quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Fone e a Copa do Mundo


Por Germano Xavier

“Fone” não era nada, mas “Fone” também era tudo. O "nada" a que me refiro está ligado a laços sanguíneos, parentesco ou qualquer coisa que dialogue com árvores genealógicas. Já o "tudo", por ora eu explico.

Foi num dia muito chuvoso que o conheci. Resolvi jantar em um restaurante que ficava a quatro quarteirões da minha casa, quando fui surpreendido, na volta, por um pé-d'água daqueles nada econômicos. Estávamos completamente encharcados de cabo a rabo, sob o toldo de uma loja, na principal rua do centro de Iraquara. Ele, com os cabelos já grisalhos escorridos pelo rosto moreno e com sua inseparável bicicleta super-hiper-mega-enfeitada, trazia consigo, embrulhado cuidadosamente em uma sacola plástica, o que me pareceu ser uma pequena agenda na cor preta.

Confesso que fiquei muito curioso em saber o que guardavam aquelas páginas, tão salvaguardadas por aquele senhor que devia contar os seus 60 anos de idade. Ficamos ali por longos minutos, entre receios e ansiedades. Creio que foram quase duas horas e, não obstante termos iniciado um diálogo, nossa conversa não apontou nenhuma pista para as tais anotações.

Finalmente, o temporal havia cessado. Resolvemos partir para os nossos destinos. Durante todo o percurso, feito a passadas largas e velozes, pois um chuvisco ameaçava se transformar num temporal, repletos de trovões e relâmpagos, percebi inúmeros barbantes preenchidos por bandeirolas nas cores verde e amarelo esticados pelo chão ou, ainda, enrolados em árvores e nos fios da rede de energia elétrica.

Era tempo de Copa do Mundo de futebol e, a esta altura do campeonato, todos os logradouros, becos e vielas da cidade encontravam-se enfeitadas e coloridas com os tons do uniforme da seleção canarinho. Como era bom se sentir vivo e fazer parte de toda aquela corrente positiva, de todo aquele espetáculo de grandiosidade e beleza. Apesar do visível estrago causado pela chuva, nada faria com que aquele sentimento de alegria e felicidade perdesse um pouco do seu brilho. Certamente, no outro dia um mutirão seria formado no intuito de reerguer as bandeirinhas e repintar, agora com demãos ainda mais encorpadas, os muros e os pisos que ficaram descaracterizados devido à ação da água que batia contra as paredes.

O torneio mexia com toda a nação, ou melhor, com todas as nações do mundo. E mexia com Iraquara, e muito. Trinta e duas seleções disputando o mais importante evento esportivo do planeta. Trinta e dois países lutando uma guerra pacífica, onde o vitorioso não é aquele que devasta um povo, extermina centenas de famílias ou arrasa os sonhos de milhares de crianças, mas sim o que mais balança a rede do adversário, fazendo nascer milhões de sorrisos orgulhosos por terem nascido justamente naquele país brioso e triunfante.

Encontrar o sono, naquele dia, tornou-se uma tarefa quase impossível. Fiquei em meu quarto, com a lâmpada desligada, matutando sobre o teor dos registros que preenchiam os brancos daquele ementário misterioso. A imaginação correu solta. Não havia limitações ou fronteiras para qualquer pensamento hipotético.

Após várias cogitações, decidi acreditar que “Fone” era um cientista social, um antropólogo ou qualquer pesquisador ligado a esses segmentos. Sim, esta era a melhor forma de eliminar todas as minhas titubeações concernentes ao homem e sua enigmática caderneta. Deveras, seria uma atitude demasiado inteligente da minha parte pensar assim.

Então, só me restava elaborar as devidas conclusões. Talvez aquele homem estivesse concatenando sobre como a rotina da vida de todos os iraquarenses muda drasticamente durante este ciclo de jogos. Seria ele integrante de um destes órgãos internacionais que a cada ano injetam novos dados sobre o andar das civilizações?, como, por exemplo, mortalidade infantil, expectativa de vida, explosão demográfica, analfabetismo, índices de pessoas infectadas pelo vírus HIV e demais moléstias que, infelizmente, ainda assolam várias regiões...

Talvez fosse esse o meu desejo mais profundo e sincero. É que tudo fica ofuscado quando chega esta época, até mesmo quando olhamos por detrás dos muros iraquarenses. As mazelas e os fantasmas que rondam a nossa realidade custam a aparecer. Parece que tudo vai de vento em popa, quando na verdade outros milhares choram as suas misérias e fomes.

Minha vontade era a de que existissem milhares de pessoas como “Fone”, trabalhando arduamente em prol de um mundo melhor, mais humanizado, menos desigual, enquanto multidões se divertem e se lambuzam em esplendores artificiais e quase sempre mecânicos. Apesar de, por inúmeras vezes, ter ouvido falar que ele, o “Fone”, havia se estirado na pista com sua inseparável bicicleta a fim de apressar as horas de sua vida. Que seja força da imaginação, não importa. O que interessa é a certeza de que já havia sido dado o primeiro passo, já que toda atitude humana tem de, antes de qualquer coisa, passar pelas aléias mais arborizadas de nosso universo ficcional.

2 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

":iconcarnedepsiquiatrico:
Bicicleta by ~carnedepsiquiatrico"
Deviantart

Artes e escritas disse...

Essa é do ET: Phone Home. Uma crônica suave e antiga. Um abraço, Yayá.