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domingo, 24 de setembro de 2023

Viver sobre duas rodas


 

Por Germano Xavier


Poucas pessoas no mundo sabem ou desconfiam que tomei gosto pela leitura, pela leitura mesmo!, lendo – “devorando”, seria o melhor termo - revistas sobre automóveis e/ou assunto semelhantes, como motociclismo, antigomobilismo, automobilismo... Numa época ainda desprovida de computadores e sem a febre atual dos smartphones movidos à internet de fibras ópticas e bandas largas, ler o que víamos ou tínhamos acesso nas bancas de revista ainda era uma espécie de solução rápida e menos custosa.

            Não sei precisar qual foi o ponto de partida, mas o certo é que era sempre uma espera ansiosa pela próxima revista do mês, que chegava ali no interior baiano um pouco antes que nas bancas. Essa era a grande cartada para se optar pelas assinaturas anuais ou bianuais. Eu tinha as minhas preferidas: Quatro Rodas e AutoEsporte. Foi no fim de minha infância e no início da adolescência que comecei, então, a curtir a ideia da liberdade e da velocidade, como elementos de prazer e de “desobediência civil”, claro, anos mais tarde aflorados no imaginário e nas ações cotidianas.

             Apesar da maior parte das leituras terem sido sobre carros, foi a motocicleta a grande paixão adolescente daqueles idos. A moto era, por assim dizer, um sonho bem mais próximo, diria. Alimentei o desejo de possuir uma até o momento em que comecei a ganhar meus primeiros centavos de Real na vida como professor. Foi quando, num dia bonito de minha juventude, saí com uma motocicleta novinha em folha de dentro de uma concessionária na cidade de Jacobina-BA. Nem bem terminei de assinar toda a papelada, caí na estrada com ela.

            Lembro-me do coração feliz dentro de minha caixa torácica, do vento na pele, da pista passando rente aos meus sapatos gastos, eu me sentindo como a me mover num tapete mágico como daqueles dos melhores e mais famosos contos da Arábia... Aquele dia está, sem dúvidas, entre os dias mais felizes da minha vida. A sensação era quase indescritível e só saberá medi-la quem já passou por algo semelhante envolvendo o mesmo assunto e mesma maquinaria. Podem falar o que quiserem, mas a moto é sim uma invenção fenomenal – e fenomenológica, por que não? - em todos os seus simbolismos intrínsecos, até mesmo quando o debate se cerca dos perigos que envolvem tal veículo.

            Mas não seria tão gostoso andar de moto se não fosse ela, a moto, um risco móvel ambulante. Gostamos do que é arriscado, do que nos causa medo, daquilo que, porventura, tira-nos do sossego ou daquilo que nos apavora, de certo modo. São muitos e diversificados os clichês que englobam moto e motociclista, mas nem sempre precisamos tê-los como manifestações erráticas ou errôneas sobre quem faz do motociclismo parte do seu inteiro-viver. A própria expressão “viver sobre duas rodas” é baliza para inúmeras problemáticas e para egos feridos, óbvio.

            Todavia, acredito que a “vida sobre duas rodas” tem sim os seus encantos e privilégios. No instante em que aceleramos nossas motos, tornamo-nos senhores dos caminhos e enfrentamos ventos, chuvas, todos os tipos de obstáculos ou acidentes geográficos. A possibilidade de nos mover e de transportar nosso corpo e nossa alma para os lugares mais comuns, incomuns ou os mais distantes é por si só uma das maiores maravilhas do estar vivo no mundo, do estar-com-o-mundo e do ser-no-mundo. Sobre uma moto, ouvindo o ronco de um motor cujos pistões sobem e descem logo abaixo de suas pernas, explodindo o combustível que lhe resta, o que impera é apenas o ir e, só depois, o chegar. Cada ida é um medo vencido. Cada chegada, uma nova pessoa feita dentro de si, mais forte e mais poderosa.

            Sou motociclista desde os meus tenros anos de adolescência, agora muito mais compenetrado e sabedor de todas as consequências e temores que abarcam tal prática e gosto. Menos eufórico, mais consciente. Mas ainda louco pela estrada e por todas as suas bifurcações, metafísicas e metafóricas. A estrada é o inimaginável, o esconderijo dos destinos incertos, a mãe de todas as paisagens. Para se chegar a algum lugar, é preciso sempre atravessá-la. De preferência, sem pressa, claro. A estrada, como uma lei, atinge-nos, ataca-nos, sem piedade. A estrada pede, dia após dia, que a vençamos. E, principalmente, que não a menosprezemos. Ser a estrada, eis o segredo.


* Imagem: https://blog.pantaneirocapas.com.br/estradas-para-andar-de-mota/

domingo, 23 de julho de 2023

A senhora das manhãs


 

Por Germano Xavier


Uma senhora perambula pela avenida onde costumo fazer caminhadas com uma sacola plástica contendo ração para gatos e cães. Sempre que saio do meu apartamento, geralmente antes das seis da manhã, e passo pelo local, ali na parte final do muro de uma faculdade de Direito instalada no bairro há anos, faço demorar mais meus passos e fico a observar o ritual daquela mulher.

Com uma calma estrondosa, ela deita a sacola no chão e abre-a lentamente. Como num rompante, gatos e gatas se aproximam caminhando pelos altos muros, cachorros e cadelas em situação de rua aparecem dobrando esquinas e vencendo logradouros, afoitos e brincantes. Logo, todos estão reunidos ao lado dela. Esperam, pacientemente, ela terminar de ajeitar potes e completar a água que restou do dia anterior.

Automaticamente, como se soubessem já os gatilhos do “estão liberados, podem comer e beber!”, aninham-se como irmãos de fome e de sede, numa fotografia de rara beleza e harmonia. São muitos. São para mais de dez. Os animais vez ou outra param, entre uma mordida e outra no alimento, entre um gole e outro na água, para olhar aquela altiva senhora que agora inicia o fechamento da sacola e os ajustes finais de seu rito. Eles parecem agradecer com os olhos.

Ela permanece ali, ao lado dos caninos e dos felinos, por um bom momento. Um instante muito singular. Ajusta alguma coisa que saiu do lugar, encaminha olhares para os mais magrinhos, deixa um carinho naqueles que mais se aproximam. É uma cena realmente muito bonita. De uma grandeza e de uma naturalidade incomuns. Aquela senhora ama estar com eles e, certamente, eles sentem o mesmo.

Não vi isso acontecer uma ou duas vezes no mesmo local. É uma imagem constante, como já falei, que abre as minhas manhãs com uma esperança desmedida na humanidade (ou no que restou dela). Depois de toda a movimentação, ela sai de mansinho quando ainda poucos terminam de comer. Gatos e gatas a olham de cima dos muros, cães emparelham-se a acompanhá-la por um bom trajeto, até ela se embrenhar por um pequeno trecho de chão batido e mato ao redor.

Não sei o que a move nem os reais motivos para tal esforço diário. Sua presença, para mim, naquele setor da avenida por onde passo com certa frequência, é como a de uma entidade mística, alguma deidade superior, que precisa ser resguardada dos perigos e das infâmias, para assim poder realizar o milagre imperativo de seus dias: o da distribuição gratuita de compaixão e de amor.

É ela a senhora das manhãs. Quando ela some do horizonte de meus olhos, aperto o passo outra vez, com um conforto insólito instalado em meu coração e em minha alma. Os gatos e as gatas somem de vista, os cães partem para seus dias nas ruas da cidade. Os carros também passam velozes. A manhã passa. Até a vida passa. Mas passa bem melhor agora.


* Imagem: https://www.nationalgeographic.pt/meio-ambiente/as-mentes-dos-caes-e-dos-gatos-afinal-o-que-sabem-eles_2229

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Bolsonaro é fascista?


 Por Germano Xavier

@germanovianaxavier


Acho que muitos de vocês já ouviram falar no Henry Bugalho. Li recentemente um ensaio rápido dele, intitulado de BOLSONARO E O FASCISMO. Creio que faz parte de uma série de textos chamada de LEITURAS RÁPIDAS e que é disponibilizada de forma gratuita para leitura via aparelho Kindle. O texto é de caráter didático, filosófico, bem fácil de se ler e bastante esclarecedor, sem deixar de ser crítico. O autor inicia seu percurso narrativo tentando explicar as origens do termo “fascista”. Para isso, retoma preceitos estabelecidos em textos produzidos por George Orwell, entre outros nomes fortes do pensamento mundial.

