O Equador das Coisas
| Desde 2007 | Por Germano V. Xavier | Em memória de Milton de Oliveira Cardoso Júnior | + de 2.200 textos publicados |
sábado, 17 de agosto de 2024
VIDA E OBRA DE CAROLINA MARIA DE JESUS (LIVE)
terça-feira, 13 de agosto de 2024
Sobre a escritora Luísa Fresta (Texto para o Canal do Poetariado - Youtube)
Por Germano Xavier,
em especial para o CANAL DO POETARIADO (YOUTUBE).
É
com enorme satisfação que esboço aqui uma apresentação sobre a escritora Luísa
Fresta, voz poderosa de nossa literatura contemporânea em Língua Portuguesa.
Sua carreira literária é marcada por textos de tonalidades muito
diversificadas, perfazendo um percurso que vai da literatura infantojuvenil às
formas mais clássicas e tradicionais da poesia, passando por outros importantes
gêneros como o conto e a crônica.
Luísa
Fresta é amplitude portuguesa e angolana, uma dupl'alma concentrada em uma
força-motriz-feminina que entrelaça Angola, Portugal, Brasil, Áfricas e Mundos
em um coração delicado e dedicado a enxergar a mais pura arte literária nas
situações mais comuns ou nas circunstâncias mais rudes. Suas mãos tecem um
conjunto de textos que pontuam suas múltiplas influências culturais e humanas
como quem aborda o próprio espelho das grandezas da vida. Uma mulher que a todo
instante nos apresenta à lusofonia e ao africano, uma mulher que não se cansa
em opinar sobre livros, filmes, artes em geral... uma mulher em constante
movimento.
Com
a escritora Luísa Fresta, aprendi que o essencial está por vir, ainda no
próximo verso, ainda no próximo parágrafo, porque a literatura está no que
avança e no que nos desdobra, no que nos recobra e no que nos aplaina,
apontando para as mazelas mundanas mais irrefutáveis. Com a escritora Luísa
Fresta, aprendi que é necessário perceber e revelar os centros das pequenas
coisas, os núcleos sísmicos dos elementos que fazem a vida de todas as pessoas,
mesmo que estas fontes interiores e, por vezes, ulteriores de e acerca da vida
sejam ou estejam integradas à própria faculdade vital do ser humano: o viver, o
estar vivo-e-além.
Ao
lado de Luísa Fresta, numa jornada de parcerias que já ultrapassa uma década,
aprendi que o verdadeiro poeta fotografa o caos, que o verdadeiro escritor registra
os medos de nós-gentes e articula a chama que fará o fogo-máximo de nossas idas
e vindas, de nossas descobertas e, também, de nossas decepções. Luísa Fresta
soa quase sempre maternal, como uma mãe que ensina as suas crias os segredos do
caminho.
A
escritora Luísa Fresta nos questiona, em seus textos, se a felicidade é um
bônus ou uma guilhotina. Dentro de suas palavras, tombamos por cima das
farturas e das fraturas dos símbolos mundanos, adentramos o sagrado nas coisas
triviais e bulimos com o absurdo das naturalidades cotidianas oriundas de
convenções sociais e institucionais. Tudo isso, regado com uma pessoalíssima
dose de maturidade artística e pessoal. Aliás, ensinagens não faltam nas
páginas dos livros e na obra geral escrita por Luísa Fresta. E isso me chama
muito a atenção. Luísa Fresta sempre está a nos ensinar algo. E de uma forma
muito espontânea e inteligente.
A
escritora Luísa Fresta, por vezes, quase ignora o real para nos abrir um mundo
de percepções suavemente surreais, quando no tempo das intermitências e das
incertezas da vida, colocando-nos numa posição de combate e, também, de
respeito perante o tempo futuro. Afinal, o que faremos da vida que nos resta? O
que estamos fazendo com o nosso Hoje, com o nosso Agora? Aquela velha batalha
já por demais esgotada e profética: cada dia que passa é um dia a menos, não um
dia a mais. Luísa Fresta tenta parar o tempo para que possamos observá-lo,
tamanho o seu poder perante todos nós. Luísa Fresta é, por fim, a voz de uma
humanidade revista e ressonhada, cheia de memórias e refundada em
anunciações.
