terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Em memória de nós


Por Germano Xavier


"Terá sido frio seu súbito abraço?"
(Caio Fernando Abreu, em Pequenas Epifanias)


Um primeiro aviso: não quero estar vivo após escrever o ponto final deste texto. Principalmente não quero me sentir vivo. Ultimamente a vida me tem surgido um tanto carregada, tatuagem de pedra encravada nas costas. É certo que há dias em que a desgraça se instala e fica como na maioria dos finais de semana que vivi em Iraquara. Finais de semana não foram feitos para pessoas como eu, definitivamente.

Hoje é um sábado, amanhã será um domingo. Festanças, comemorações, alívios, gente andando pelas ruas com seus cachorros, papagaios, gatos, cavalos, gnus e rinocerontes de estimação - por que não rinocerontes? Mulheres e homens bebendo, papeando, tagarelando, resenhando suas mais inclassificáveis trivialidades. Outros indo aos mil cantos e recantos da Chapada Diamantina. Crianças nos parques gastando suas infâncias. Velhinhos no dominó e no gamão esperando Godot¹ chegar e eu, um ser estranho, sentindo tudo aqui na clausura do meu quarto razoável.

Estou pensando em minha imortalidade, enquanto os outros não. Os outros nem ligam, não se esforçam para morrer brandamente, como sempre faço. Estou pensando na minha mortalidade, enquanto os outros não. Os outros, iraquarenses como eu, apenas vão, e chamam isso de "ir apenas" de liberdade - estarão certos? Estou pensando em coisas que são desprezíveis aos outros - pelo menos agora, na parte pulsante desta coisa a que intitularam "Vida". Estou pensando - e penando também - em assuntos como a morte, como a vida, como a minha mitologia, como a mitologia do mundo, como a desgraça que é ser assim, sentir dor por tudo, sentir dor por nada.

Não, não é que tenho gosto pela maneira como vejo o mundo, as pessoas e as coisas. Não é isso. Não sei até quando sou feliz por assim agir nem triste, sinceramente não sei. Porém, é quando dias assim como esses me abraçam o corpo sem piedade alguma que sinto ainda não ter sido capaz de obter a permissão para entrar de vez no paraíso. E não sei se é deveras este o destino permanente a que aspiro para o depois daqui. Apenas estou pensando em minha possibilidade de morrer, em minha expressiva potencialidade de deixar de existir, de ir, virar pó, de desaparecer para todo o sempre. Só isso que estou a fazer agora.

Ao passo que não consigo ignorar a morte que caminha comigo - posto que é ela a própria alma da sombra que me projeta maior ou menor dependendo do ângulo de incidência da luz -, assino minha qualidade de ser essencialmente mortal, como todos meus conterrâneos de Iraquara. Borges² me diz que "ser imortal é coisa sem importância", e aceito. Minha imortalidade estaria em não me preocupar com ela, e com nada parecido - o que é, de fato, quase impossível. A afirmação por algo, de ser alguma coisa, é a própria constatação de que não se é ou não se pertence. Ninguém é deus ou será apenas se auto-afirmando como um.

E depois disso, novamente penso nas pessoas da minha cidade com seus rinocerontes de estimação, nas mulheres tagarelando pieguices, nos velhinhos jogando a tarde sobre um tabuleiro quadriculado, nas crianças brincando sem economias brincadeiras quase esquecidas pela “ultra-modernidade”. E penso em mim, mais uma vez. E mais uma vez penso no que será de mim após o ponto que finalizará o texto que agora redijo. Estarei morto mesmo, como que pronto para um funeral ligeiro e sem pompas? Continuarei vivo e mudarei alguns conceitos acerca das minhas imaterialidades tão presentes e indefiníveis? O que será de mim após meu pensamento? O que será da gente, povo de Iraquara? Mas, Borges, eu também não pretendo ser tão débil a ponto de morrer por qualquer coisa. Por favor, não me entenda mal. Eis o meu ponto final.


Notas.
1 – Referência ao livro Esperando Godot, do dramaturgo Samuel Beckett.
2 – Jorge Luis Borges, escritor argentino.

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