Há também a preocupação em situar o brotamento e a expansão do uso do termo “fascista” no seio da sociedade brasileira. "Esse uso irrestrito serviu para esvaziar e empobrecer o debate, e mais confunde do que esclarece. Um dos dilemas decorrentes disso é justamente a ideia de que, ao se munir de maneira incorreta e exagerada de um termo forte e específico como “fascista”, atribuindo-o a todo e qualquer opositor político, será que, quando nos vermos confrontados com um fascista real, seremos capazes de reconhecê-lo? E, mais até do que isto, alguém prestará atenção às nossas advertências?", questiona Bugalho logo nas primeiras linhas.

É quando o Bugalho entra mais intimamente na figura do ex-presidente do Brasil, Jair Messias Bolsonaro. Mais precisamente nele e em sua visível atividade fascista ao longo de sua história política desempenhada no país. Enfim, Bolsonaro é mesmo um fascista? Partindo desse questionamento – de resposta óbvia, considero -, Bugalho inicia o processo de cavoucamento e explicação para diante da resposta pungente, deixar que o leitor responda por si próprio.

Todavia, o que é mesmo o FASCISMO? O que fazer para se reconhecer um FASCISTA? "E essa, por si só, é outra questão problemática, posto que o fascismo, por ser um movimento nacionalista, possuía suas particularidades em cada nação na qual floresceu. Os fascistas italianos não defendiam as exatas mesmas noções ou propostas dos alemães nazistas, ou dos falangistas na Espanha ou do movimento integralista brasileiro, só para citarmos alguns casos." Bugalho, como se lê na citação supracitada, atenta em seu texto para as múltiplas facetas que o termo adquiriu ao longo do tempo e em diferentes regiões do mundo. Para tanto, considera que a maior parcela dos atuais estudiosos do tema utiliza como pressuposto inicial a definição proposta por Roger Griffin, em 1993, que diz: “Fascismo é um tipo de ideologia política cuja essência mítica em suas várias permutações é uma forma palingenética de ultranacionalismo populista.”

Assim posto, em seu ensaio, Bugalho segue afirmando que "Nessa definição de Griffin, estão presentes todos os elementos necessários para a compreensão do fenômeno político do fascismo: o nacionalismo, o populismo e o renascimento mítico desse espírito nacional". E continua, ao longo do material, colocando em debate as várias acepções e os inúmeros entendimentos acerca de tão nefasto conceito. Robert O. Paxton, Federico Finchelstein e Jason Stanley foram alguns dos autores utilizados por Bugalho para a construção do seu ensaio. Como disse, Bugalho deixa a conclusão em aberto. Evidentemente que a resposta é simples. Mas é sempre bom buscar o conhecimento das coisas de maneira cada vez mais ampla. Como texto de adentramento ao assunto, funciona bem. Enfim, fascista ou não, o certo é que Bolsonaro nunca mais.

 

* Imagem:  https://www.amazon.com.br/Bolsonaro-Fascismo-Henry-Bugalho-ebook/dp/B09ZTCFZYY

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Novos movimentos


 

Por Germano Xavier


Conto para todos - quando tenho a oportunidade, óbvio - que saí de casa com 14 anos de idade. Numa tarde já bem distante no tempo, esperei meu pai terminar o expediente em seu consultório odontológico situado numa pequena cidade da Chapada Diamantina, e pedi que escutasse o que eu tinha para lhe dizer naquele momento. Era um pedido. “Painho, quero estudar em um lugar que ofereça uma educação melhor do que a daqui”. Eu queria realmente sair, rumar mundo, criar novos movimentos. Estava entrando no Ensino Médio e a hora era justamente aquela.

Lembro-me do meu pai ali sentado, cansado de um dia cheio de trabalho, mas escutando meu incomum pedido. “Tudo bem, Germano, vamos pensar sobre esta possibilidade”, disse-me, levantando-se para ir tomar o seu banho e se preparar para o jantar. Meu pai não era de mentir. Se ele havia dito que ia pensar sobre o caso, é porque ele realmente iria pensar sobre o caso. Aquilo me apascentava, acalmava-me os ânimos de menino desejoso por bons estudos e um melhor “futuro”. A situação que meu irmão mais velho enfrentava na escola estadual da minha cidade natal à época, com muitas aulas vagas e muita falta de estrutura educacional, fizeram-me atentar para o desejo de sair dali e querer estudar em um local mais bem aparelhado para tal.

Sair de casa cedo me fez aprender que o mundo é muito diferente e bem mais hostil que o mundo existente de dentro de nossas casas, quando temos tudo ou quase tudo que queremos, sempre muito perto de nosso alcance ou do alcance de nossos genitores. Por falar nisso, agradeço aos deuses dos caminhos por ter tido uma infância razoavelmente tranquila e poder falar isso aqui agora sem grandes complicações. Mas, como eu estava dizendo, sair de casa me fez acordar para a vida real que havia e que pulsava longe dos holofotes de minha mãe e do meu pai.

Fui, então, para uma cidade maior, mas ainda próxima da que eu nasci e morava. Encarei aquilo como uma espécie de fase intermediária. Quando a barra pesava, era sempre possível, e nada custoso, solicitar os auspícios da mãe e do pai, que sempre foram pais incríveis e prontos para o embate, seja ele de qual natureza fosse ou se apresentasse. Anos depois, viajei para mais longe, sertão nordestino agora, para passar cinco anos da minha vida entre faculdades e primeiros trabalhos. Tudo só, na companhia de alguns poucos amigos, mas geralmente só no mundo e pelo mundo.

Estar e ser só no mundo me proporcionou muitos aprendizados e algumas dores, também. Engolir dores, sem dúvidas, é um dos melhores aprendizados que temos quando somos sozinhos na jornada. Durante boa parte de minha vida, já adulto e crescido, foi sempre preciso tomar conta das coisas todas da vida de um jeito muito semelhante aos tempos de antanho. Coisas da vida, não? Quem nunca?

Aí, repentinamente encontramos uma pessoa que muda todos esses parâmetros. Uma pessoa cuidadosa ao extremo, que gosta de zelar e agradar, termina por fazer revolução e muda o modo como lidamos com tudo e com todos. Acredito que estar só no mundo por muito tempo me proporcionou sensibilidade suficiente para entender o valor que pequenas ações de cuidado possuem na vida do outro. Uma companhia que cuida de verdade é algo muito prazeroso, para citar apenas um adjetivo. Tem sido bom sentir novos movimentos em minha vida. Tem sido sereno e leve. Não ser ou estar só é bom também. Tão bom que já começo a esquecer como era mesmo ser sozinho ou estar sozinho. A vida não para mesmo de girar. A vida é incrível!


* Imagem: Google

domingo, 31 de maio de 2020

Um café




Por Germano Xavier



Um café coado antes do Verbo. A roda gigante do mundo que não para. Relógios badalam. Um café expresso para o pecado original. E tudo fora penetrado. O homem não sabe mais para onde ir. Um café com especiarias, por gentileza, para nossos desertos e futuros. Um lágrima para nossos prantos de crocodilo, por vezes inevitáveis. Um café breve para alimentar o temporal. Sim, o mundo lá fora é uma loucura. Outra dosa do americano para as ordens de desordem. Em tudo se pode confiar?

Um caribenho para revoluções. Um mocha para desanuviar, meramente. “Saindo um machiatto para o sonhador na mesa 43!”, vocifera o garçom. Um cortado para equilibrar o doce e o salgado da vida. Um capucinno, amigo. Ou melhor, dois. Não temos tempo para desperdiçar. Sente aqui. Precisamos conversar. O dia está lindo. Como vai a sua família? Há muito tempo não passo por lá. Como o tempo lhe fez bem! Um panna. Merecemos. Dois, sim. Dois. Estamos congregando. O café nos aproxima de Deus. Você acredita em Deus?

Deus é café com leite, um clássico. Prefiro um latte. Sou de exageros, de discórdias. A rebeldia é o que nos trouxe até aqui, não acha? Essa conversa não termina aqui, amigo. Estou na Praça do Vigário, 656. Apareça por lá, quando possível. Será um prazer. Tomaremos um irlandês, preparado com um whisky 18 anos. Se preferir, um amaretto. Sua esposa ainda aprecia um caramelo? Meu filho do meio adora um hawaiano, com leite de côco da região. Você não envelhece nunca, Doutor. Dê um abraço em seu pai. Diga a ele que jamais me esquecerei daquele dia.