* Imagem: https://www.voaportugues.com/a/4324514.html
domingo, 9 de junho de 2024
EVANGÉLICOS E PANDEMIA, de Pierre Salama
Neste vídeo, Germano Xavier fala sobre o livro EVANGÉLICOS E PANDEMIA, de Pierre Salama. #evangélicosepandemia #pierresalama #neopentecostalismo #canalliterário #oequadordascoisas
terça-feira, 4 de junho de 2024
Nivaldo Tenório e as camadas do conto
sábado, 13 de abril de 2024
O SEGREDO, de Rhonda Byrne
Neste vídeo, Rebeca dos Anjos fala sobre o livro O SEGREDO, de Rhonda Byrne. #osegredo #rhondabyrne #rebecadosanjos #psicologiapositiva #canalliterário #oequadordascoisas
quinta-feira, 11 de abril de 2024
Então você quer ser escritor?
domingo, 7 de abril de 2024
O ÚLTIMO SACI, de Renata Limão Campos
quarta-feira, 27 de março de 2024
Não haverá futuro
Por Germano Xavier
não haverá futuro
até que se aprenda a aproveitar o dia
como uma estrutura sólida de sempres
até que se possa viver o hoje
sem o incômodo destemperado do Tempo
não haverá futuro
antes de mais nada que não seja nada
ou mesmo depois do pior
não haverá
futuro sem amor
se não intentarmos a ferina variação
dos nossos humores
dos rumores e dos tumores e dos temores
não haverá futuro
se continuarmos a espionar nossas presenças
com os olhos autogovernados dos sistemas
surpreendentemente secretos do amanhã
sobremaneira
não haverá futuro
somente o saldo romântico das contestações
* Imagem: https://www.notibras.com/site/solidao-vira-risco-para-o-futuro-dos-jovens/
segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024
OBRA LITERÁRIA, NÃO LITERÁRIA, ANTOLOGIA E COLETÂNEA, por João Fernando André
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024
Os abismos de Trevisan
terça-feira, 6 de fevereiro de 2024
O GARIMPEIRO DO RIO DAS GARÇAS, de Monteiro Lobato
Avalovara
Notas sobre Abel, a mulher sem nome, Roos e Cecília.
Osman Lins é um exímio construtor de máscaras, pois mascarados são seus personagens no enredo mítico de sua obra-prima: o romance Avalovara. Mascarados não por não conterem em si “nenhum caráter”, como o ilustre Macunaíma, de Mário de Andrade, mas sim por serem elas (as personagens) entidades existentes primordialmente numa esfera de imaginação onírica que, por diversos momentos, sufoca a presença de uma anunciada realidade.
Osman Lins (1924-1978), pernambucano de Vitória de Santo Antão, literalmente põe as personagens sobre a palma da mão do leitor, como que almejando um fenômeno receptivo baseado em referencialidades mais espontâneas ou automáticas. Assim sendo, não basta a simples leitura, a mera decodificação dos códigos lingüísticos, o comum debruçar-se sobre a obra para a boa compreensão da trama. A atitude decisiva do leitor perante o texto é agora o que importa mais, pois o leitor tem diante das vistas um multilivro, um polilivro, cuja fabricação das compreensões vai se basear nos caminhos tomados por ele, sujeito que lê.
Com o leitor podendo compor histórias variadas e variáveis a partir de uma história central, as personagens em Avalovara também passam a agregar dentro de suas existencialidades o caráter de mutabilidade, moldando-se, sempre que requeridas, a partir das rotas desejadas pelo leitor. Essa foi uma fórmula encontrada por Osman Lins para lutar contra o fantasma do fim/esgotamento do gênero romance – idéia muito em voga nos anos 70, década em que Avalorava foi publicado, mais especificadamente em 1973.
Para ele, com a disponibilização escancarada do poder de co-agir e co-produzir a narrativa, tanto o leitor quanto o romance se fortificariam enquanto sujeito e gênero textual, respectivamente, e por conseguinte apagariam qualquer vestígio factual acerca da não-sobrevivência do romance dentro do vasto universo da literatura.
O início dessa revolução estrutural na obra do escritor pernambucano se dá com a publicação de Nove, novena, livro de narrativas curtas datado do ano de 1966. Inclusive, e para fortificar a preocupação diante do referido tema, a questão da estrutura romanesca, principalmente os elementos espaço-temporais, foi objeto de pesquisa durante toda a vida acadêmica do autor. Segundo a professora doutora Ermelinda Ferreira, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): “Sua insistência no estudo da estrutura, sobretudo a do espaço narrativo – tema de sua tese de doutorado – e sua exigência por um leitor participativo, presente em textos construídos como jogos verbais e visuais, vistas à luz das questões postas pelo avanço dos mais recentes meios de comunicação, adquirem aquela clareza a que ele tanto aspirava quando falava de sua obra”.
