinita e agir como cadeia flutuante de significações, tanto produzem uma importância localizada em seu tempo como interferem em pontadas de historicidade no atual momento do mundo, aqui no justo desígnio de retratar com fidedignidade a relação passado-presente ao qual não podemos nos desvencilhar.

Outro fato que subsidiou a minha escolha foi o uso dessa pintura em outros tantos momentos da história da Espanha por inúmeros meios de comunicação de massa daquele país, a citar no conturbado período da Guerra Civil Espanhola, onde a tela era usada como instrumento de analogia ao passado também “sangrento” daquela nação e como uma ferramenta de memória. Fator este que elucida o poder de fixação no imaginário popular que uma obra desse quilate pode provocar, tendo em vista a relevante representatividade visual e sígnica.

O caráter etnográfico na obra de Goya é um traço grosso e recorrente, facilmente perceptível. A intenção de retratar o povo, a cultura de um dado grupo social, mesmo sendo apenas face de apenas um instante curto, está em todos os elementos do quadro, a começar pelo título, que nos leva ao encontro de um fato essencialmente histórico, com data e localização específica, e que funcionou como o elemento basal para que Goya conseguisse manifestar seu pensamento de maneira contrária aos desmandos de uma forma de governar dominadora, cruel e insana.

A narrativa aqui é ponto marco. Em toda a sua extensão, Goya foi capaz de transmitir um enredo, revelou os personagens, a figura do dominado e do dominador, a esfera temporal e a esfera espacial. O caráter psicológico está estampado nos semblantes dos homens retratados, assim como a complexidade dos mais variados sentimentos. As escolhas das cores e do plano de fundo não revelam menos também. Ao entrar em contato com a tela “Os fuzilamentos de 3 de maio de 1808”, somos acometidos por sensações como o horror, a indiferença, a revolta, a piedade... A obra está escorada num ambiente antitético, de confronto, de dualidade, de choque. Os fatores que otimizam a mensagem e potencializam a expressividade são sempre os aspectos Vítima X Assassino, Escuro X Claro, Morte X Vida, o que acaba por tornar a contradição, dentro desse estudo, um termo de compreensão simples.

Aqui, todo o espetáculo é produzido a partir do elemento fragmentado, da parte para o todo, e não no sentido inverso. Cada traço é possuidor de uma vida própria, deambula sozinho. Como pode ser observado, os soldados franceses são uma massa sem rosto, anônima, desfacelada, sem individualidade, e apenas exercem seus deveres obrigatórios. As vítimas, por outro lado, despem-se das máscaras e escancaram suas individualidades, seus medos, suas diferentes reações, seus diferentes semblantes, mostram as suas súplicas e os seus desesperos. O breu de uma noite sem luz e sem lua dá à tela um caráter nebuloso e pesado, de destruição e morte. Já o “claro” está focalizado no homem de camisa branca, que não se encontra no centro do conflito, mas que carrega a significação do apaziguamento, do acordo, mas também da aflição e da rendição. A luz se esvai dele para os outros, a luz sai dele para os outros e não é incidente do lampião trazido pelos soldados, deixando o centro de atenção levemente deslocado para a esquerda.

Todo o conjunto é muito harmônico. Os conteúdos são bem equilibrados e da mesma forma distribuídos no local físico da pintura. Se aprofundarmos nossa perspectiva, tomaremos nota de que é o homem de camisa branca que constrói a noção de equilíbrio da tela, apesar de o lado direito possuir mais elementos e aparentar mais carregamento de significados. Considerar, na arte de Goya, o fato histórico, o jeito de sentir e a forma, é objetivar o aproximar com a personalidade do artista. E quando se conhece o contexto em que a peça está inserida é ainda mais facilitador para possíveis apreensões de ordem de pesquisa e conhecimento.

Uma outra curiosidade foi como Goya situou o nosso ver, o nosso enxergar e o nosso olhar para a tela. Vemos a tela em diagonal e muito próxima de nossa visão. Os homens são vistos de frente, enquanto vemos os soldados praticamente de costas, fator de horrorificação e destemor empregado no momento do fazer artístico.

O autor valoriza a expressão do rosto das personagens, trazendo à tona o mundo interior de cada um, o espanto que cada um carrega no dorso de suas almas. Até mesmo nos espaços “livres” do quadro há uma espécie de afetação, marca da mão desse artista.

Sendo assim, fica o registro de um mundo, nem tão distante assim, retratado pelo talento de um fotógrafo-pintor que, com o seu fazer operário quotidiano, gerou novas vozes através do silêncio gritante de uma linguagem não-verbal apetecida de formas e ligações estéticas. O caráter atemporal e universal de um registro como esse é prova de que a imagem é, sim, um elemento norteador de todo um sistema pessoal, coletivo, político, cultural e sistemático mundano, capaz de caracterizar, significar e resignificar um determinado acontecimento vivido por um determinado povo em um determinado instante do tempo.

2 comentários:

Maxwell Soares disse...

Acabei de ler o livro, 1808, de Laurentino Gomes. Esse fato é narrado lá, também. Claro, de maneira resumida. Muito bom teu blogger. Gosto de compartilhar essa ideias e outros temas. fica, então, o convite... uma abraço

Rair Oliveira disse...

Saturno também é uma bela obra de arte.