Amigos são para essas coisas. Deixa eu lhe dizer... você sabia que meu querido avô plantava conilon? Sim, mas depois percebeu que negócio mesmo era mexer com o arábica. Está cedo. Boa noite. Bom dia, vizinha. Não quer entrar para tomar uma xícara de café? Não, ela viajou. Fique à vontade. Com ou seu açúcar? Na cama. O homem não sabe mais para onde ir. E tudo fora penetrado. Até a madrugada que embala os sonhos mais reais. Um café para depois do fim do mundo, please.


quarta-feira, 8 de abril de 2020

As máquinas de costurar famílias



Por Germano Xavier


Um fato me chamou a atenção hoje quando me coloquei a pensar sobre coisas alheias e, por conseguinte, resolvi sentar e escrever este texto: as costureiras e as máquinas de costura sempre estiveram muito presentes em minha vida ou na vida das mulheres de minha família. Sim, das mulheres. Homens não, de jeito nenhum, é preciso que se diga. Praticamente todos os parentes (mulheres) mais próximos tinham alguma relação com o ato de costurar ou possuíam máquinas de costura em seus aposentos, para fins particulares de produção em pequenas quantidades ou simplesmente para efetuar reparos e até para dar vazão à imaginação na confecção de vestimentas próprias. 

Lá em casa mesmo, minha mãe, muito vaidosa, buscava sempre a ajuda de costureiras na cidade para apurar as linhas de peças de roupas as mais diversas, muitas delas criadas a partir de sua própria inventividade. Era comum a rotina quase semanal de ir visitar uma costureira ali nos idos dos anos 80 e 90 do século passado, exato tempo em que se passam estas minhas deambulantes recordações. Nas proximidades da casa onde morei até os 14 anos em Iraquara, na Bahia, havia duas costureiras que executavam com maestria as quase geniais e ousadas ideias maternas acerca do vestuário feminino. Existiam outras costureiras na pacata cidade, mas Gilda e Vera eram as preferidas da minha mãe. Lembro com carinho de toda aquela movimentação. 

As máquinas de costura, historicamente, acabaram por representar dois lados de uma paradoxal moeda social. Ora funcionaram como importante passo para a autonomia econômica das mulheres, ora representaram mais um empecilho para as suas respectivas emancipação e socialização. A máquina de costura é uma inovação oriunda da Revolução Industrial e as fábricas têxteis inicialmente simbolizaram, através do uso deste objeto, a possibilidade de criação de vínculos empregatícios para várias mulheres. Todavia, logo o esmagador sistema fabrico-patriarcal encobriria tal feito, substituindo um possível avanço por segregações ímpares, monitoramentos excludentes dentro e fora das próprias fabriquetas, desigualdades funcionais e salariais, bem como assédios sexuais por demais inadmissíveis. 

Enfim, as máquinas de costura não trouxeram consigo a libertação das mulheres, tão quista e possivelmente prometida. A vigilância era tão grande, que até setores ligados à medicina criaram teorias no mínimo nefastas para dificultar o acesso à este "utensílio de libertação" feminina, utilizando-se de discursos do tipo "a trepidação das máquinas de costura pode levar a mulher à infertilidade" ou coisas semelhantes. Sem dúvida, esta é uma matéria que merecia uma maior investigação por parte de nós, estudiosos e curiosos de plantão. No Brasil, costurar sempre foi tipicamente feminino. Há relatos de escravas costureiras já desde a época colonial, bem como de senhoras mais bem afortunadas. 

Minha avó Isaura possui uma máquina daquelas Singer dobráveis até hoje. Uma verdadeira relíquia. Recentemente, minha mãe comprou uma moderna e portátil para ela. Na família do meu pai, Tia Estelita se destacava. Tinha um quartinho com máquina e muitos rolos de tecido. "Costurava para fora", diziam. Mas costurava "para dentro" também. Lembro bastante de suas roupas de "senhora já viúva"(é possível dizer algo assim?). Algumas mulheres àquela época possuíam um jeito particular de se vestir. Tia Estelita vestia suas próprias ideias. Era mulher forte, destemida e resoluta. O quarto de costurar dela ficava bem no cômodo que dava para a rua. Aquela posição facilitava a entrada e saída de clientes. A máquina de costurar, para a minha tia, significava também proximidade e afeto. Sabia que ela também costurava roupas e cobertores para doar aos mais necessitados. Era bonito demais para a alma ver tudo aquilo. 

Hoje, por acaso do andar natural da vida, vim parar em uma região onde a máquina de costura tem um papel fundamental para o cotidiano de milhares de pessoas, em especial para a vida das mulheres. Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, principalmente, são cidades pernambucanas que fazem girar altíssimos valores em dinheiro por conta da fabricação e da comercialização de produtos têxteis e de seus derivados. A integração homem-máquina de costura nessas redondezas é percebida facilmente nas ruas sob diversos prismas analíticos, assim como é bastante perceptível a dureza que é ter de lidar com as agruras deste mercado de trabalho, que entre as agulhas da informalidade e as linhas da necessidade, costura uma esperança humana num pano rústico de autocomiseração, labor e resiliência.


* Imagem: https://c1.staticflickr.com/3/2464/3855514241_2aa317a9c3_b.jpg

sábado, 21 de março de 2020

Tio Didi




Por Germano Xavier


Dava uma certa apreensão quando a gente resolvia que no fim do ano iríamos passar alguns bons dias em Pernambuco, especialmente no Pernambuco do meu pai, o Pernambuco atravessado pelo castigado Rio Una, revendo parentes, tios e primos, refazendo todas aquelas aventuras infantojuvenis e que, porventura, ainda cabia a nós dar uma continuação. E uma das coisas que sempre passava pela minha cabeça antes mesmo de partirmos para São Bento do Una era saber se o sítio de Tio Didi estaria tão bonito quanto no ano anterior. 

Era um lugar de espírito quase mítico, úmido e seco ao mesmo tempo, verde e cinza, com cheiro próprio, de uma atmosfera particular que acabava por contrastar com todo o seu derredor. De um lado, via-se alguns galpões onde ele criava galináceos em grandes proporções para posterior venda (a região é uma das maiores produtoras de frango e derivados do país), uma casa simples ao centro e do outro lado da propriedade uma lagoa, com vistas para a rodovia e seus carros das décadas de oitenta e noventa zunindo e se perdendo na primeira curva, que era quase em sempre multipovoada de marrecos coloridos, onde pássaros e garças pousavam seus voos mais deslumbrantes aos finais das tardes.

Tio Didi era um grandalhão, pra lá dos 1,90m de altura, matuto dos bons, contador de histórias engraçadas, típico homem guerreiro de um Brasil profundo que precisou batalhar pelo pão abençoado de todos os dias com suas unhas e seus dentes. Sem grandes estudos formais, foi um grande mestre na arte de lidar com as coisas da natureza. Os tempos eram outros, as preocupações com os direitos dos animais também, gostava de caçadas na companhia de irmãos e amigos. Todavia, apesar de saber tudo isso hoje, os animais gostavam dele. Lembro de seus vira-latas obedientes a todo tipo de necessidade, de seu papagaio falastrão e de um sofrê (corrupião) que vez ou outra saía do alpendre, voava sua vida de pássaro livremente e voltava para dentro da casa do meu tio como se sentisse saudade daquele homenzarrão. Percebia sua dedicação em dar comida aos cães, aos marrecos, a preocupação com a água da lagoa. Enfim, era um homem integrado ao seu quintal - e que belo quintal!

Mas a vida é muito estúpida, às vezes. E triste foi perceber, aos poucos, o declínio do meu tio, aquela sua vida inteira entrelaçada em problemas conjugais e também com o álcool em forma de bebida. Aquele gigante se rendendo aos poucos às doenças do corpo, aos males da alma, o sítio sendo repassado para os outros e ele logo se encostando à morada do irmão mais próximo, irmão mais velho, meu tio Abdoral, ali do outro lado do asfalto onde a vida parecia ter a mesma densidade de pedra e a peleja diária era a mesma. Gado pouco, granjas que não ofertavam mais nenhum futuro, tentativas e mais tentativas. Muito rapidamente a lagoa se transformou num imenso buraco seco de piso rachado. Veio a secura de anos sem chuva. Veio o outro dono do lugar. Foram-se as garças, os marrecos, os cães. Ficou a desolação em meus olhos adolescentes. Ficou muito mais coisa em mim do que parece. Ficou tanta coisa.

Mas lembrar é uma forma de vencer. A vida. A lembrança é o lugar onde guardamos aqueles que nos marcaram. E quando algo ou alguém nos marca, este algo ou este alguém jamais morre. Fica. Como se na forma de adubo, a ajudar na caminhada da eterna semente perene que somos. Até o fim. Pois no fim há o Tempo. O Tempo coloca tudo em perspectiva. Até a dor. O Tempo voa. E também não passa. É uma gaiola. Como a gaiola do concriz do meu tio Didi. A gente abre e fecha ela, sempre, mas no fim voltamos para nossas casas. E depois de muitas experiências, de idas e vindas, a gente aprende que tudo muda. Então, o inferno de hoje será diferente amanhã. Mesmo que seja outro inferno, outra dor. Mas será diferente. Isso dá um certo conforto.