Comparável a O Jogo da Amarelinha (Rayuela), obra labiríntica máxima do argentino Júlio Cortázar, Avalovara é, por assim dizer, um romance desprovido de seqüenciamento lógico, onde o espaço (O quadrado) bifurca-se no contato com o tempo (A espiral) num movimento de contágio temático que beira o assombroso. O espaço é a própria edificação das personagens, que habitam inatamente o território da racionalidade, figurada pelo quadrado, e que sem cerimônia transitam sobre o plano simbólico-metafórico-onírico de um local que é apenas simulação, mas perfeitamente existível, a espiral.
“Avalovara é uma obra virtual, se entendemos virtual como o oposto ao atual, e não ao real. Real sem ser atual e ideal sem ser abstrata, esta obra ditava, há três décadas, os preceitos de uma nova forma para a escrita e para a leitura, elaborando-se não como um romance de ficção científica, mas como uma ficção científica do próprio romance, como uma metáfora cibernética de um futuro possível para a literatura, projeção imaginária e idealizada de um suporte que viesse somar uma riqueza de possibilidades à palavra, potencializando-a e aos seus efeitos no mundo”, reforça Ermelinda.
Sobreposta ao quadrado da razão, a espiral mágico-mitológica do enredo elabora a passos vagarosos e milimetricamente pensados os fragmentos de uma moldura única. Cada fragmento constitui uma personagem que, por sua vez, representa a necessária estrutura para que o outro passe a existir, mesmo que este outro aparentemente apareça destituído de realismo. Realismo, no caso de Avalovara, não é nem de longe um dos objetivos que norteiam o leitmotiv da obra. É como se o irreal, visto aqui como uma opção de recurso literário, funcionasse a vapores plenos em matéria de complexidade formal e conteudística.
Toda personagem surge de uma aresta, de uma esquina onde uma lacuna possibilita uma entrada, mesmo sabendo que só há uma entrada para o mundo da razão, ou seja, para o quadrado, que é pela ponta da espiral, ou seja, a voz do narrador: caminho sem-razão. Sendo assim, todo personagem é um só, o espaço delimitado e percorrido pela espiral: o quadrado. A espiral representa o infinito, o quadrado simboliza o além-infinito. A espiral está dentro do quadrado, que apesar de ser o ad infinitum é um território demarcado, portanto finito em sua infinitude. As personagens escorregam pelo corpo imaginário da espiral e elaboram um trançado de ações que se movimentam para um centro aglutinador de energia, para uma espécie de olho de furacão.
De acordo com Ermelinda, “Osman Lins acopla seus motivos clássicos, grande parte deles de influência medieval, traduzindo talvez um paradoxo que se percebe em toda a sua obra, tantas vezes verbalizado em seus textos de intervenção e de crítica: um misto de amor e de horror à tecnologia, à máquina, ao ruído contemporâneo, que o fazem desviar a atenção constantemente para a arte antiga. Este sentimento ambíguo de desejo e repúdio com relação à modernidade; este apreço confesso à história e ao ritual, ao lado da criação de procedimentos narrativos que aniquilam a linearidade e a seqüencialidade históricas, encontram tradução em Avalovara, na busca de ambientação na arte medieval (pintura, música e literatura), representada pelos volteios da espiral, posta “sobre” ou “dentro” de um arcabouço racional (o quadrado)”.
Abel, personae-narrador do livro, divide seu protagonismo com o amor de sua vida: uma personagem mulher sem nome, representada por um símbolo gráfico circular pontuado ao centro e com duas espécies de aspas na parte superior. A mulher que não possui nome é criação de Abel, portanto protagoniza o romance que Abel está escrevendo. Isso reforça a idéia de que Avalovara é, segundo o próprio Osman Lins, uma “alegoria da arte do romance”. Há um romance dentro de um romance, uma história dentro de outra, uma ficção no interior de uma ficção. A mulher sem nome na verdade não existe, ou existe para além dos muros da realidade que não é real, ou seja, a realidade do romance escrito por Abel.
Para Marisa Balthasar Soares, professora doutora da USP, Avalovara “ficcionaliza sua própria elaboração”, onde “é proposto um enredo em jogo palindrômico, que nada tem de gratuito, mas, pelo contrário, promove a possibilidade de ruptura com a linearidade do tempo narrativo. A mesma ruptura perseguida pelo personagem central Abel, um escritor marcado pela tensão entre a história imediata e um projeto literário de cunho universalizante, fundado no tempo mítico e para quem o passado não se cristaliza, mas se faz, como na utopia benjaminiana, a condição de transformação do presente”.
