Por Germano Xavier
Tenho motivos suficientes para só pensar em mim. Saí meio mal da sala de cinema. Um misto de sonolência e ânsia de vômito. A história por trás da história me fez desacreditar no poder transformador do ser humano. Foi como viver o Mito da Caverna; pele e osso. Não faço a mínima idéia de onde estou. Não sei se sou um dromedário, se sou um furão ou se sou um homem. Alguém assassinou o real e eu passo o dia perguntando “quem?”. Do momento anterior à minha entrada no cinema, guardo apenas a lembrança de alguns semblantes, de algumas vitrines e de algumas cores. Lembro muito bem de uma parede amarela. Como também lembro de uma bunda gostosa grudada em uma mulher sem gosto. Eu não matei a realidade e não quero sofrer por isso. Tenho seis livros publicados e dois no prelo. Jamais sofri os amargores da crítica. Eu sempre soube sobrepujar a virulência das críticas e dos críticos, nem por isso sofri afetação de me comer, canibal que era, dizendo sempre que era merda o que eu mesmo escrevia. Aprendi cátedra de criticidade pois viajei no Pequod. Aventura ultramarina, navio baleeiro, Leviatã do mar, féretro que bóia, vida à deriva. Meu obituário que escrevo assim que ponho os pés no chão quase sempre gelado dos lugares que visito. Sou sintaxe intrincada antes de querer ser ou parecer um bom samaritano. Minha beligerância está em me querer guerreiro. Você diz que passa a vida beijando a boca do que não serve, para eu aprender manha de eterna adolescência. Você que apenas foi e que já não é mais. Sou monomaníaco e não escondo. Mantenho relações homoeróticas comigo mesmo. Minha outra metade também é homem e meu egoísmo é aberto. Dizer amo você, minha outra metade, é quase suficiente. Sou labirinto sem centro, escrito de Borges, vindo dele, amando. Sou o tom azul do céu da cidade e eu sei que cidades foram feitas para matar os homens. Cidades são tudo o que não sonho. Um poeta muito triste, alemão, escreveu isso. Era maldito. Matou gentes. Ele, sim, matou a realidade. Mas eu não. Encontro-me embaixo duma árvore sem frutos e o regolito de meu corpo é seco e igual. Eu quase sempre não me acho em procuras que empenho. O outro de mim, apesar de estar e viver em mim, é sempre fuga. É seco, mas eu tenho um livro, e livros matam fomes. Ando com meu caderno, duas esferográficas pretas e um orgulho em meus dentes amarelecidos. Sempre ando com um papel no bolso, pois acredito que um dia eu irei precisar dele para conquistar uma garota. Garotas escrevem diários e gostam de papéis. Mas, ainda assim, preferem palavras. Quanto à cor das canetas, não sei explicar este meu gosto pelas de tintas enegrecidas. Gustibus non dispuntandem, diria meu professor de Latim, um grande homem. Ainda hoje lembro, e eu tenho memória!, não sou mais o rapaz tonto do fim do longa-metragem, das aulas nas noites sem estrelas e sem paixões. Suava feito a tampa de uma panela em dia de reunião familiar dominical. Usava lenços para secar o excedente, que brotava de sua tez morena e repleta de pêlos. Eu nunca usei lenços. Sempre gostei de babas. Talvez a medicina explique o fato ou, então, é tudo reflexo de uma profissão sacrificante: a de professor. Patologia a minha? O certo é que nunca suei daquele jeito tão, digamos, jorrante. Nem mesmo quando comi a boceta da garota do 802, no centro da capital do meu estado e no penúltimo andar do prédio. Confesso que suei, mas nada se compara ao meu professor de Latim. Na verdade mesmo, a cidade onde estou não é minha de origem. Minha e de origem? Estranha conversa. Nasci e fui criado num pequeno lugarejo com pouco mais de quinze mil habitantes. Por dentro, sei que nenhum homem possui a sua cidade. Cidades são mães, que nos parem e que são desgraçadamente abandonadas pelos seus filhos, até antes de se tornarem adultos. Eu já escrevi isso em algum