Ontem liguei para o meu pai. A notícia ainda era recente. A voz do meu pai estava embargada. Tentei escapar do assunto algumas vezes, para não alimentar o instante. Nossas raízes estão indo. E não tem outro jeito. A gente acaba lembrando de tudo que pode lembrar, de tudo que dá. Lembrar é tão importante quanto escrever. Para mim, sinto que as coisas acontecem quando escritas. Para avançar, é preciso escrever. Para finalizar. Para ser. É preciso escrever. Escrevo o que é muito real para mim. Muito vivo. Minha escrita/literatura me movimenta. É bonito ver. Sentir. Por isso estas palavras em memória deste irmão do meu pai, em memória do meu tio Didi, que não morreu. Mas que ficou. Em algum lugar. Dentro. Bem dentro. Um lugar ainda sem nome em mim, onde ponho tudo aquilo que me ajudou a chegar aqui, a ser até aqui. A estar aqui. 

Tio Didi, muito obrigado. Muito obrigado.


* Imagem: Acervo Germano Xavier

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Eu ensino para os outros




Por Germano Xavier



É comum, confesso. Alguém chega e diz: "Professor, por que você não trabalha em uma faculdade?" Ou assim: "Professor, não sei como o senhor aguenta ser professor desses meninos. O senhor nunca pensou em fazer outra coisa, não?" Vez outra isso assim, desta forma dita, chega até os meus ouvidos. Posso até fazer que entendo o porquê das pessoas me questionarem, mas por dentro eu rio delas e sinto um pouco de tantos sentimentos... Não sabem elas que tenho plena consciência de onde estou e o que quero para mim. Sou feliz. Sou rico. O que é a riqueza para você? É verdade que ser professor "desses meninos" por vezes é deveras cansativo, a gente fica esgotado, sem forças, enfim. Mas eu repito: estou no melhor dos lugares para uma pessoa como eu estar. Ao lado de, comandando um certo grupo de peregrinos, sedentos (ou quase sedentos) pelo desconhecido, pelo que pode vir a ser.

Penso a educação para a Vida, e o ambiente escolar tem muito a ver com isso. Há quem duvide, mas teimo que sim. O componente curricular ao qual me dedico, a Língua Portuguesa/Literatura, é também sinônimo de Cidadania, Fruição e Autoria. É muita responsabilidade, camarada. Muita mesmo. Precisamos dar conta de um bocado de coisas: interdisciplinaridade e concepção de linguagem, texto, leitura do texto escrito, leitura do texto falado, produção de textos escritos e orais, questões envolvendo identidades, ambientes, gêneros e discursos, formulamos planos de trabalho, mexemos em acervos textuais para serem pontos de partida na hora do jogo ensino-aprendizagem, só para citar alguns. E depois ainda temos de pensar num modo de avaliar todo este pessoal e todo um potencial.

Aí a gente começa o ano e pá! Construção. Levantamos paredes. União. Se não tiver união, não vai para lugar algum. É barra! Tem hora que a coisa parece não querer andar, fluir, mas de repente algo acontece. Nem sempre irá acontecer. Mas com esforço acontece. Kabum! Aproximações se dão. Preparamos a meninada para as mais diversas leituras e compreensões de mundo, estudamos textos, focamos em outras referências, escrevemos individual e coletivamente, reescrevemos mais e mais. Efetuamos a reflexão linguística. Tentamos formar leitores literários e, depois de uma longa caminhada, fechamos um ciclo. Eu sei, pode não ser tão lindo assim o caminho. Mas para mim, sempre há de ser.

Entre nós, alunos e professores "desses meninos", deve haver sempre uma vontade de integração. Para que possamos criar. A criação é o que, no fundo de tudo, ainda vale a vida. Para que serve a escola hoje? Para aninhar. Para agrupar. Para que sintamos que ainda temos forças suficientes para alterar o estado "confortável" das coisas, apesar de tantos males que nos rodeiam. Como fazer? Querendo. Nós formamos o cidadão intervindo, sensibilizando, compreendendo, responsabilizando. A escola pode ainda mais. O professor pode ainda mais. O aluno pode ainda mais. Muita coisa ainda pode mais. Eu estou nessa de acreditar e me iludir, e nessa de acreditar de novo, há 15 anos. Eu ensino para os outros. E você?


domingo, 9 de fevereiro de 2020

Tio Jânio

Minha mãe e Tio Jânio.

ou A vida é uma mala Caterpillar que se quebrou na primeira grande viagem



Por Germano Xavier


Para Tio Jânio, in memoriam.



Passei a manhã inteira limpando o quarto de hóspedes do apartamento onde moro, pois no próximo fim de semana uma amiga de velha data de minha esposa virá do Rio de Janeiro para passar um fim de semana conosco aqui no Agreste Meridional de Pernambuco. Arrumei pilhas e pilhas de livros que estavam fora do lugar devido, revistas, velhas apostilas sobre assuntos diversos. A Menina do Sorriso Cacheado preparava um pequeno almoço de domingo. Finalizada a arrumação do quarto, peguei uma mala pequena de rodinhas que possuo para tentar consertá-la. A última viagem que fiz acabou rachando uma de suas laterais plásticas. De quatro dedos era o tamanho da fenda. Fui à geladeira e peguei a cola Super Bonder que deixo lá para quaisquer eventualidades desta natureza. Depois de já uns dez minutos tentando grudar um lado no outro, fui meio que desistindo. Os plásticos não se juntavam. Comecei a pensar em alguma maneira mais grosseira, com arames finos ou outro material que fosse possível retorcer ou grampear as partes. Enfim, não queria perder a mala. Eu estava sentado no sofá da sala de estar quando o meu telefone celular começou a tocar. Era minha mãe, chorando. Nem precisei perguntar, no fundo eu já temia, eu já sabia. Mainha foi de pronto me dizendo, entre soluços: "Jânio morreu, Geu". 

Não falei nada, quase nada. Não há muito o que se dizer numa hora dessas. Deixei minha mãe falar e respirar. A dor é grande. Perder um ente querido é sufocante, sabemos. Depois de um certo tempo, pedi para falar com meu pai. Meu pai ainda não estava muito por dentro do assunto. Desliguei o celular. Comecei a pensar. Passa um redemoinho de lembranças na mente da gente. Imagino o quanto deve ser dolorido perder o pai, o esposo, o filho, o irmão. Para cada parente ou familiar, a dor tem um tom, uma cor diferente, uma intensidade. Mas, como disse antes, não há muito o que se fazer numa hora dessas. Penso que o melhor a se fazer é devolver o corpo ao pó dos tempos da maneira mais digna possível, com as simbologias e as homenagens necessárias. A alma do meu tio, acredito piamente nisto, já foi endereçada para o melhor dos caminhos além-olhos. 

Tio Jânio foi o tio mais próximo que tive, já que ele viveu grande parte de sua vida na mesma cidade em que nasci: Iraquara, Chapada Diamantina. Natural de Canarana, cidade a 68 km de Iraquara, era comum vê-lo pelos corredores lá de casa, principalmente aos sábados após a feira livre da cidade e durante a semana na hora do café da tarde. Ele mesmo se prontificava a tomar as rédeas da cafeteira e pelas bandas da cozinha da casa dos meus pais deixava sempre preparado um delicioso e cheiroso café vespertino. Tio Jânio teve uma vida simples, sem grandes movimentos, casou-se, teve dois filhos e terminou seus últimos dias trabalhando como motorista do município de Iraquara. Com sua destreza ao volante, ajudou muitas pessoas enfermas encaminhando-as com segurança aos hospitais da capital baiana a fim de iniciar seus respectivos tratamentos. 

Num dia como o de hoje, escolho relembrar de momentos alegres que vivi com meu tio. Lembro dele sempre a me fazer perguntas bastante engraçadas e inteligentes. Dizia ele que havia "pegado" as charadas via programas de rádio que costumava ouvir horas adentro pela madrugada. A imagem dele a sintonizar aparelhos de rádio ficará comigo para sempre. Onde houvesse um rádio, lá estava Tio Jânio a tentar sintonizá-lo. O noticiário radiofônico o deixava a par de todos os principais acontecimentos mundanos, e isso bem antes da internet ganhar as casas brasileiras. Tio Jânio era uma espécie de porta-voz de tudo lá em casa. Era chegar por lá e sempre um novo acontecimento vinha à tona. O rádio também o fez acompanhar com enorme entusiamo o seu time de futebol do coração: a Sociedade Esportiva Palmeiras, de São Paulo. Tio Jânio foi a pessoa mais apaixonada pelo esporte bretão que conheci nesta vida. Neste quesito, foi um grande influenciador para toda a família. 

