sábado, 24 de janeiro de 2009

As Iraquaras


Por Germano Xavier



Em palavras, um olhar sobre um documentário da TVE

Iraquara não é só pedra, terra vermelha, grotões e falésias. É terra rica, de povo misturado com muitas histórias e causos para contar. Iraquara é a pamonheira que vende de casa em casa, no bocapil artesanal, seu produto de milho. É a cortina de rochas e a vegetação verde que recebeu seu primeiro habitante por volta de 12 mil anos atrás. É, literalmente, o coração da Chapada Diamantina.

É o incontável número de garimpos, que depois deram origem aos seus diversos povoados. É a famosa Estrada Real, caminho onde os boiadeiros, tropeiros e comerciantes cruzavam rotineiramente, que ia de Jacobina (norte) até a cidade de Rio de Contas (sul), passando por Iraquara. É o século XIX de tantos diamantes e ouro “interminável”.

Ah, quantas cidades maravilhosas em uma só! Quantas Iraquaras em uma Iraquara apenas! Lugar que é a Parnaíba, que em Tupi significa “local de muitas ilhas”, hoje Iraporanga (“Pote de mel”, em Tupi). Reza a lenda que a vila de Parnaíba, como era conhecida antigamente, ficava onde atualmente existe uma lagoa coberta por taboas, uma espécie de planta aquática. Descoberta por volta dos anos de 1755 ou 1760, quando os bandeirantes por lá estiveram – deixaram até um facão com a inscrição “Parnaíba” em sua lâmina – o principal povoado iraquarense também nasceu por acaso.

Certa feita, o povo saiu da vila antiga para a novena de Santo Antônio. Chegando lá, foram surpreendidos por uma chuva bastante forte que alagou todos os engenhos, casas, plantações de cana, chácaras. Tudo tinha virado lagoa. Assim, tiveram de ficar nas proximidades da igrejinha, que ficava mais afastada da parte afetada pela tempestade. Todos perderam tudo que tinham. Todavia, fizeram daquele episódio um recomeço em suas histórias e acabaram construindo tudo novamente.

Iraporanga que hoje é a morada do sanfoneiro Hugo Luna, que canta a magia do lugarejo nos versos:

“A vila de Parnaíba
Devolve a cada criatura
Um pouco de sua criança
Um mistério de alma pura

Sua tarde fria e quieta
Abriga mil borboletas...”

Iraquara é também a Iraporanga da senhora Vanderlina Vieira, ou simplesmente Dona Vanda. Mulher antiga que considera todo mundo parente, que quando vê uma pessoa de fora já chama para tomar um cafezinho e que diz: “O povo de São Paulo pergunta logo se eu sou da Bahia. E eu respondo que sim, com certeza. E da Parnaíba!”

Iraquara que é o Esconso, as lindas cachoeiras do Riacho do Mel – ah, inesquecível Cachoeira do Mel! -, terra propícia ao turismo de contemplação. Iraquara que é a Água de Rega (foi assim batizada por ter muitas terras irrigadas), duas vezes invadida pela Coluna Prestes, um agrupamento de cerca de 4 mil homens, liderados por Luís Carlos Prestes, que se deslocou por todo o Brasil manifestando-se contra o então presidente Arthur Bernardes – na Bahia, os integrantes da Coluna Prestes ficaram conhecidos como “Revoltosos”.

Terra minha que também é a terra de “seu” Lau (Claudiano de Souza), que até hoje mostra os buracos nas janelas, oriundos das balas atiradas pelos “revoltosos”. Terra de “Liozão” (Leopoldo Costa), contador de histórias e homem que diz já ter visto lobisomens e sombras estranhas dentro das grutas.

Iraquara de cozinha sui generis, do famoso godó de banana, do cortadinho de palma, da malamba. Iraquara da cachaça orgânica, do Pedro José de Araújo, mais conhecido como “Dr. Xarope”, que há 30 anos, e no mesmo local, vende suas folhas e raízes especiais para todo tipo de moléstia. Aí vai a lista: jatobá, catuaba, pau de resposta, nó de cachorro, jatobá roxo, Dom Bernardo, carumbinha, guabiraba, capina seca, canhanhinha, cipó-cabeludo, quebra-facão, pistola-de-quati, espinheira santa, jarrinha...

