domingo, 13 de janeiro de 2013

O assassino do silêncio


Por Germano Xavier

A hora do fazer o atiçava. Era quase um maníaco. “Um homem estando velho é capaz de produzir filme indiano com ator polaco no papel principal, que usa peruca, no início da película, e em tom acaju”, dizia sempre. Era um suplício cada apresentação. Apresentar a explosão que é a vida é sempre um ato de porra-louquice. Sofria, mas gostava. “As vésperas nos fazem envelhecer”. Esperas e espelhos que tanto amava podiam ser vistos muito facilmente por toda a extensão do camarim. Alguns cinzeiros com cinzas de preocupação. A vida tinha passado muito rapidamente para ele. Pó, rouge, pasta, pincel e muita cor. Dez ou doze perucas, manequins enfileirados e todos parecem robôs. Gostava de seu aspecto nas vésperas e nas antevésperas. Ficava se olhando, se amando. E se odiava também.

Dado à sétima arte, Osman tinha pelo teatro um amor adolescente. Apaixonite aguda, daquela que faz chorar na primeira desilusão. Desilusões que foram para sempre. Psicólogo por formação, o ator de 75 anos atuava e pesquisava sobre teatro com o mesmo gosto. Era mesmo prazer. “Amo o que faço. É minha casa!”, fulgurava vozes. Comprava livros sobre teatro, lia peças, gostava de Beckett e Brecht e de café pelando de quente. Não poderíamos considerá-lo um profissional bem-sucedido naquilo que mais gostava de fazer, mas aprendeu desde cedo a não aceitar migalhas. Não se interessava em comer tudo. Para ele, restos sempre tinham de sobrar. Entrou para a escola no tempo certo, apesar das dificuldades da família, e serviu às forças armadas por dois anos. Lá aprendeu a disciplina e o rigor da vida. Não precisou dar o rabo para nenhum de seus superiores. E por nunca obter a consagração ou promoção das insígnias condecorativas, Osman foi mesmo ser ator e viver de teatro. Na bem da verdade, Osman pouco se importava com medalhas de honra ao mérito. Queria mesmo era ser luz, clarão. E sua vida se confundia com uma encenação, cortinas abrindo e fechando, atos e atos, catarse e platéia em frenesi.

Todo dia, geralmente pela manhã, atravessava a rua Edgar Chastinet, vestido até às botas com roupas e mochilas e trapos pendurados por cordinhas. Fazia isso sempre, pois sabia se virar na vida e não cair da gangorra, como sabia que próximo ao armazém do seu Liosvaldo, havia uma velha casa, cujo dono não conhecia. As paredes brancas, já meio amarelecidas pela ação do tempo, contrastavam com o interior sombrio. Tal afirmação construía, apesar de jamais ter entrado naquela residência, mais devido as enormes janelas de madeira que se encontravam sempre abertas e que, portanto, fazia tudo se tornar visível quando olhado do lado de fora da casa. Não existia muro, mas a casa era enorme. Simples, porém enorme.

“Eu não sou a única pessoa que não conhece o morador dessa casa. Creio que ninguém o conhece. Até bem pouco tempo pensei que aquela casa estava era mesmo abandonada. Talvez o dono tivesse ido morar em outro lugar ou, talvez ainda, o proprietário fosse um homem solteiro, sem filhos, que morrera de alguma doença culpa da velhice, deixando sem herdeiros a sua morada”. As crianças, que saíam à noite para brincar de esconde-esconde, diziam que aquela casa era mal-assombrada, que era possível escutar alguns barulhos estranhos depois da meia-noite, entre tantas outras coisas.

(...)

Osman era muito cuidadoso para com julgamentos e opiniões. Nunca foi de futricas nem de paparicos sem pé nem cabeça. Adorava observar e ver e ver e ver. Dizia sempre que observar é uma virtude do verdadeiro e grande homem...

“Susto mesmo foi quando vi pela primeira vez, depois de todos estes anos, um vulto bem nos fundos daquela antiga construção. Na hora, era quase o sol nascido. Eu estava do outro lado da rua. Esperei um carroceiro passar e fui me aproximando, meio que sorrateiramente, daquela casa misteriosa. Já na outra margem da rua, andei disfarçadamente sobre a calçada e, de maneira ainda mais dissimulada, coloquei-me a espiar delicadamente todo o útero daquela velha mansão. De chofre, veio-me outro sobressalto. A casa estava completamente mobiliada. Eram peças de mobília bastante trabalhadas, desenhadas, fornidas e quase todas de madeira. Deviam ser seculares. Um enorme sofá negro tomava quase toda a extensão da sala. Mais adiante, sob um rutilante lustre de cristal, enxerguei quatro estantes repletas de livros e uma escrivaninha de mogno. Foi tudo o que vi. Muita coisa estagnada, muitos objetos estáticos, imótuos, mas nenhuma pessoa, nenhum vulto, nenhum fantasma... Aí chamei por Deus e perguntei “como podia?”... “de onde vieram todos aqueles móveis, e quem seria o leitor de todos aqueles livros?”...