Tio Jânio tinha a alma dos teimosos, dos arredios, dos que faziam por vezes aquilo que lhes dessem na telha, sem pensar muito nas consequências. Talvez, para mim, esta foi a grande mensagem deixada por meu tio em vida: viver intensamente, mesmo quando a vida não parecer boa o suficiente. Bebeu e fumou desde muito novo. Quando eu era pequeno não entendia bem o porquê de tudo isso. Mas agora, nos anos de mais madureza, entendo com mais clareza os prazeres e as fugas buscadas por meu tio. A vida nem sempre é tão simples de se entender. Não podemos fazer nenhuma espécie de julgamento a quem se atira de tal forma a vícios e/ou fetiches. Só ele saberia dizer onde a dor da vida doía mais. A gente se afoga em tantos outros vícios... cada dia mais, cada qual à sua maneira. O certo é que eu sei que meu tio viveu as delícias desses prazeres que matam como um profissional, não como um amador. Isso se traduziu, para mim, como rebeldia e coragem: outro ponto que destaco na personalidade do meu tio. Tio Jânio foi um pequeno grande rebelde destemido e vejo isso hoje como um ponto muito positivo. 

Chega uma hora que a vida desgruda de nós, feito uma mala quebrada durante uma viagem que teima em não juntar mais as suas partes, mesmo usando para isso a cola mais forte do mercado. Chega uma hora que aquela mala reforçada e aparentemente eterna desmancha-se em ilusão e verdade. E pensar que ao comprar a mala e pagar um valor alto por ela em sete prestações, imaginei que ela fosse inquebrantável e que estaria em minha companhia para sempre. Todavia, fui muito ingênuo. Para sempre, nem sempre a vida será. Muito menos uma mala de plástico Caterpillar (CAT) onde no adesivo de sua propaganda um homem imenso aparecia pulando em cima de seu arcabouço para demonstrar toda a resistência de sua engenharia voltada para viagens. 


Aos parentes e familiares, meus sentimentos.



Siga em paz, "Canarana"!


Meu pai e Tio Jânio.

Vovó Isaura e Tio Jânio.




* Imagem: Acervo Germano Xavier

domingo, 4 de agosto de 2019

O professor e a alegria do movimento




Por Germano Xavier


Muita gente não sabe, mas a minha caminhada dentro do planeta Educação começou mesmo, de verdade verdadeira, no ano de 2004, apesar de eu ser filho de professora e ter um certo convívio para com esta Dona já de bem antes desta. Paulo Freire (ainda podemos falar o nome dele, assim, abertamente?) já dizia: "A alegria não chega apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. Ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria". Naquele ano, estava eu em Salvador-BA esperando que as aulas da Universidade do Estado da Bahia  (DCH III) começassem após uma greve que fez com que o semestre letivo se atrasasse cerca de oito longos meses. Num dia bonito, minha mãe me liga: "Germano, uma professora vai sair de licença... você não teria coragem de pegar as aulas dela, não?" Foi o estopim. Fósforo riscado.

De lá para cá, passei por várias modalidades e níveis de ensino, principalmente pela Educação Básica de ciclo público, trabalhando em comunidades quase sempre carentes ou menos favorecidas, entre elas algumas em zona rural. Para este público, o professor é ainda mais necessário. Trabalhar com cognitivos adormecidos, carências motivacionais e sensibilidades afetivas muitas vezes destronadas é feito pisar um campo hostil e misterioso, que não nos oferece o óbvio olhar sobre as coisas que nos rodeiam. Todavia, eu sempre soube que ser professor é buscar, é se manter em movimento, é estar-além, e sempre fiz isso em minha trajetória na docência: buscar. Descobrir os caminhos para se chegar ao fim da reta, com mais fôlego e menos arfante, é saber manusear as estratégias mais inteligentes para se descobrir e construir habilidades.

Digo a vocês, meus caros, em alto e bom som: saber reconhecer a importância de uma pedagogia da afetividade voltada para o aluno representou, e ainda representa, para mim, um dos maiores avanços meus no trato educativo, ano após ano. A escola, assim, tende a deixar de ser vista como um território amargo para os discentes. O interesse aumenta, o respeito, a reciprocidade, a empatia, o acolhimento é sugerido já de pronto. As competências dos estudantes logo são atingidas, conhecidas, desabrochadas, incentivadas. Tal pedagogia, a da aproximação, a do olho-no-olho, a do pulso-com-pulso, esboça querer resolver o que temos a fazer com este Novo Tempo que nos cerca, veloz, midiático, ríspido, de superfícies e pouca amorosidade entre os iguais. 

Descobrir-se professor, na ativa sê-lo, em luta, reconhecer-se, saber-se poderoso e capacitado para enfrentamentos vários e diários já é, sim, um ótimo começo. O mundo anda complicado demais para se ser em metades. É cada vez mais primordial mudar a realidade, auxiliar pessoas, empoderar almas, instruir, aconselhar caminhos, apoiar destinos na fortaleza que é o conhecimento. O professor, mais que qualquer outro profissional, tem a chance de operar estes pequenos milagres cotidianos, que farão do futuro o reino de todas as graças. E é sua obrigação prestar mais atenção em tudo isso.


domingo, 24 de fevereiro de 2019

A grande insurreição armada de soluços



Por Germano Xavier


A chuva resolve cair, logo hoje, sobre os batalhões de mascarados e de foliões que se formam pelas ruas. Avenidas coloridas, a água escorrendo pelos bueiros entupidos. A chuva lava esse mundo tão sem freio. Lave a alma desse povo, chuva! Lave tudo! Leve tudo de ruim pra bem longe! Menos a criança, com o cabelo encharcado, que desvia das fantasias de mãos dadas com o pai. Menos a mãe, exposta aos olhos da filha, que enxerga um pierrot branco se achegar nela e dizer nenhuma-purpurina, nenhuma-lantejoula. É assim no baile municipal, é assim na Confraria da Sucata, é assim no Andaraí, na Vila Matilde, nos blocos do sul e do norte. 

Muitos pedrolinos sem noção, muita palavra feia, muita nenhuma-comédia muito menos arte. Mas vamos todos como não devíamos. Sorrindo à toa, indo ao léu, a esmo ao ermo, aos quatro cantos dos becos, largas tendas de sabores e dissabores. Vamos, como uma grande insurreição armada de soluços. E soluçando, vai o jovem que não se aposentará, soluça a moça que não pode abortar, soluça o mendigo oficial da praça, os pedrolinos sem-respeito algum, os pedrolinos sem-educação, os pedrolinos sem-futuro nem oportunidade, as colombinas sem-direitos e desdentadas, as colombinas sem-atenção, as colombinas sem-quase-tudo nem o mínimo. Ó, Momo, que rei sou eu? Que rei sou eu, que não me canso de me cansar de tanto pandemônio!? Que rei sou eu, que não sei brincar a brincadeira vazia de tantos? Que rei sou eu, que não me engano no meio de tantos panos?

E ronca o batuque, e sangra a voz, e chora o cavaco, e essa renca de gente sem voz, para onde trota? Que arreios invisíveis são esses, meu Deus? Onde Deus agora? Deus está bêbado? Deus é a ampla massa de afônicos, deslumbrada, rica em alegria vaga? E nossos rebentos? E nossa soberania? E aquilo tudo que nos prometeram na última eleição? A carestia dessa vida, Momo! Quem é você, é você o dono de toda essa armação?!

É show. O batuque é uniforme. Assim como o aperto, os embaraços, os choques, os voleios de corpo, as apreensões. Vede que mulher linda, de seios quase nus! Vede que homenzarrão! A vida é isso, pedrolino, amigo meu? A vida é quando? Somente, e quem é quem? E quem vem? E quem virá para nos salvar no fim da linha ou no fio da navalha? É um Cristo negro, o que vem? O branco não deu jeito. Quem tá sem jeito aí, levanta a mão! É pra pular! É pra gritar! 

Suadeira e muita cerveja. Sexo por detrás do banheiro químico. Que química! Que sol! Xô, chuva! Pra bem longe de nós todos. Já chega de tanto eu me afogar em meu paletó... em nosso avental diário, em nosso macacão de firma! É a festa da carne! Tanta carne, e essas novinhas! E esse país tão bonito em impunidades. Que país lindo! É carnaval, pedrolino, amigo meu! É isso aí, o ano só está começando! Desgraças mais estão por vir. Mas o filho que eles fizeram e não vão criar juntos nascerá no fim do ano.

Fim do ano tem mais festa. Antes, ainda mais festa. Farra com o dinheiro público, vadiagens com a coisa nossa. Arlequins mais espertos que nós, pedrolinos, irão contratar mais bandas e mais praças serão enfeitadas. Bandeirolas, fitas, roupas e sapatos. Tudo brilhando e cheirando a novo. Ensaiaremos cordões, unidos, na mesma castidade de vozes, na mesma rouquidão. Vozes virgens. Gargantas imaturas. Cérebros castigados. É o coreto! A filarmônica das preces sem milagres. Ronca tudo, Momo! Bota pra ferver! Ronca o estômago com fome, ronca a dor do desespero. E haja fogos! Lançaram a nova marchinha. Estão nos empurrando, pedrolino, amigo meu. Poderemos cair. Tem nada não, não é água da chuva? É não, pedrolino. Já é lama.


* Imagem: https://www.deviantart.com/idilynn/art/Carnaval-Venitien-Annecy-2011-210545785

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Bolsonaro não é preciso



Por Germano Xavier


em apoio à democracia,
outro parafraseio pessoano contra o retrocesso no Brasil



lutar é preciso bolsonaro não é preciso democracia é preciso bolsonaro não é preciso tolerância é preciso bolsonaro não é preciso respeito é preciso fascismo não é preciso lutar é preciso bolsonaro não é preciso democracia é preciso bolsonaro não é preciso tolerância é preciso bolsonaro não é preciso respeito é preciso fascismo não é preciso lutar é preciso bolsonaro não é preciso democracia é preciso bolsonaro não é preciso tolerância é preciso bolsonaro não é preciso respeito é preciso fascismo não é preciso lutar é preciso bolsonaro não é preciso democracia é preciso bolsonaro não é preciso tolerância é preciso bolsonaro não é preciso respeito é preciso fascismo não é preciso lutar é preciso bolsonaro não é preciso democracia é preciso bolsonaro não é preciso tolerância é preciso bolsonaro não é preciso respeito é preciso fascismo não é preciso lutar é preciso bolsonaro não é preciso democracia é preciso bolsonaro não é preciso tolerância é preciso bolsonaro não é preciso respeito é 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não é preciso respeito é preciso fascismo não é preciso lutar é preciso bolsonaro não é preciso democracia é preciso bolsonaro não é preciso tolerância é preciso bolsonaro não é preciso respeito é preciso fascismo não é preciso lutar é preciso 


* Imagem: http://centrovictormeyer.org.br/voto-critico-voto-nulo/

domingo, 14 de outubro de 2018

Uma presença incômoda



Por Germano Xavier



Hoje, véspera de feriado, beiro a morte. A minha morte. Por onde passei, pessoas denunciaram preocupações, perguntaram-me sobre o meu estado, se eu estava passando por algum problema ou se tinha acontecido algo comigo. Porque, nas vozes e mentes destas pessoas, meu rosto aparentava cansaço, sofreguidão e uma tristeza de rios. Não havia resposta em mim, nem teria como. Creio que morri um pouco hoje. Um pouco de manhã, um pouco de tarde e, finalmente, um pouco de noite. Engraçado, também morro agora enquanto escuto os passos da proprietária deste hotel, um pouco é certo. Morro, mas é um morrer para se viver, um morrer para se prosperar, um findar-se no digno intento de renascer-se. Não tenho mais dúvida, preciso continuar morrendo. É uma questão de sobrevivência, de encontro, de fuga. Necessito da morte para viver. Todavia, enquanto ela não me abraça com o todo de sua envergadura, sigo a viver, em reduzidas linhas, minha morte. Persisto, sempre, a viver do meu ar, do meu sopro, inalando minha existência, absorvendo com a alma minha morte mais vital.




Eu moraria. Eu morar ia, eu amaria e amar iria caso fosse possível atravessar a ponte aquática do destino. Distância atenta ao andar dos passos do coração, vergel cruzado pelo verde de se querer, aleia albina essa toda em torno de transcender o ser. Uma pintura cravada na tela do amor é uma celebração inteira. Nós. Fogos seriam acesos nas madrugadas frias e o júbilo das estrelas encontraria no escuro o abrigo dos brilhos. Eu estaria aberto sobre a fenda dos sentimentos e uma cor de presente o mundo teria na lançada curva da estrada. Eu moraria no mar-céu que é só teu. Eu moraria na dor marítima do teu gemido. Moraria no encontro de tuas marés. Eu moraria. E você estaria sempre no pedestal da calçada mais alta na rua enladeirada mais densa de sabores. Cinzento, o firmamento velho se contorceria em lágrimas e uma chuva de vivas lamberia o ácido de tua pátina amorosa. Bronze, prata e ouro. O amor em lumes em ti. Eu. Raso. Passo alto sem tocar superfície. Saudade é uma verdade doída, menino. Amor nem pensar. Café seco com instinto na manhã decorrida ativa o nada que não suportamos. Eu viajo pensando na esquina onde dobram as pernas. Estar sentado é estar pronto para alguma coisa também que não ou que sim. Raso, insisto. Assim, sem nem. Um universo tão distante. Uma força. Uma forma. Evoco essa prosperidade dos tempos idos em mim. Eu costumava achar diamantes sem me esforçar tanto. Achava-os, empós um mundo em punhado puro. Cascalhada era a minha sina. E hoje? Não é mais fundo, tudo? Jaçados seixos pontificam a trilha de se ir. Para onde, quando nada? Para quando, quando sempre? Refugo. Pareço partida. Vejo diamantes na água que bebo. Me diamanto. A água traz um reflexo. Há alguma coisa nela que adocica. Acendo e incendeio. Há um fogo molhado. Arreio minha cavalgadura e teimo. Teimo.



* Imagem: https://www.deviantart.com/deviousclown/art/Waiting-for-something-180810558