E quem por lá passa, recebe a advertência:

“O homem quando envelhece
O olho enverdece
A barriga cresce
O reumatismo aparece
A câimbra desce
A perna amolece
A barba embranquece
A vista escurece
A velha oferece
E o velho agradece”

Ah, Iraquara feita de magia! Que é o artesanato feito na pedra ardósia, na palha seca, na madeira. Iraquara do tradicional Pau-de-Fita, dos Ternos de Reis - manifestação popular que presta homenagem aos Reis Magos. Que adentram as casas em cantoria bonita:

“Oi de casa!
Oi de fora!
Oi de casa!
Oi de fora!
Maria, vai ver quem é!
Maria, vai ver quem é!
Somos cantadores de Reis.
Somos cantadores de Reis.
Quem mandou foi São José!
Quem mandou foi São José!”

Aí o dono da casa oferece muita bebida e comida e a festança não tem hora para terminar...

Iraquara que fez o compositor Carlos Pita escrever os seguintes versos:

“Ir pra Iraquara e querer ficar
Deixar o coração solto no vento
Montanhas, grutas, sentimentos
E o pensamento solto no ar

Flor de Água de Rega, Toca de Mel, terra vermelha
Lapa Doce, gruta de prazer
Viu, passarinho! Viu...
Viu, meu amor! Viu...

Passar na Parnaíba e escutar
As histórias que Liozão tem pra contar
De uma terra que um dia
Já foi mar.”

Sem mais palavras...


* Imagem: Arquivo pessoal.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Defectivo impessoal


Por Germano Xavier



Um idílico para um Tempo novo.



Eu, Ira, quaro.
Tu, Ira, quaras?
Ele, Ira, quara?
Nós, Ira, quaramo-nos?
Vós, Ira, até onde quarais?
Eles quararão, Ira?


* Imagem: Arquivo pessoal.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Da força de um canto



Por Germano Xavier



canta, canta, canta... e s'encanta
pois cantar, grande lugar
d'eloquência é sopro
da alma, efervescência
quando se tem esperança
tanta

quem não canta, alegria espanta
e vive eterno a conhecer o escuro
não sei se posso, meu canto impuro
é dança de copas: pobre planta

e é semente, que de mim germina
doença que me corrói, maltrata,
um sufoco escuso que não termina

que reluz como ouro, e não prata
o encanto é arte madura;
espelho de mágica visão
e cura


 Imagem retirada do Google.

Rafael e o mundo da cal



Por Germano Xavier



Baseado na história de Rafael Souza do Nascimento.


Rafael acordou feliz hoje, apesar da esteira nada confortável onde dorme todo dia. Do mesmo modo que está feliz, Rafael não suspeita do seu futuro nas próximas horas. Sempre foi assim, e para ele quase nada poderia soar como uma novidade. Só soube que não tinha pai nem mãe um dia desses, quando o dono da olaria o chamou num cantinho:

- Rafael, preciso lhe dizer uma coisa.
- Ué, então diz.
- É que ninguém nunca viu os seus pais.
- Como assim?
- Ninguém os conhece.
- Quer dizer que você não é o meu pai, que minha mãe não é a minha mãe?
- Não, Rafael, a Andira e eu não somos seus pais verdadeiros. Nós apenas criamos você...

Mas Rafael acordou feliz hoje, lembremos disso. E logo que amanheceu, ainda com pedaços de noite no céu, ele saiu de casa em direção à velha olaria. Rafael tem doze anos de idade e trabalha lá há mais de cinco. Já é bem experiente na arte de queimar pedra e fabricar a cal.

Mas como hoje é uma terça-feira, Rafael ficou com a tarefa de partir ao meio as grandes pedras que depois irão ser calcinadas no forno. É um trabalho muito perigoso, mas ele já está acostumado. Aprendeu tudo com seu pai, que não é o seu pai propriamente dito, e também com o Jorge, que um dia quase perdeu a visão porque uma lasca de pedra foi parar bem em seu olho direito. Até hoje sente dores e um inchaço crônico, mas ele sempre diz que está tudo bem.

Em Iraquara a fabricação de cal virgem e hidratada é uma tradição. Pela facilidade com que a rocha apropriada para este tipo de produção é encontrada no solo, tal labor é o ganha-pão de inúmeras famílias em todo o município. Mas é um ofício que, por diversos fatores, entre eles a falta de informação e de condições mínimas de segurança, rotineiramente deixa seqüelas eternas em quem mexe com o produto.