(...)

Osman sempre gostou do mistério. Era um adorador das coisas mais difíceis e mais inquietantes. Osman era homem de teatro, sem nada de óbvio, monitor de improvisos, professor de horas e instantes.

“Voltei para casa decidido em retornar à rua da casa misteriosa para, quem sabe, tentar resolver o enigma. O relógio marcava nove horas em ponto. Caminhei tranqüilamente para evitar qualquer suspeita. Confesso que tenho medo do escuro e que, por algumas vielas, saí em disparada. Minha casa fica a uns quatro quarteirões daquele logradouro, daquela minha curiosidade, de toda aquela apreensão. Chegando lá, um terceiro assombro. As janelas ainda permaneciam abertas. Aproximei. No fundo, uma lâmpada clareava uma velha máquina de escrever. Havia um pão pela metade e uma xícara de café. Todo o restante da casa estava coberto por uma fina camada de penumbra. Logo após um olhar superficial percebi, numa análise detetivesca e mais profunda, uma tênue e quase viva linha de fumaça saindo de um cigarro fumado havia pouco. A partir daquele instante, imaginei a possibilidade de haver uma pessoa ou qualquer uma outra criatura viva dentro daquele aposento”.

(...)

E Osman lembrou dos contos do Poe e dos contos fantásticos do Maupassant. Havia lido quase tudo desses autores. Desde o poema fatal do pássaro negro de mau agouro do inglês, ao aterrorizante Horla. E lembrou de tudo e pensou que a fantasia é mesmo muito mais real do que a realidade... O véu da noite tornava o céu escuro e com um certo ar fantasmagórico, devido às faixas vermelhas de nuvem que cortavam as distâncias mais horizontais. Talvez fosse nessas horas do mundo que, no Empíreo, morada celestial divina, Deus recolhia os seus lençóis brancos e se descobria sonhando sobre a maciez de um nimbo.

“Olhei para o meu relógio. Era já madrugada e as janelas teimavam em permanecerem abertas. Tudo como numa manifestação provocativa. Qual a razão para o amor e para o ódio que desenvolvo pelo escuro? Nunca imaginei que janelas abertas e escancaradas pudessem nos defender de alguma ação marginal... sei, mas o marginal, naquela situação, era eu. Toda a quietude do lugar me sufocava. Estava pensando em ir embora. Só um louco como eu faria o que estou fazendo. Foi quando um ancião, aparentando seus setenta e poucos anos, desceu os degraus de uma pequena escada que havia ao lado de uma das estantes onde ficavam os livros, a maioria peças teatrais. O velho vestia uma camisa de algodão de cor branca, uma calça amarronzada e uma sandália de fivelas. Passou a mão na testa e sentou-se na cadeira da escrivaninha. Após um instante de reflexão, o velho pegou de uma folha de papel, alimentando a máquina. Depois foram teclas batidas, batidas de um jeito silencioso e amável, como se as teclas fossem feitas do vidro mais frágil. Os dedos do velho pousavam sobre as peças metálicas com uma suavidade inefável. Ele devia ser um escritor. Pessoas que gostam de escrever são mesmo assim, taciturnas e caladas, donas de uma misteriosidade inabalável e de solidões inenarráveis.”

(...)

Osman não gostava de textos que não podiam ser vividos dentro de um teatro. Chamava esses tipos de “textos mortos”. Lia e sempre necessitava ver um ator ou uma atriz sendo aquela personagem, repetindo aquelas frases, aqueles monólogos que lia no papel. Osman precisava viver, sempre.

“Fiquei ali durante quase toda a madrugada. Fui para casa. Estava com muito sono. Mas aquela situação não saía de minha mente. Eu tinha de desvendar aquele mistério. Quem era aquele homem? O que ele fazia ali? Por que ele vivia trancafiado naquela casa? E porque ele não fechava as janelas, mesmo quando era noite?”

(...)

Osman era do tempo da vida. Não sabia morrer. Tinha sorriso escondido, mas alma de quem quer a felicidade. E desejo maior é esse, causador de sonhos e sonhos. “Sonhos são peças humanas em teatro de mundos”, sempre mais.