Sem um céu pertencido



Por Germano Xavier



Levantei por volta das seis horas da manhã, tomei dois potes de iogurte e fui continuar a leitura de um livro que ela me deu. É um livro curto, que sou capaz de devorar em uma tarde só. Mas as obrigações que tenho a cumprir nos últimos dias não estão me permitindo uma tarde nem uma noite propícia para uma leitura seguida, sem freios. Nunca mais consegui ler um livro numa sentada só, com fiz com a maioria dos livros do epiléptico da Rua do Ouvidor, do Assis, na mesa da cozinha na casa dos meus pais. Estou lendo de maneira fragmentada, mas ainda compulsiva. Sou doente por livros e quem me conhece parece desconfiar. O livro que estou lendo fala do amor, de um amor diferente e de um amor igual. Sim, uma memória no singular, como toda a história, apesar da ideia velha da pluralidade amorosa. Para mim, idéias não envelhecem. E devem ser reconstruídas, sempre. Como a própria ideia, a ideia do amor também é imortal. Mas o homem sim, o homem morre. Morre de várias mortes. Morre em vida e na própria morte, seja do corpo ou da alma. Mas a ideia do amor não falece, como o amor. Estou lendo calmamente, devagar, como quem degusta um bom vinho tinto. Sentindo o deslizar da personagem sobre as lâminas do sentimento-mor. O homem mata o amor no homem e recobra-o com outro amor, força geradora da vida. O motor que faz a vida, mesmo quando quase impraticável. Mas essa é uma análise romântica e imatura ainda. Preciso terminar de ler o livro para, quem sabe, não me sentir tão decrépito assim... ou não. Dor de cabeça o dia inteiro. Fui à farmácia e comprei uma cartela de um comprimido contra dor. A moça do balcão desconfiou de mim. Senti. Parei a moto na esquina e entrei vestido com um casaco bicolor e uma mochila nas costas. Com a cara barbuda, aparentando uns trinta anos de idade, entrei e pedi os comprimidos. Ela não olhou para mim durante todo o enlace mercantil. Eu olhei para ela e vi como era uma moça atraente perdendo a vida atrás de um balcão. Quanta ironia e quanta metáfora. Uma moça sadia ficando doente atrás de um balcão numa farmácia na esquina. Eu e ela e mais ninguém. “Obrigado”, disse. Ela agradeceu quase sem altura na voz, usando um “de nada” murmurante. Ainda demorei cerca de um minuto e meio entre o avistar a moto novamente na esquina e o ligar o motor. Pensei em voltar e pedir a mão dela em casamento. Ela possuía olhos de mulher boa para se casar, olhos velhos, quase tristes quase frágeis. Mas lembrei que tenho um amor e um amor que é mais que amor. Fui para casa, mas antes paguei a mensalidade do apartamento. Rua A, 500, apto 203. Um lugar até confortável. De frente para o parque recreativo da cidade. Entrei e engoli o comprimido. Minha cabeça pulsava. Escrevi um poema que tinha começado na noite anterior e li alguns contos. Não demorou muito e fui para algum lugar. Foi o dia de ganhar palavras. Um papel. Um papel amigo, de se querer fortalecer laços. A vida tratada com esmero por uma mão que acarinha o tempo. Tempo que não é para marcação de territórios. Eu até entendi. Sim, entendi. Mas disse que eu era daquele jeito mesmo e que não conseguia sorrir a todo o momento. Meu sorriso é difícil, e pesado quando sai de mim. A vida inteira fui tratado como o chato. O avesso à normalidade das ações, das relações. Já estou acostumado com esta parte de mim. Enfadonho, avesso, porém observador. Vivi os melhores dias de minha vida sem precisar expor a ninguém nada e não será agora o momento de mudar de comportamento. A menina do papel, Ela, entende tudo. É uma moça com a cabeça boa. E agradeci a ela como quem agradece um favor bom. E não era favor nenhum. Era amizade. A aula foi péssima, dor de cabeça, latejando. Faltando uma hora para o fim, saí da sala e fui para casa. Atravessei a ponte e minha cabeça dentro do capacete pulsava. Um alívio quando tirei. Entrei, tomei mais um comprimido da cartela de quatro, e deitei. Pensei na vida que eu levava, no nada que sou perante a mecânica capitalista e formatável que é essa vidinha do mundo lá fora. Aí pensei no passado e nos meus amores. Sim, porque amei todas e só amo uma. E não sei por que fiz este exercício. Talvez tenha esquecido alguma ou outra, sem maior relevância. Foi quando esqueci a dor de cabeça. Fiz uma lista, claro, sem citar nomes... O diabo abre a voz quando o dia nem acorda e esnoba um pensamento. Não existe paixão nesta vida, ninguém pode, ninguém deve. Não há possibilidade, não se pode tecer esperanças. Iludido é o homem que crê no amor, ainda que fraco. E as palavras do diabo são flores evasivas, não são flores melíferas. Nenhuma abelha, nenhum pólen. Sem saber o diabo que o mel demoliu a palavra. Acordo cedo, leio, como, bebo. Minha escrita vem depois de tudo, após sentir o clima do dia. Não redijo mediunidades ou lampejos sem céu pertencido, ainda que só tocados de leve. Acredito no tempo da palavra e em tudo o que o diabo se intromete. Não, eu não quero muito. Quero o pouco que me transforma, que me transporta. Quero o céu que é meu, o meu pedaço. E acredito na mão que, sem cerimônias, ama o outro. Ela tem uma amiga quase irmã que defende a teoria do encontro. Para ela, a felicidade é apenas uma mudança. Mudar com calma, mas mudar. Falei que a hora é a maior dor, que o tempo é longe e é tão perto do sofrer do peito. Disse ela que tudo um dia muda e a felicidade sonhada acontece. Aí pensei ser esnobe a ilusão de não crer que a vida é feita do apaixonar-se. E vi que estava certo o velho que passa. Triste é não ir. Por isso eu tenho medo de mim. Tenho medo porque não sei tudo sobre mim. Desconfio que muito de mim ainda não aconteceu, que muito de mim ainda vive dentro de mim, em sono. E cada dia é um novo susto, um novo espanto, um novo ser. Quando penso que tenho já pouco a aprender sobre as pessoas, sobre o mundo, vem alguém mais louco que eu e me diz ineditismos. Quase todo um dia investido em leitura e estudo não me diz nada sobre quem sou realmente. Mas a noite sempre vem clara de ensinamentos. A mulher que amo bebe comigo o líquido azul. E eu sei que aquela voz não é somente uma voz. É alguma coisa acordando em mim. O dia de hoje foi marcado pelo fim de mais uma tentativa. Não que eu esteja triste, pelo contrário, encontro-me muitíssimo feliz, principalmente por haver tentado. Mas é que eu tentei na esperança única de dar certo, de ajudar o outro, com o mesmo sentimento de quem ajuda o mundo a ser mais humano e menos pesado. Por motivos simples, porém conflituosos, a tentativa passou de conquista e confirmação para um esboço e um "quem sabe, num outro momento". Sem mágoas no coração, de nenhum dos lados, a vida segue seu caminho. Do meu lado, continuo o mesmo aspirante a realizador de sonhos que sempre fui. Não obstante, o sol apareceu radioso e vivaz. Parece ser o fim também daquele friozinho que cobria minhas pegadas ultimamente. Mas, do que somos feitos senão de metamorfoses constantes?! Eu mudo, tu mudas, ele muda, ela muda, nós mudamos, vós mudais, eles mudam, elas mudam... E, assim, a vida segue seu caminho. Hoje fui amor total. A tradução disto é um ato impossível. Shopenhauer estava certo quando disse que "todas as traduções são necessariamente imperfeitas". Os homens, nós homens, estão, diariamente, tentando fazer alguma espécie de tradução, sem suspeitar de que estejam apenas correspondendo palavras e idéias, e não unindo os sentimentos na direção da vida em liberdade. Eu fico aqui pensando com os meus botões se é mesmo possível interpretar sensações ou fugir da naturalidade com que elas nos chegam. Não seria melhor abrir o peito duro e permitir a entrada do vendaval da poesia da vida, sem mentir algum discurso inacabado ou manipulado a nós mesmos e por nós mesmos? Eu não sei onde estou, nem onde estive. Amanhã, quem sabe eu me encontre, porque hoje não posso mais... Hoje minha vida só não passou em branco porque tenho longe algum sentimento que não morre. Algo muito longe e muito perto que não sei bem explicar, nem quero. Estou aprendendo que é bem melhor não ficar dando explicações a toda hora. Ela hoje me deu algumas dicas preciosas de como fazer para não se perder mais e mais em si mesmo. No que concerne ao resto do dia, só mesmo uma ponte rotineira, alguns pensamentos na cabeça e muita vontade de seguir escrevendo. Muita vontade mesmo.


* Imagem: https://www.deviantart.com/sudor/art/Instant-44-132076106

Mot just



Por Germano Xavier


um texto escrito em 2008.



A luta que luto com meu corpo bem parece com a luta que luto com a minha cabeça. Parte alta de mim, gaturamo, quase um contraponto em melodia inacabada, minha cabeça é corolário, dedução coberta por uma pele lustrosa, minha crônica e meu humor e meu grande livro. E luto infinito. Um corpo-a-corpo que já não mais, ou nunca, preocupa-se com as consequências e exigências estéticas impostas pelo mundinho de já-agora-apodrecido-pela-beleza-forçada. Sempre foi de caráter secundário a publicação dos meus resultados. Para que serve um registro sobre o nada? Sim, todo mundo um dia quer provar alguma coisa a alguém. Ou quer provar alguém para alguma coisa.

E resultados sempre existem. Positivos ou não, eles sempre aparecem. Mas o que pode ser positivo? O que pode ser negativo? De quando nasci, luto com minha cabeça teimosa, manceba e também arredia. E não é diferente hoje nem será amanhã. A sensação que tenho é que a guerra que travo com este apêndice aéreo que sustento com a força de meu pescoço não termina nem terminará, pelo menos por tão cedo. Luto de suar a testa. É minha cabeça dizendo uma coisa, meu corpo pedindo outra. Mas nem sempre. E assim vai. Assim, vamos. Para onde é que nenhum dos dois sabe, ou saberá. Seguimos, e só. Somente e só, seguimos.

Hoje foi dia de receber sinais mais ou menos do tipo olá-você-está-vivo-parabéns. Um bom dia para mais um embate, mais um round. Saber até que ponto estar vivo é positivo ou negativo, eis a questão. Mas para que serve também uma dúvida? Você saberia me responder? Não queria eu a suposta melhora de vida encontrando a morte veloz numa esquina dissolvida em anelos libidinosos e fatais? Sou eu mesmo este ser que, em seus “claros?” anos de idade, ainda troca entornos de peripécias por um saudável equilíbrio relacional? E quem sou eu? Quem? Eu morro igual na idade nova. Morro. Vou escrever um poema de um fim. Talvez eu deva. Acabou aqui. Acabará? Acabamos? Somos acabáveis?