Abel a descreve como sendo ela filha de um ciborgue, simulacro de duas existências, mulher feita de metades e junções. Ao passo que a ama, Abel também a odeia, por saber que a única verdade da personagem amada é que ela não pertence ao mesmo plano existencial que o seu. “É na experiência de amor e morte de Abel junto a três mulheres - que ambiguamente são personagens do romance, no mesmo grau de ficção em que está Abel e, simultaneamente, sugerem-se como personagens de segundo grau, isso é, criações dele - que surge a experiência do tempo único”, diz Marisa.
A mulher sem nome é fruto da imaginação de Abel. Abel, por sua vez, é fruto da imaginação de Osman Lins e a entidade que melhor representa o quadrado. “Em um mesmo corpo reúnem-se o mecânico e o orgânico, a cultura e a natureza, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social, exatamente o que encontramos no romance de Osman Lins”, afirma Ermelinda.
O corpo da personagem é um disco rígido, onde as memórias de Abel são armazenadas sem piedade. Tudo é depositado nela: dor, angústia, revelações, lembranças, alegrias, tristezas... Tudo amontoado numa caótica limpeza físico-espiritual da alma de Abel, por isso “ela circula numa atmosfera algo imprecisa e nebulosa à qual não escapam percepções que hoje nos parecem frutos de uma visão premonitória de um novo suporte técnico para a ficção, intimamente relacionado com a estrutura do hipertexto”, reitera Ermelinda. Como escreve o próprio narrador, ele se serve a mulher como “uma imensa máquina que mói e derrama sobre seu corpo, triturados, os anais do universo, a gigantesca massa de eventos e processos não só do mundo visível, mas do imaginado e do inimaginável”.
A mulher sem nome é o amor em grau máximo para Abel, material significativo para explosões emotivo-racionais, o que lhe é causa para inúmeros destemperamentos e rumores de desconfiança. Mas não é só a relação com a personagem sem nome que é conflituosa e difícil. Com Roos – alemã, símbolo de um platonismo cru – os percursos que dão para o amor são tortuosos para Abel, muitas vezes nebulosos. Mesmo relacionada ao paradoxo do encontro desencontrado, Roos é o índice da compaixão. Roos é o percurso, a estrada que leva Abel para a vida. Roos é o próprio pássaro Avalovara, no qual Abel viaja por imensidões inestimáveis montado em seu dorso de penas imaginárias. Sem Roos, nem Cecília nem a mulher sem nome existiriam.
Já Cecília é o encontro, a certeza que se chega a algum lugar, mesmo que este lugar não tenha piso, parede, terra. Cecília é também o tempo, por isso é inesgotável e onipresente. Cecília está em Roos e na mulher inominada. Cecília está no plano do romance de Abel e no plano narrativo que Abel representa (O quadrado). Todas as mulheres são metafóricas, imitações de um desejo. São elas o próprio romance que Abel está escrevendo, ou seja, A viagem e o rio. Uma depende da outra para ser, uma acontece depois da outra e antes da outra.
Após a andança amorosa de Abel, que percorreu Pernambuco e Europa e por fim desemboca em São Paulo, ele encontra o percurso certeiro para o amor perfeito. Abel morre e assim todo o mosaico está completo. O bordado terminado. A catedral, com suas naves repletas de simbologias, erguida ao céu dos sentidos. Com Abel morto, a mulher sem nome, Roos e Cecília se libertam do quadrado. São agora somente a espiral. E tudo pode acontecer, só depende do leitor e de como ele fará a releitura, ou melhor, só depende de como e para onde ele seguirá, claro, preso às asas do pássaro mítico de Osman Lins.
sábado, 20 de janeiro de 2024
TORTO ARADO, de Itamar Vieira Junior
segunda-feira, 8 de janeiro de 2024
Descobrindo Bartleby em mim
Era o meu último ano em Salvador-BA quando li o livro Bartleby, o escriturário (Uma história de Wall Street) pela primeira vez. O ano era o de número 2004 e eu contava 19 anos de idade. De Herman Melville (o Homero do oceano Pacífico, no dizer de Albert Camus), escritor estadunidense tido como um dos precursores da filosofia existencialista e autor da obra acima citada, eu "somente" havia lido o seu texto mais importante: Moby Dick, publicado originalmente em 1851 e, curiosamente, motivo para seu "desprestígio" literário quando ainda em vida. Após o deleite sentido ao ultrapassar as muitas páginas e as águas infindas do oceano, como mais um tripulante do navio baleeiro Pequod na fantástica busca à enfurecida baleia branca, a história do excêntrico escriturário Bartleby me ocorreu às vistas. Deitado no sofá da sala, ali no 201 do bloco 61, no Conjunto dos Comerciários, numa tarde amena, li de um só pulso o impactante livreto que, segundo Jorge Luis Borges (meu escritor preferido), é uma das obras literárias mais relevantes da humanidade. Digo impactante porque, apesar de curto o enredo, foi após o findar da leitura que tive a noção perturbável de como um "não", enquanto resposta, pode ter seu sentido salvaguardado e justificado em nossa humanidade quando nos encontramos diante de certas situações convencionadas como corretas e básicas dentro das relações sociais. O conto é narrado por um velho advogado que trabalha no bairro nova iorquino de Wall Street. Com o aumento da demanda de trabalho dentro do estabelecimento, o advogado-narrador, tentando cumprir com o seu quinhão, percebe que os seus dois ajudantes oficiais, Nippers, Turkey, assim como o menino Ginger Nut não conseguiriam dar conta das novas empreitadas e, assim sendo, resolve contratar mais uma pessoa para acelerar as atividades. Depois de colocar anúncios nos jornais, Bartleby surge à porta destinado a ocupar a vaga de copista de documentos estritamente burocráticos:
"...palidamente limpo, tristemente respeitável, incuravelmente pobre!"
