segunda-feira, 15 de outubro de 2018

São centauros meus cavalos (Parte IV)



Por Germano Xavier



Ouvi dizer que ela estava sentindo uma angústia, uma dor muito profunda. Eu não sabia que as pessoas sentiam dor. Imaginei ser o único. Ela resolveu telefonar para mim. Uma conversa rápida, cinco minutos ininterruptos. Cinco minutos dum aconchego em minha alma. Desejou me ver. Pediu. Veio, de ônibus. Eu ainda estava por perto. Não havia sido a despedida, aquela. Sempre quis demonstrar independência. Na verdade, nunca conseguiu fugir da saia da mãe. Uma burguesa. Certamente. Eu era diferente. Havia algo de diferente em mim. Não olhou para o meu rosto. Silenciosamente, oito ou nove passos, a geladeira. Bebeu água. Sentou-se. Abriu a pequena bolsa de couro sintético e retirou de dentro uma cartela de comprimidos. Não eram comprimidos, eram cápsulas. Estava com febre, uma moleza no corpo a dominava. Eu devia ser muito diferente. Colocou o remédio na boca, bebeu um gole d'água. Baixou a cabeça. Todos estão de mau humor, pensei, até os ratos. Eu havia alugado um quartinho no meio da cidade que logo iria ser deixada para trás. O carteiro passou e deixou duas correspondências junto à porta que dá acesso ao mundo. Eram dois envelopes brancos de tamanhos diferentes. Apenas observei os remetentes, assim como os endereços deles. Achei melhor não abri-los, apesar de saber que fazer isso não implicaria em absolutamente nada. Os antigos moradores da casa onde vivi meus últimos dias atualmente não passavam de fantasmas. Assim eu imaginava. Com o passar do tempo foram chegando mais correspondências. Eram muitas, de variados tamanhos e cores. A maioria com logomarcas impressas de empresas e bancos. Fui obrigado a reservar uma parte do velho guarda-roupa para organizar as missivas. Eram muitas. Onze dias se passaram e nada dos proprietários da casa. Ficaram de vir pegar o adiantamento pelos dias que eu ficaria lá, mas. Só consegui ouvir a voz de uma mulher que naquele dia havia combinado comigo que iria deixar as chaves com a vizinha, e que eu não me preocupasse. Cada vez mais curioso, eu relutava para não cair na tentação de dar uma espiada. Foi que não suportei e decidi abrir uma. A primeira de todas que eu havia guardado. Era um envelope branco com as bordas coloridas. Rasguei o papel silenciosamente. Helia estava ao meu lado, pálida de febre. O barulho do crepitar do papel poderia assustar os fantasmas. Retirei a folha de dentro e percebi que nada havia, nenhuma palavra, nenhum desenho. Somente a brancura do papel. Abri a segunda e lá estava, apenas o branco. A terceira, a quarta, a quinta... Só o branco. Não havia nada, mas o carteiro, sempre que podia, deixava uma ou duas correspondências na porta da casa onde moro momentaneamente. Eram de variados tamanhos e cores os invólucros. E o mundo lá fora continuava a passar. Nem com evento de tamanha estranheza Helia conseguiu fazer cara de espanto. Ela continuava absorta, sentada sobre sua perdição em tons rosáceos. Há exatos sete dias desejou sair de sua casa, de seu lar, verdadeiro?, de sua cidade. O que realmente importava para ele era o fato de ter posto suas pernas em fuga, mesmo em pensamento. Tanto que idealizei, tanto que briguei comigo, que lutei. Ele tinha saído daquele lugar infernal, lugar onde tinha deixado de se ser, local onde começava a sua vida prostituída, sua parcela vendida, seus setores mercadológicos, como impressos em papel jornal. Pela primeira vez sentia aquilo dentro dele, uma energia penetrante, reveladora de suas maquinagens potentes, antes enferrujadas. Helia! Vespa sem dó, sem pena, foste tu o rumo todo de minha perdição!, regurgitou ferozmente para si mesmo, olhando para a figura desalmada da criatura feminina que pendia para um desarme total. Mulher que acabava por encadear desde a mais insignificante manifestação utópica por liberdade ao maior grau de lucidez nas ações direcionadas a si mesma. Para ela, os sonhos eram como águas de excelência, águas que se fundiam num convite desavisado, vaga-lumes ao entardecer. Ele - eu - caía em suas lanças, em seus arcos, quando dúvida, quando devaneio. Por que, Helia?, perguntava-me, inocentemente. Aquele convite irrecusável feito pelo bater de asas daquela mulher, agora ex-amante, ex-amor, ex-mulher-mais-linda-do-seu-mundo, ex-tudo, sem pressa de se chegar ao fim, tão vagos eram aqueles passos, os dela, sutis, resumidos de direito numa incandescência mágica. Havia pedido que ficasse, que por favor não fosse embora, com uns olhos que prejudicavam as mais rudes emoções. Ele sabia que o passado era uma usina, uma usina que fervia. A madrugada, cindida, teimava.


Imagem: https://www.deviantart.com/kpavlis/art/The-runner-139501905

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