“Repeti a rotina dessa minha espionagem por quase um mês inteiro. Todo dia era tudo igual. Um velho perto dos oitenta anos de idade, uma velha máquina de escrever, alguns cigarros fumados na sala de estar, pães dormidos pela metade e algumas xícaras de café espalhadas pelos cantos. Aquilo começou a me aborrecer. Eu não conseguia entender como uma pessoa pode viver assim, se podemos chamar isso de vida. Como pode uma pessoa renunciar a vida de tal maneira, mesmo que essa mesma pessoa já esteja em seus últimos dias?!”

(...)

Osman tinha paz e era do tempo. Se chovia, era gota d’água. Se sol, era raio e queimava. Não tinha dentes bons, mas era bom escravo de si mesmo e das artes. Aliás, amava.

“Ocorreu-me uma vontade insana de matar aquele velho. Ele já não devia querer mais a vida. Talvez esperasse que a morte viesse lhe beijar a face na sempre próxima lua cheia”.

(...)

Passaram-se alguns dias. A casa continuava com suas janelas abertas.

“Eu estava decidido. Iria tirar a vida daquele pobre homem. Talvez, agindo assim, estivesse eu fazendo um favor. O velho deveria ser um homem frustrado no amor, em sua profissão. Talvez pensasse em suicidar-se, mas não tinha força para se jogar de uma ponte ou de um prédio qualquer. Nunca tive tanta certeza em minha vida. Estava decidido a ceifar a vida do velho e, para isso, resolvi pegar o revólver do meu irmão emprestado. Tinha uma certa prática, pois sempre gostei de treinar a pontaria em garrafas de vidro, no quintal de casa. Só para não perder a noção aprendida em quartéis e batalhões por onde passei. Eu estava deveras resoluto quanto ao que ia fazer. Certamente, seria um ato de total loucura, ou quem sabe não”.

Osman era homem de matar o seu tempo, mas nunca tivera coragem de burilar em relógios. “Seria muita ousadia”, confabulava.

“Arrumei tudo, até a data da morte do velho. Nada poderia dar errado naquele momento. Tinha de ser apenas um tiro, seco e certeiro, na calada da noite. Não podiam existir testemunhas.”

(...)

Era chegado o dia. Manhã do dia 23 de setembro.

“Aprontei tudo. Pacientemente, limpei o canhão do revólver. Não podia falhar. Eu não podia falhar.”

Osman era, por vezes, seu próprio texto, sua própria palavra.

(...)

Noite. O relógio marcava dez horas. Estava tudo pronto.

“Eu jamais tinha matado um ser humano. Naquele dia eu passaria a ser um assassino, mas ninguém iria saber. A cidade dormia. Andei. Alguns quarteirões adiante e logo vi o local do crime. Rua Edgar Chastinet. Lá estava a casa com suas janelas descerradas. A rua dormia seu sono mais silencioso. Só se ouvia o barulho do farfalhar das folhas nas copas das árvores. Provocadas pela ação do vento frio da madrugada, as folhas dançavam uma valsa quase réquiem. Aproximei. O canto era fúnebre. Olhei o relógio. Os ponteiros marcavam uma hora e trinta e cinco minutos da manhã do dia 23 de setembro. Um corvo me espreitava do telhado. Sentia alguém me tocando, sussurrando em meus ouvidos, como no conto do francês. A fantasia é mesmo muito real. A lua clareava pouco a superfície da terra. Aproximei. Passos silenciosos. O corpo tremia, minha boca tremia, meus lábios tremiam, minha mão suava. Últimos passos. Lá estava ele, o homem, no auge de sua velhice, quase calvo, sentado, fumando um cigarro e escrevendo alguma coisa. O homem e suas peças teatrais, literatura elisabetana. Sem mais tempo e pensamento perdido, resolvi atravessar a rua e me esconder atrás de um poste. Atiraria dali mesmo. Não haveria problema com relação ao aumento da distância, eu era mesmo um bom atirador. Coloquei a bala no revólver. Tudo pronto. Esperei o velho terminar de fumar o seu cigarro. Sem pensar mais nada, apertei o gatilho, num golpe de pura sanidade. O projétil singrou o ar, cortando-o velozmente, penetrou a casa, fez acender uma chama gigantesca que desencadeou uma série de explosões no interior da mansão, até culminar num estouro de proporções quase nucleares. A terra tremeu por longos minutos e uma cortina de fumaça negra cobriu toda a cidade”.

O relógio havia parado. Pouco se sabe do que aconteceu depois. Não se sabe do paradeiro do velho da casa nem de Osman. O que se sabe é que Osman era, por vezes, e também, o seu próprio teatro.

Cortina abaixada.

2 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"Tiny tear by =Terribly"
Deviantart

Artes e escritas disse...

Terrível. Os idosos ensinam até com o olhar com o qual se dirigem a nós. Eu amo essa turminha de oitenta anos. Um abraço, Yayá.