Conta-nos, o advogado-narrador, que nenhuma pessoa lhe causou tanta estranheza e lhe despertou tantos sentimentos como o jovem Bartleby. Desinformado quase que por completo a respeito do novo contratado, segue dizendo:
"Bartleby foi um daqueles seres sobre os quais nada é passível de confirmação".
Tudo estava indo bem, Bartleby aparentando ser um sujeito por demais responsável com os seus afazeres. É quando ocorre o primeiro susto. Requerido pelo chefe a conferir todo o trabalho que houvera feito, Bartleby calmamente responde:
"Prefiro não fazer".
Após o primeiro desordenamento provocado pela inesperada resposta do novato, uma série de alterações morais, psicológicas e de humor são desencadeadas nos personagens que compõem a trama.
"... havia algo em relação a Bartleby que não apenas me desarmava estranhamente, como, de um modo maravilhoso, tocava-me e desconcertava-me".
Num misto de piedade e inconformismo, o advogado-narrador começa a ser atingido de diversas formas pela personalidade obscura e misteriosa de Bartleby.
"Não são raros os casos em que um homem intimidado de uma maneira irracional e sem precedentes tenha suas crenças mais básicas abaladas".
"Nada irrita tanto uma pessoa séria quanto uma resistência passiva".
E Bartleby, numa resistência estóica a qualquer pedido, seguia desafiando "sem desafiar" - porque não era verbalmente ríspido, agindo sempre com o extremo da paciência - a ordem natural das coisas.
"Eu me sentia estranhamente disposto a provocar uma nova oposição de sua parte para arrancar alguma fagulha de raiva dele a que eu pudesse responder da mesma forma. Mas era o mesmo que tentar fazer fogo esfregando os nós dos dedos numa barra de sabão Windsor".
Certo dia, indo a um culto numa igreja próxima, o advogado resolveu passar antes no escritório. E, para a sua surpresa, lá encontra Bartleby. Detalhe: não era dia de expediente. Bartleby conseguira adentrar não só a alma e mexer com as faculdades mentais de todos os seus convivas, mas agora havia tomado de vez o espaço físico do lugar, o que causava ainda mais confusão no arranjo das reflexões inerentes a ele feitas pelo chefe.
"Porque eu considero castrado um homem que permite tranquilamente que seu funcionário lhe dê ordens e diga-lhe para retirar-se do seu próprio imóvel".
Mas, ao mesmo tempo:
"Não se podia pensar por um segundo sequer que Bartleby fosse uma pessoa imoral".
"Ao relembrar todas essas coisas e compará-las com o fato recém-descoberto de que ele fizera de meu escritório sua residência fixa e lar, e sem esquecer de seus caprichos mórbidos; ao relembrar isso tudo, um sentimento de prudência começou a tomar conta de mim.
"Eu poderia oferecer compaixão ao seu corpo, mas não era seu corpo que lhe doía; era sua alma que sofria, e a sua alma eu não conseguia alcançar".
Diante de tal dérbi, o chefe decide demiti-lo. Mas ouve a resposta:
"Prefiro não ir"
"Ele era mais um homem de preferências do que de conclusões".
Beirando a estafa, lutando contra sua própria cólera e já por demais entregue ao desconhecimento de alguma provável solução para o caso de seu funcionário, o advogado decide, ele próprio, distanciar-se de Bartleby.
"... um errante, que se recusa a sair do lugar?"
"Já que ele não vai me deixar, eu devo deixá-lo".
...
O final não cabe a mim contar, porque não é meu desejo tirar de você, leitor, o prazer da plena leitura. O certo é que quando me perguntam se eu já li a história de Bartleby, digo que sim e ainda complemento: foi lendo este livro que aprendi a muitas vezes dizer um "não" como resposta. O condensado "prefiro não" (no original: I would prefer not to) evoca um tempo reflexivo de que o ser humano está demasiado carente atualmente. Engendrado numa mecânica social sistemática, onde as relações humanas se dão através de valores baseados na eficácia de sua produção, ligados a uma forma desumana de vida, capitalista ao extremo, o simples gesto de não aceitar fazer o que é requerido acaba se transformando numa metafórica afronta à "entidade superior", detentora do poder. Sófocles, dramatrugo grego, já dissera certa vez: "Há algo de ameaçador num silêncio muito prolongado", e o silêncio de Bartleby, apesar de aparentar-se simples, funciona como o grito mais operante, o berro último contra o absurdo dos modos "normais" de se viver e de se relacionar, a reação mais pura diante de uma barbárie metamorfoseada em rotina, quase sempre camuflada e desconectada da verdadeira essência do ser humano. O livro é uma ode à rebeldia coletiva, partindo do princípio de que somente através de uma mobilização individual somos capazes de reverter os quadros de subalternidade, desrespeito e desassossego a que estamos diariamente sujeitos. Vale lembrar o contexto histórico ao qual o livro está unido, época de afirmação do modo de produção capitalista. Aí me recordo de um dia, numa aula no curso de jornalismo, quando um professor disse-me: "Germano, seu silêncio é mais perturbador que todo o barulho da sala". De chofre remontei Bartleby dentro de mim, com fixas peças de obstinação e verdade. Naquele dia me senti na pele daquele jovem escriturário de Wall Street, silencioso em sua revolta interna, explodindo como um vulcão ativo suas ânsias mais vorazes, perscrutando da vazia paisagem na janela o sentido mais íntimo destinado ao verbo "SER".
domingo, 31 de dezembro de 2023
BOM DIA B.O./ADEUS BENGUELA, de Gabriel Marques
Neste vídeo, a escritora luso-angolana Luísa Fresta fala sobre os livros BOM DIA B.0. e ADEUS BENGUELA, de Gabriel Marques. #bomdiab.o. #adeusbenguela #gabrielmarques #luísafresta #canalliterário #oequadordascoisas
quinta-feira, 28 de dezembro de 2023
Como se faz um deserto
Por Germano Xavier
após visita a Canudos Velho
Para Ana Carla Guimarães
um deserto se faz
com gente viva abatida
gente cheia de amor
e gente feita de vida
um deserto se faz
com corações soterrados
inundados por sanha humana
gigante e temida
um deserto se faz
não com seca terra ou áspero sol
mas com odiosa opressão
aos menos favorecidos
um deserto,
feito o do sertão baiano-Conselheiro,
se faz com desalmas e muitas ruínas
no Vale da Morte feroz
um deserto se faz
não com o martírio secular das secas
mas com inveja e ganância desmedidas
mas um deserto feito sob o olhar do povo
vingará dentro da paisagem dos tempos
que não morrem
e nenhum deserto findará mais implacável
que o deserto das mentes que mentem
sobre sertanejos sonhos de paz
* Imagem: Google
quinta-feira, 21 de dezembro de 2023
CACOLIQUES, de Tatiana Belinky
quinta-feira, 7 de dezembro de 2023
Relato de um náufrago
Comece a imaginar-se como sendo você um membro da armada marinha colombiana, prestes a embarcar de volta ao seu país, depois de passar os últimos oito meses na região de Mobile, Estados Unidos, esperando que o conserto do destróier de guerra em que você e todos os seus companheiros estavam fosse realizado. Ansioso pelo retorno, você não vê a hora de estar novamente junto a sua família, vivendo sua vida, dentro da mais pura normalidade. Todavia, no retorno você se depara com uma situação inesperada de perigo, o mar está muito revolto, este investe constantemente contra o navio que, sem suportar as más condições do oceano, acidenta-se emborcando um de seus lados para dentro das águas, fato que faz com que oito dos tripulantes sejam atirados ao mar, munidos de nenhum artifício de salvaguarda. Dos oito, apenas um consegue alcançar uma pequena balsa reserva. Este, em melhores condições, ainda tenta resgatar alguns de seus companheiros de viagem, mas sem êxito devido ao mar tormentoso. Aos poucos, você vai perdendo contato com o destróier que, recuperado do meio-tombo, consegue se restabelecer e seguir sua rota natural, o porto de Cartagena.
Os minutos vão passando e você agora olha para todas as direções possíveis e não enxerga mais nada além de um mundéu aquático, repleto de seres misteriosos e imprevisíveis. Você está sozinho e tem apenas um par de remos, a roupa do corpo, um relógio de pulso e mais alguns poucos objetos quase sem nenhuma serventia. Insistentemente você olha para os ponteiros do relógio, confiante de que a qualquer momento algum avião de ajuda ou mesmo um barco de apoio chegará para te apanhar. Você pensa que tudo está sob controle e agradece por toda a sorte. Mas as horas vão sendo vencidas pelo tempo, você sente fome, sede e frio, e nada, absolutamente nada do resgate aparecer. A noite cai e você é um marinheiro à deriva, sozinho sobre as ondas, boiando em seu incerto destino. Experiente e com a teoria do mar fresca na memória, você tenta não se desesperar. Porém, você começa a atravessar dias e noites na mais plena solidão, luta contra as necessidades do corpo, contra tubarões que lhe envolvem a balsa em horas pontuais, contra a fadiga da alma, começa a ter alucinações, sofre desmedidamente com a proximidade da morte, resguarda-se já quase inconsciente de tudo que o rodeia, enquanto as águas verd'azuis do mar insistem em te levar para algum lugar.
No décimo dia, com a pele espocada pelo sol, debilitadíssimo, você abre os olhos e vê ao longe o formato da costa. É terra, você exclama! De súbito, você retira forças extras de não sei onde e salta ao mar para o nado triunfal. Incansável, desejando a vida, você vence o oceano e chega à praia, onde desmorona quase morto. Você está em Mulatos, pequena aldeia colombiana. Alguns moradores acodem em seu resgate. Aos poucos você vai melhorando e é descoberto pelas forças nacionais. Você é o único sobrevivente do acidente acontecido com o destróier A.R.C. Caldas. Você é Luís Alexandre Velasco e a partir de agora é o mais novo herói da Colômbia. Você conta a história ao mundo do jeito que o governo mandou que você contasse, o mundo a reconta de variadas formas, você ganha rios de dinheiro, você é “proclamado herói da pátria, beijado pelas rainhas de beleza, enriquecido pela publicidade...” Você é Luís Alexandre Velasco, o mesmo que depois de todo o alvoroço resolve ir à redação do jornal El Espectador para contar a verdadeira face dos acontecimentos sucedidos em 28 de fevereiro de 1955. Um jovem repórter iniciante, de plantão, de nome Gabriel José Garcia Márquez, a partir dali iria te ouvir em vinte sessões de seis horas ininterruptas. A revelação da verdade causaria um frisson em todo o país. O segmento político fora atingido, Velasco passaria de herói a vilão em poucas horas, seria “logo abandonado pelo governo e esquecido para sempre”, enquanto que Gabo, apelido do repórter, entraria num exílio sem previsão de fim.
A história é verídica e foi contada nas folhas do periódico El Espectador em 14 capítulos, ao estilo folhetim. Na ficha catalográfica, Relato de um náufrago é classificado como sendo uma biografia. A bem da verdade é que Gabo constrói uma bela grande-reportagem – não seria melhor taxá-lo de um romance-reportagem? -, aos moldes dos grandes expoentes do movimento New Journalism norte-americano. Com tradução de Remy Gorga, Filho e com ilustrações de Carybé, o livro é um bom início para quem quer investir sua leitura na obra mágica do Nobel colombiano, autor do mais que clássico Cem Anos de Solidão. E então, quer saber o que realmente aconteceu em alto-mar? Comece a ler agora mesmo...
MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Relato de um náufrago. 34ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
sexta-feira, 3 de novembro de 2023
O MENINO GRAPIÚNA, de Jorge Amado
quinta-feira, 2 de novembro de 2023
Sobre "Todas as coisas sem nome", de Walther Moreira Santos (uma impressão)
Um dica: para chuvas amarelas internas, é sempre bom andar sem guarda-chuva.
quarta-feira, 4 de outubro de 2023
ALADIM E A LÂMPADA MARAVILHOSA (As Mil e Uma Noites), recontado por Tatiana Belinky
terça-feira, 3 de outubro de 2023
De que metal somos feitos?