lugar. Hoje, já com suíças negras na lateral de minha face, não posso mais esconder a saudade que tenho de minha infância distante. Aproveitei-a ao máximo, mesmo sendo excessivo ou, às vezes, tímido e recluso. Cada um tem uma maneira específica de aproveitar os seus momentos. Meu maior divertimento era ir à casa da Érica. Isso é apenas coisa que passou. Sou um ser nostálgico. Admiro velhices. Érica pode ser muito bem o nome que resume toda ou boa parte da minha infância. Era sagrada a tarde em sua companhia. Quando isso não acontecia, sentia que tinha envelhecido uma semana e que, com a coisa funcionando daquela maneira, acabaria não vivendo muito tempo. Havia fatores que ajudavam na efervescência de algum sentimento extra. Eu gostava dela, é óbvio. Já valia por tudo. Érica jamais desconfiou que eu amava aquelas pernas enormes que iniciavam nas curvas deliciosamente arredondadas de sua bunda gostosa. Tinha um corpo esguio, seios mínimos, mas com bicos proeminentes. Não sei as vezes em que fui recebido por ela e com ela vestindo uma camisolinha cor-de-rosa transparente, onde se via facilmente aqueles mamilos negros e rijos de menina adolescente. Eu ficava com vontade de chupá-los, de lambê-los, colocá-los inteiros na boca, sugá-los. Quando jogávamos videogame, ah... era um castigo! Aquelas duas laranjinhas saltitando, balançando no campo adversário, como se disputasse comigo uma partida sem tempo. Aquilo me desconcentrava e isso dispensa comentários sobre quem terminava vencendo as partidas. Eu adorava aquele jogo e, principalmente, perder para ela. Nunca disse a ela o quanto eu a queria. O amor, naqueles idos, não passava de uma esperança de retorno depois que a tarde caía e se ia quando Érica fechava o portão. O resto da noite passava sonhando no dia próximo que viria ainda mais enlouquecedor, ainda mais fantástico. Érica era fogo. Faz mais de nove anos que não a vejo. Últimas notícias me disseram que estaria pelas bandas do sudeste. Coisa de separação, pai e mãe. Adultério. Você sabe que tudo nesta vida se acaba, que tudo tem um limite. E o que acaba não era pra ter começado. Até o amor. O amor, como eu disse, não passa de uma esperança perdida nas mãos do que é apenas desventura. Como gostei. Talvez tivesse sido este meu medo absurdo a essência para estas minhas palavras partidas. “Queria tocar piano, acho lindo uma menina que sabe tocar piano”, dizia ela, apontando para uma fotografia que estava sobre a parte superior da estante e que revelava sua tia em um enlace quase carnal com um velho piano branco que, segundo ela, pertenceu ao avô. E todo dia eu ia e voltava e o céu sempre perdia um de seus azuis e eu sentia um amarelo-mostarda cobrir a minha já natural apatia. Era quando, na esquina que dava para a rua dos alfandegários, encontrava um velho de aspecto rústico, encostado num latão fedido. Estava sempre com muito frio e ele gemia como geme um animal em dor. Olhava o rosto coberto por uma fina camada de uma coisa verde, gosmenta e bastante pegajosa. Eu duvidava da realidade e o real me sufocava. Iniciava uma conversa rápida para saber o que ele estava sentindo e do que precisava, mas ele não dizia nada. Eu forçava. E nada. Mais uma vez. Nada. Tentei mais uma, mais uma e, depois de quase desistir, ele, com a face molhada por lágrimas cortantes e estranhas, dizia-me com a voz tropeçada em soluços: “é tudo culpa desse cão, que nos persegue quando ludibriados por faces angelicais”.
2 comentários:
Crédito da imagem:
"Loucura II by ~FlippaNeko"
Deviantart
os artefatos mudam de mãos, não mudam as quatro estações e a forma forte e direta como escreves.
em um desfecho sensacional amigo...
e nós resta o engano "com faces e olhares angelicas"...
abraços fartos
beijo e uma fantástica semana pra ti...
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