Andando pelas ruas da cidade, não é difícil se deparar com pessoas mutiladas de variadas formas, umas sem um dos braços, outras sem orelhas, com cicatrizes profundas... Isso quando não vêm a falecer no local. O risco é enorme porque há a manipulação da pólvora que, uma vez introduzida num orifício feito no centro da pedra, deve ser comprimida manualmente até conseguir ficar uma “massa” bem unida e uniforme. E é justamente nesse instante onde tudo pode acontecer.

Rafael está usando um short, um chinelo feito com a carcaça de um velho pneu e uma blusa branca bem surrada. Nunca usou um colete, um capacete de segurança, ou qualquer outro objeto para lhe proteger o corpo. Rafael simplesmente é o espelho dos outros que trabalham na olaria. Rafael está feliz, tem doze anos de idade e vai começar a estocar a pólvora na pedra.

Ele sabe que deve ser paciente e que deve bater o material bem lentamente, até tudo ficar bem juntinho. Só assim é que ele poderá fazer a ligação e, de longe, detonar todo o bloco rochoso.

Rafael começa a socar a pólvora.

O menino está curvado, com os joelhos genuflexionados tocando o barro da terra. Os outros operários estão nos seus afazeres, jogando as pedras no calor das lenhas. O cenário é rústico e silencioso. Ouve-se apenas o crepitar da madeira no fogo candente e alguns poucos balbucios.

Cerca de cinco minutos após começar a condensar a matéria inflamável, Rafael sente que está próximo de terminar. Restam poucas batidas. Da chaminé da olaria brota uma fumaça branca que colore o céu. Uma marmita já bem fria com carne moída e macarrão o espera em cima de um pequeno tamborete.

Rafael iça o martelo e a pinça para uma de suas derradeiras pancadas na pedra, agora já num misto de cuidado e temor quase totalmente agachado. É um arremesso suave, sutil, porém suficiente para provocar uma faísca dentro do orifício. Rafael sabe que não há o que fazer nessa hora, somente esperar.

Os outros acordam de suas quenturas ao ouvir o pipoco. O barulho chega a ser ensurdecedor quando escutado de perto.

Bummmm.

O céu se cobre de estilhaços. A enorme rocha está partida, fragmentada, remoída, como todos queriam. Rafael está caído no chão e muito sangue o rodeia. Percebe-se, mesmo ao longe, que falta alguma coisa no corpo de Rafael. E o tempo agora é tudo.

Rafael está sobre um colchão macio no leito do hospital da cidade. Rafael não vai dormir feliz.


* Imagem: Arquivo pessoal.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Meu pai, dono da fábrica de sorrisos



Por Germano Xavier



“De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”(Fernando Sabino)

“A interpretação somos nós que fazemos”, a boca rosada em febre dizendo. A pele branca coberta de pêlos coloridos em preto e branco. Foi dormir cedo. Ponderou o dia e o pôs na balança. O fiel devia estar compensado pelo peso das horas. Havia cadernetas espalhadas por toda a casa, principalmente sobre a mesa do consultório. Como havia a perene preocupação acerca dos fechamentos e dos ferrolhos. Gostava de tudo apertado, urdido, colhido, singrado, garrido. Não de deslizes. Um homem feito de descontinuidades e favores. Para ele, sempre existia o momento de reavaliar prioridades, mesmo que a vontade falasse mais alto algumas vezes, teimando. Era noite, ele tinha anos e estava de aniversário. O filho mais novo pensou a noite inteira em “qual presente?”. Procurou, procurou, procurou. No meio da procura, lembrou do tempo antigo, tempo antigo e eterno. Quis combinar algo com o tempo antigo, de quando pedia a benção para dormir lá pelas nove ou dez horas da noite. Era gostoso apertar a mão do pai. “Mão de quem ama”, lembrou. Na cabeça, aquele escarcéu. Queria dar tudo de presente, entregar o mundo inteiro, a alegria toda do mundo, a vida qualquer coisa assim de verdadeiro. “Filho precisa ser”, pensou. E lembrou de quando furava a parede da garagem para construir a rede da brincadeira de bola no ar. O irmão era maior e, por vezes, vivia em outro mundo. O mais novo fazia castelo modelando tijolinhos de barro molhado com caixinhas de fósforo por detrás da casa, quintal de mangueira que já não existe mais. Ele aprendendo a caminhar sozinho, amparado. O filho subia o pé e era como subir ao sonho. Nas costas, sempre a figura de proteção dele, dizendo “cuidado” sem privar da liberdade certa. Era amor e não era outra coisa. Emudeceu por um instante. Pensou “eu não seria nada se não fosse meu pai”. Ou quase nada, porque tinha a mãe também. Depois lembrou dele com aquela velha faquinha insubstituível modelando com mãos de deus a futura prótese, perto do jardim, raspando raspando raspando, construindo sorrisos de gente, colocando sorrisos na gentes, restaurando sorrisos perdidos, de gentes também perdidas, no meio das rosas e das plantinhas verdes da mãe. Era puro encanto. Aquelas sobrancelhas arqueadas, quase sem, diminutas, a calvície que sempre foi, o olho manso de quem tem o coração bom e a alma limpa, modelando com o foguinho de álcool, prudente, fingindo uma sisudez que era mais o liame de toda uma vida de sacrifícios para agora estar ali, todo de branco, direto do Pernambuco mais seco, mais sofrido e azedo, ostentando uma missão de honra e honestidade. “Meu pai é o maior homem do mundo”, o filho matutou. E olhava-o de longe, de perto, o tudo em nós que havia, o cheiro ocre dos produtos com nomes catastróficos misturado a alicates e brocas, um ar blasé atmosférico no fim da tarde, quase barroco, agudo, hora de fechar o engenho e tomar o banho merecido. Cirurgião Dentista de ofício, o velho era mesmo sábio em amar. Amava sempre quando ligava o chuveiro quente para o filho menor, dizendo mais uma vez “cuidado, use o chinelo”, para no outro dia se poder ir ao mercado fazer a feira e organizar produto por produto na hora da volta, rótulos bem visíveis, tudo muito organizado, tudo muito. Era mesmo um pai em excesso. Um pai que não conseguia ser pouco. Pai sem plágio. Amava no dia em que o escorpião picou a noite do pé branco sobre a Iraquara de lembranças. Ele dormindo e o filho mais novo pensando no presente do pai. Queria ser o autor do texto e resolveu e foi. Subverteu a ordem lógica das coisas e seguiu, pertinente, sabedor das hierarquias. Lugar de rei é lugar armado de uma beleza moral torcida em flor. O filho, crescendo e oblíquo, fingiu a discrição e quis a vulgaridade regrada a palavras. Pensou “não sei fazer outra coisa senão escrever”, e pensou mais um pouco. Não precisou de venenos, licores, cigarros. Foi o exemplo e espelho. “A gente aprende que, como o espinho, a pétala também fere”, com os seus botões, ensimesmado. O pai ensinou que a vida é vontade, que se precisa ir com garra, sem atropelar ninguém, e defendeu defendeu defendeu a cria. Não sabia ele que o filho já pedira muito aos céus a felicidade e a vida longa, que o filho já chorou muitas vezes com medo de qualquer coisa de mal, que o filho jurou ser coisa boa no mundo, orgulhar um coração que cabe um universo inteiro. E começou, vendo seu único jeito de presentear, “painho, não tenho dinheiro, não tenho como comprar um presente grande e volumoso, não tenho muita coisa e o pouco que tenho devo ao senhor. Agora, painho, tenho estas palavras que também não existiriam se não fosse tua dedicação e esforço. Hoje não quero literatura, quero apenas a verdade, palavra de filho, 23 anos de filho teu, painho. Hoje, teus 63 anos de idade são, para mim, motivo de orgulho e respeito. Sou grato por tudo que o senhor me proporcionou durante toda essa minha vida. Estou chorando e escrevendo porque eu preciso dizer o que sinto. Hoje, estudando e morando numa cidade que não é a que nasci, longe do convívio e do aprendizado diário há bem sete ou oito anos, sem saber dos dias que o senhor vive, sinto uma saudade e uma dor no peito que não tem tamanho. Nenhuma palavra seria tão poderosa a ponto de conseguir suprir a potência do teu nome em minha mente. Carlos é e sempre será o nome do meu melhor professor, do mestre que ensinou os caminhos primordiais, do homem que me deu uma escola, uma roupa para vestir, um prato de comida, nome do homem que me ensinou os valores mais importantes, nome do pai bondoso, do profissional sem igual, nome do homem da foto que carrego em minha carteira, nome do homem que passou enormes dificuldades para conquistar o que conquistou, do homem que dedicou uma vida inteira em prol da felicidade de uma família. Vou terminar por aqui, sabendo que nunca findará o que sinto, dizendo que teu filho Germano carregará o senhor no fundo do coração por todo o sempre”.


Imagem: Arquivo pessoal.