* |
(Editora Cepe, 2013) |
domingo, 1 de outubro de 2023
CASA AFRÂNIO PEIXOTO (LENÇÓIS-BA/CHAPADA DIAMANTINA)
domingo, 24 de setembro de 2023
Viver sobre duas rodas
Por Germano Xavier
Poucas pessoas no mundo
sabem ou desconfiam que tomei gosto pela leitura, pela leitura mesmo!, lendo – “devorando”,
seria o melhor termo - revistas sobre automóveis e/ou assunto semelhantes, como
motociclismo, antigomobilismo, automobilismo... Numa época ainda desprovida de
computadores e sem a febre atual dos smartphones movidos à internet de fibras
ópticas e bandas largas, ler o que víamos ou tínhamos acesso nas bancas de
revista ainda era uma espécie de solução rápida e menos custosa.
Não sei precisar qual foi o ponto de partida, mas o certo
é que era sempre uma espera ansiosa pela próxima revista do mês, que chegava
ali no interior baiano um pouco antes que nas bancas. Essa era a grande cartada
para se optar pelas assinaturas anuais ou bianuais. Eu tinha as minhas
preferidas: Quatro Rodas e AutoEsporte. Foi no fim de minha infância e no início
da adolescência que comecei, então, a curtir a ideia da liberdade e da
velocidade, como elementos de prazer e de “desobediência civil”, claro, anos
mais tarde aflorados no imaginário e nas ações cotidianas.
Apesar da maior
parte das leituras terem sido sobre carros, foi a motocicleta a grande paixão
adolescente daqueles idos. A moto era, por assim dizer, um sonho bem mais
próximo, diria. Alimentei o desejo de possuir uma até o momento em que comecei
a ganhar meus primeiros centavos de Real na vida como professor. Foi quando,
num dia bonito de minha juventude, saí com uma motocicleta novinha em folha de
dentro de uma concessionária na cidade de Jacobina-BA. Nem bem terminei de assinar
toda a papelada, caí na estrada com ela.
Lembro-me do coração feliz dentro de minha caixa
torácica, do vento na pele, da pista passando rente aos meus sapatos gastos, eu
me sentindo como a me mover num tapete mágico como daqueles dos melhores e mais
famosos contos da Arábia... Aquele dia está, sem dúvidas, entre os dias mais
felizes da minha vida. A sensação era quase indescritível e só saberá medi-la
quem já passou por algo semelhante envolvendo o mesmo assunto e mesma
maquinaria. Podem falar o que quiserem, mas a moto é sim uma invenção fenomenal
– e fenomenológica, por que não? - em todos os seus simbolismos intrínsecos,
até mesmo quando o debate se cerca dos perigos que envolvem tal veículo.
Mas não seria tão gostoso andar de moto se não fosse ela,
a moto, um risco móvel ambulante. Gostamos do que é arriscado, do que nos causa
medo, daquilo que, porventura, tira-nos do sossego ou daquilo que nos apavora,
de certo modo. São muitos e diversificados os clichês que englobam moto e
motociclista, mas nem sempre precisamos tê-los como manifestações erráticas ou
errôneas sobre quem faz do motociclismo parte do seu inteiro-viver. A própria expressão
“viver sobre duas rodas” é baliza para inúmeras problemáticas e para egos feridos,
óbvio.
Todavia, acredito que a “vida sobre duas rodas” tem sim
os seus encantos e privilégios. No instante em que aceleramos nossas motos, tornamo-nos
senhores dos caminhos e enfrentamos ventos, chuvas, todos os tipos de
obstáculos ou acidentes geográficos. A possibilidade de nos mover e de transportar
nosso corpo e nossa alma para os lugares mais comuns, incomuns ou os mais
distantes é por si só uma das maiores maravilhas do estar vivo no mundo, do
estar-com-o-mundo e do ser-no-mundo. Sobre uma moto, ouvindo o ronco de um
motor cujos pistões sobem e descem logo abaixo de suas pernas, explodindo o
combustível que lhe resta, o que impera é apenas o ir e, só depois, o chegar. Cada
ida é um medo vencido. Cada chegada, uma nova pessoa feita dentro de si, mais
forte e mais poderosa.
Sou motociclista desde os meus tenros anos de adolescência,
agora muito mais compenetrado e sabedor de todas as consequências e temores que
abarcam tal prática e gosto. Menos eufórico, mais consciente. Mas ainda louco
pela estrada e por todas as suas bifurcações, metafísicas e metafóricas. A estrada
é o inimaginável, o esconderijo dos destinos incertos, a mãe de todas as
paisagens. Para se chegar a algum lugar, é preciso sempre atravessá-la. De preferência,
sem pressa, claro. A estrada, como uma lei, atinge-nos, ataca-nos, sem piedade.
A estrada pede, dia após dia, que a vençamos. E, principalmente, que não a menosprezemos.
Ser a estrada, eis o segredo.
* Imagem: https://blog.pantaneirocapas.com.br/estradas-para-andar-de-mota/