Minha vida é minha e minha morte é minha. Acabou aqui. Eu me faço. Eu me acabo. Deixo a álgebra e os cálculos em paz. A matemática de minha vida tem sido dura comigo em alguns sentidos. Em outros, consideravelmente mais dispensáveis, leve e acolhedora. Não desejei fazer conta de palavras. A poesia pesa menos que o ar. A poesia pesa mais que o ar. Mas não sabemos. Deixo tudo nas mãos do tempo que passa mudando tudo. Vi que preciso repetir isso mais vezes. Tentar explicar ou pedir explicação pode causar incômodo ou mudar a rotina dos ventos. Eu tinha ouvido conselho sobre isso. E como sabem, mudar também pode ser bom, mas nem sempre. Firmar teu pé no chão de alguma coisa e ir ao profundo daquilo é um sinal de força. Radicalismos à parte, ir às funduras das coisas é sempre mais gostoso.

Já perdi muito tempo nesta vida tentando comentar meus crimes mais perfeitos. Hoje sou outro. Ou aparento. Ainda repleto de falhas e fraquezas, mas outro. Para que servirá eu medir a onda do rio? E a tinta da mão? Ou a finura dos biscoitos? Melhor deixar o rio transbordar de qualquer coisa, sempre. E viver melhor do jeito que se sabe. Nunca me apeguei aos números, e não será agora que irei render-me a eles. Prefiro mil vezes a poesia torta de meus dedos. Ah, e como prefiro... Existem pessoas que salvam um dia que tende ao desastre.

Minha vida "bonita" não daria nem um livro policial “noir” de quinta categoria, daqueles em que nada acontece na trama que nos deixe perplexos ou assustados ou ansiosos pelo final. Eu só vivi para o gasto até hoje, fiz apenas o que pude, conheci a carne de algumas mulheres e poucas me arranharam a pele. Alguma, ou uma. Nada muito. Vida que está. Mas, como eu disse, existem certos tipos de pessoas que nos puxam o corpo, bem na hora do pêndulo que fulmina o balanço da derradeira hora, e nos estende o braço dizendo eu-estou-aqui-contigo-não-vá.

Dia marcado pela imprestabilidade das ações e pelos votos esperançosos de que o dia de amanhã seja menos criminoso comigo. "Você está chovendo hoje", ouvi até isso. Eu perguntei o que aquilo significava e fiquei sabendo que era coisa boa. Sim, talvez, poderia até ser, mas a água que jorra em mim é mais uma água salgada que doce. Não consigo parar com toda esta angústia, toda esta sensação de que o tempo apenas vai, passa e não espera. Que faço diante de tudo isso? A chuva em mim não é torrencial, é uma chuva passageira.

Ela apareceu depois de um fim de semana de sumiço. Apareceu e me trouxe novidades. Pensei que ela, não a chuva, ela, pensei que ia dizer que tinha acertado quinze números na loteria e tinha ficado milionária e que ia comprar uma casa na Toscana e que ia me levar com ela. Mas não foi nada disso e foi algo melhor. É que eu estou ficando conhecido. E como diria o Autran Dourado, reconhecimento bom é aquele que a gente sente nas outras pessoas, sem forçar a barra. Posso escrever dois contos e três poemas. Leio a terceira parte do livro do Gabo e Delgadina está amando o velho e eu posso ser mesmo um escritor. Ela acaba de fazer quinze anos de idade, o mesmo número dos possíveis números da loteria. O velho tem noventa e um anos. Faça a conta. Noventa e um menos quinze é uma vida de anos.

Mas sou daqueles que não acreditam na idade do amor. O amor é o próprio tempo e, como todos sabem, o tempo engole tudo. Dois meninos que quase não pude ver direito de tão miúdos, pretos, um nu e um com um saco branco escondendo suas vergonhas ainda não vergonhas, agachados, do tamanho da calçada em maior relevo, juntos, comendo alguma coisa de resto de festa juntos a uma pequena poça de água parada, os dois ali, pequenos cachorrinhos e a imagem da extravagância humana em contraste, o gozo pós-prazer feito do coto dos que podem e da reaplicação pelos que não podem.

Eu tinha visto o "bicho" de Bandeira, ou melhor, os bichos, e desperdicei a chance de registrar aquilo para o mundo. De qualquer forma, a imagem está guardada em mim e me faz pensar em algumas coisas. Não consegui continuar o passeio e segui para casa. Pessoas matam pessoas, eis uma afirmação. Tudo certo, tudo errado. Confesso a você que me matou ontem que sou este ser quase desprezível e imprestável perante o belo e dinâmico e funcional mundo atual. Lagarta que sou, o voo me parece apenas um longínquo desejo.

Acordo e vou aos lugares e você que me matou ontem sabe bem os lugares que visito. Quando iniciei um projeto de vida com você que me matou ontem, quis mostrar a você que sou um ser desprezível ou quase-nada perante o belo e dinâmico e funcional mundo atual. Engraçado como o pensamento toma ares de verdade e consegue alcançar patamares de altura tão elevados. Sem esperar, tinha já eu confabulado preâmbulos também atabalhoados e, por vezes, modulares diante da sua mágica figura que me matou ontem.

No meu inventário, marquei com um xis a palavra qualquer. Uma palavra que parece ser mais forte que o próprio amor. Mas você me matou ontem e você também sabe que seres desprezíveis ou quase-isso não morrem assim do nada, sem razão menor para que sejam. Esquece-se que sou uma fênix e que minhas flamas não se avulsam assim. Digo a você que me matou ontem que, caso queira matar-me de verdade, basta algumas palavras e te desejarei um belo resto de vida. Corpo morto.


* Imagem: https://www.deviantart.com/oo-rein-oo/art/Some-Dance-To-Forget-409834519

domingo, 23 de setembro de 2018

Se o leitor não vier



Por Germano Xavier


"Escrever é que é o verdadeiro prazer; ser lido é um prazer superficial."
(Virginia Woolf)


mais um texto que nasceu dentro de uma Toca Literária 
(oficina de criação literária liderada por Marcelino Freire)



Se o leitor não vier, não haverá problema maior. Melhor ainda dizer, se o leitor não vier não haverá problema algum. Não haverá dor nem sentimentalismos exacerbados de minha parte. Se o leitor não vier, o escritor que me habita seguirá tecendo as manhãs em forma de palavras. Se o leitor não vier, o poeta em mim continuará sendo o mesmo poeta que fez com que eu, homem comum que também sou, despertasse para o poder transformador das artes. Não tenho como divisar tal perda, meu nobre amigo. Se o leitor não vier, toda palavra se manterá viva, o verbo conjugará todos os sentidos possíveis e os impossíveis, a humanidade permanecerá a conhecer as diversas faces do bem e do mal. Nada poderei fazer se o leitor não vier. Repito: Nada! O livro, o texto, a narrativa, o enredo, as personagens, lá estarão elas, mais vivas a cada dia, mais esperançosas a cada aurorar. Não tenho o que descrever se o leitor não vier, com sua fome de saber e sua sede curiosa. Se o leitor não vier, essa massa de sensações a qual me junto todas as vezes em que abro os meus olhos fará, como sempre fez, parte do mundo e ele tornará a rodar e rodar e rodar. Se o leitor não vier, o moinho não parará de girar suas pás, muito menos a gangorra encerrará suas descidas e subidas. Nenhuma frequência de prazer oscilará se o leitor não vier um dia. Nada, absolutamente nada será eliminado do meu caminho caso o leitor não apareça. Poderemos sobreviver se o leitor não vier. Poderemos construir elos, reconstituir, conservar, desenvolver, alterar, formar, preservar. Poderemos tudo se o leitor insistir e não vier. Poderemos supor e acabar, adequar novos fins ou meios, ou ao menos admitir alguma fraqueza ou franqueza. A vida continuará difícil para o povo, com dores, decepções e tarefas insolúveis. Se o leitor não vier poderemos até suportar, divergir, insensibilizar. Se o leitor não vier, não haverá discórdia. Vale salientar: se o leitor não vier não haverá violação de nenhuma espécie. Não haverá falta, é bom que se entenda. Se o leitor não vier, enfim, não haverá ganho ou pormenor. Se o leitor não vier, eu teimo e reitero, toda palavra se manterá vivaz e buliçosa, o verbo contará as sortes e os destinos. Minha mão será minha espada no tempo e sangue verterá ao sol se o leitor não vier. Como sempre, para mim. E a respeito disso nada poderei fazer. Repito: Nada!


* Imagem: https://pixabay.com/pt/homem-velho-%C3%ADndia-sadhu-viagens-1145467/