quarta-feira, 8 de abril de 2020

As máquinas de costurar famílias



Por Germano Xavier


Um fato me chamou a atenção hoje quando me coloquei a pensar sobre coisas alheias e, por conseguinte, resolvi sentar e escrever este texto: as costureiras e as máquinas de costura sempre estiveram muito presentes em minha vida ou na vida das mulheres de minha família. Sim, das mulheres. Homens não, de jeito nenhum, é preciso que se diga. Praticamente todos os parentes (mulheres) mais próximos tinham alguma relação com o ato de costurar ou possuíam máquinas de costura em seus aposentos, para fins particulares de produção em pequenas quantidades ou simplesmente para efetuar reparos e até para dar vazão à imaginação na confecção de vestimentas próprias. 

Lá em casa mesmo, minha mãe, muito vaidosa, buscava sempre a ajuda de costureiras na cidade para apurar as linhas de peças de roupas as mais diversas, muitas delas criadas a partir de sua própria inventividade. Era comum a rotina quase semanal de ir visitar uma costureira ali nos idos dos anos 80 e 90 do século passado, exato tempo em que se passam estas minhas deambulantes recordações. Nas proximidades da casa onde morei até os 14 anos em Iraquara, na Bahia, havia duas costureiras que executavam com maestria as quase geniais e ousadas ideias maternas acerca do vestuário feminino. Existiam outras costureiras na pacata cidade, mas Gilda e Vera eram as preferidas da minha mãe. Lembro com carinho de toda aquela movimentação. 

As máquinas de costura, historicamente, acabaram por representar dois lados de uma paradoxal moeda social. Ora funcionaram como importante passo para a autonomia econômica das mulheres, ora representaram mais um empecilho para as suas respectivas emancipação e socialização. A máquina de costura é uma inovação oriunda da Revolução Industrial e as fábricas têxteis inicialmente simbolizaram, através do uso deste objeto, a possibilidade de criação de vínculos empregatícios para várias mulheres. Todavia, logo o esmagador sistema fabrico-patriarcal encobriria tal feito, substituindo um possível avanço por segregações ímpares, monitoramentos excludentes dentro e fora das próprias fabriquetas, desigualdades funcionais e salariais, bem como assédios sexuais por demais inadmissíveis. 

Enfim, as máquinas de costura não trouxeram consigo a libertação das mulheres, tão quista e possivelmente prometida. A vigilância era tão grande, que até setores ligados à medicina criaram teorias no mínimo nefastas para dificultar o acesso à este "utensílio de libertação" feminina, utilizando-se de discursos do tipo "a trepidação das máquinas de costura pode levar a mulher à infertilidade" ou coisas semelhantes. Sem dúvida, esta é uma matéria que merecia uma maior investigação por parte de nós, estudiosos e curiosos de plantão. No Brasil, costurar sempre foi tipicamente feminino. Há relatos de escravas costureiras já desde a época colonial, bem como de senhoras mais bem afortunadas. 

Minha avó Isaura possui uma máquina daquelas Singer dobráveis até hoje. Uma verdadeira relíquia. Recentemente, minha mãe comprou uma moderna e portátil para ela. Na família do meu pai, Tia Estelita se destacava. Tinha um quartinho com máquina e muitos rolos de tecido. "Costurava para fora", diziam. Mas costurava "para dentro" também. Lembro bastante de suas roupas de "senhora já viúva"(é possível dizer algo assim?). Algumas mulheres àquela época possuíam um jeito particular de se vestir. Tia Estelita vestia suas próprias ideias. Era mulher forte, destemida e resoluta. O quarto de costurar dela ficava bem no cômodo que dava para a rua. Aquela posição facilitava a entrada e saída de clientes. A máquina de costurar, para a minha tia, significava também proximidade e afeto. Sabia que ela também costurava roupas e cobertores para doar aos mais necessitados. Era bonito demais para a alma ver tudo aquilo. 

Hoje, por acaso do andar natural da vida, vim parar em uma região onde a máquina de costura tem um papel fundamental para o cotidiano de milhares de pessoas, em especial para a vida das mulheres. Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe, principalmente, são cidades pernambucanas que fazem girar altíssimos valores em dinheiro por conta da fabricação e da comercialização de produtos têxteis e de seus derivados. A integração homem-máquina de costura nessas redondezas é percebida facilmente nas ruas sob diversos prismas analíticos, assim como é bastante perceptível a dureza que é ter de lidar com as agruras deste mercado de trabalho, que entre as agulhas da informalidade e as linhas da necessidade, costura uma esperança humana num pano rústico de autocomiseração, labor e resiliência.


* Imagem: https://c1.staticflickr.com/3/2464/3855514241_2aa317a9c3_b.jpg

Nenhum comentário: