domingo, 28 de junho de 2015

Entre Mares e Marés: Conversas Epistolares (Parte V)

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Viana, meu amigo, 

Aqui estou eu de volta, mandando as melhores horas de sábado para ti!

O calor de Lisboa é hoje sufocante, embora uma leve brisa se faça sentir de vez em quando. Sob um sol de 33º logo pela manhã já hoje andei muitos quilómetros, por lazer e por obrigação. A humidade é pouca, a gente não transpira, e entrar numa loja de rua pode parecer um oásis. Na azáfama das compras semanais cruzei-me hoje com um senhor idoso, algo libidinoso, conhecido de há muitos anos aqui neste satélite de Lisboa. Eu estava entre as três senhoras encostadas ao balcão de um café, sorvendo uma água geladinha, quando ele exclamou, com os olhos brilhando de volúpia: se eu fosse mais novo, não saberia qual das três escolher. E depois, com um já mais pesaroso e nostálgico, rematou: Quando eu era novo era sempre “a aviar!”. (lembrei-me de um magnífico personagem de um filme brasileiro, que dizia: o problema não é ser velho, o problema é ter sido novo). Olhámos as três com desconforto para o senhor mas depois não pudemos evitar uma gargalhada. A sexualidade na terceira idade já é olhada com desconfiança, mas a sua expressão verbal desta forma tão crua e rude consegue parecer assustadora. Homens e mulheres são realmente bichos diferentes, pois uma mulher de “certa idade” jamais se vangloriaria de ter tido incontáveis parceiros, conquistas, ou o que se lhe queira chamar, durante a juventude, sem parecer promíscua ou leviana. Pelo menos por estes lados, neste recanto à beira-mar plantado! Imagino que aí não seja muito diferente. 

Agora que o calor amainou, eu estou aqui a reler com vagar a tua carta, e de cada vez que a leio aí encontro histórias novas. O que escreveste não mudou, só o meu olhar te altera o texto. Entendo bem essa tua paixão pela Olivetti Lettera, tanto que entendo que até a chamo já também pelo nome. Ela não foi para ti uma simples máquina de escrever, mas uma companheira da qual conheces cada milímetro de pele, cada tecla e cada sílaba, e a quem continuas a dedicar um amor constante e protetor. Eu acho muito curiosa essa fixação que as pessoas têm por certos objetos, já vi muita gente cuidar do carro ou da moto melhor do que da mulher ou marido, já vi um homem adulto gritar em fúria porque descobriu um risco no carro da espessura de um cabelo de bebé e não mais longo do que um grão de arroz. Outros ainda têm esse amor zeloso por computadores – conheço quem não tenha sequer um copo de água ou café a menos de 50cm de um, por medo do líquido se derramar. Eu nunca tive uma proximidade tão grande com objetos, embora perceba. Talvez apenas por alguns livros, por lápis-de-cor e papel de cartas, quando miúda. Ainda hoje gosto de pôr o livro que estou a ler debaixo da almofada e encontrá-lo ao acordar. Concordo plenamente contigo sobre o encanto de certas coisas antigas, tecnologia analógica que na altura não chamávamos assim porque era a única que tínhamos. Mas também acho que isso se deve ao distanciamento no tempo, faz-nos ver tudo de uma maneira romanceada e idealizar certos hábitos, objetos e lugares que se calhar eram banais, mas o tempo tem esse efeito sobre a nossa memória; e, de certa forma, ainda bem, seria muito aborrecido se as recordações viessem carregadas com uma nota de neutralidade. 

Também te digo que para mim a música é essa libertação que descreves. Ela está presente em todos os momentos da vida, contextos alegres, trágicos, formais ou informais. Na vida religiosa ou na vida pagã. Eu canto no banho, canto na minha cabeça, quando espero pela consulta do dentista (às vezes durante, também!). Eu trauteava músicas, muita bossa nova e também Chopin e Beethoven , enquanto esperava, há 23 anos atrás, pela hora do parto. Acho que isso fez a hora chegar mais depressa, infelizmente depois adormeceram-me e tive de parar de cantar! Eu cantei muito para a minha filha durante a infância até que ela me começou a corrigir a desafinação e aí passei a cantar mais sozinha…mas é sim, sem dúvida, uma libertação, que gera vida e dá cor aos dias. Por vezes escrevo ouvindo música e deixo-me empolgar a pontos de me levantar para dançar. Aí mudo de registo, mas sempre acompanhada pela música. 

Olha, sobre a Elba e as festas populares em Caruaru, fiquei preocupada mas não surpreendida quando me relatas a violência ocasionalmente se infiltra nesses ambientes. Aglomerações de gente propiciam roubos e facilitam o trabalho aos carteiristas. Por aqui tive a experiência recente da noite de Santo António: há um lado bonito e muito típico que é o desfile dos marchantes e toda a atmosfera envolvente com cheiro a sardinha assada, entremeada, bifanas e chouriço assado. Mas é impossível controlar as inevitáveis bebedeiras e as tensões e querelas que se geram já na madrugada, quando as pessoas circulam pelas ruas, muitas já bastante “tocadas”, com garrafas na mão e comportamentos agressivos. Eu não sei o que dizem as estatísticas sobre isso, mas há uma diferença entre os dados dos relatórios oficiais e aquilo que é sentido no dia-a-dia das comunidades. Em todo o caso ainda há dias lanchei com uma amiga italiana, e no meio da conversa apareceu-nos uma moça estrangeira pedindo para guardarmos a sua carteira. Nós acedemos, claro, mas a minha amiga disse que no seu país jamais faria isso. Nunca confiaria num estranho para guardar as suas coisas. E o contrário também pode ser ponderado, um estranho que pede para guardarmos a sua mala pode levantar suspeitas nestes tempos paranoicos em que não conseguimos confiar em ninguém com espontaneidade.

E sobre passos respondo-te no mesmo tom: “há passos guardados” e os teus nos meus serão com certeza desses de que falas com tanta beleza. 

Agradeço também por teres partilhado comigo o episódio dessa gentil senhora do supermercado: a idade dá-nos essa liberdade e esse desprendimento das coisas materiais e dos convencionalismos. Com tantas coisas que se perdem, estou certa de que se ganham também algumas, difícil é perceber como podemos tirar partido dessa condição. Mas algumas pessoas já o intuíram, e essa senhora parece ser uma delas. Eu tenho alguns episódios engraçados com velhinhas, saio sempre a perder, um pouco como o gato Tom na história do Tom & Jerry! Quando me pedem para passar e ficam com o meu lugar, por exemplo, na caixa multibanco! Acredita que é verdade, parece sina! E eu juro que dificilmente consigo reclamar diante de tanta matreirice aprendida com a idade. Só fico com inveja e procurando aprender com essas sábias senhoras. Se não viste o filme Duplex, vê-o, vais perceber do que estou a falar. Há coisas que só se aprendem com o tempo, e ser velho é uma delas.

Para terminar deixa-me partilhar contigo um detalhe que te vai deixar curioso. Amanhã eu vou a um encontro de literaturas africanas lusófonas; como eu gostaria que pudesses lá estar! Vão estar escritores de vários países falando sobre o assunto numa tenda do jardim da Fundação Gulbenkian, com a assistência sentada na relva. Se as minhas costas aguentarem acho que vai ser uma coisa bonita. Depois te conto mais pormenores…

Um beijo, já saudoso, cheirando a sábado, com o domingo a despontar no horizonte e nos mil projetos que tenho para amanhã.

Até breve, Vianinha (ops, «vianinha», a título de curiosidade, é um tipo de pão muito apreciado por estas bandas).

Clara
Lisboa, 20 de junho de 2015


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Minha Clara amiga,

Aqui está frio, acredite. Faz frio no agreste pernambucano. Frio de fazer o corpo tremer mesmo, sem exagero. É inverno. Muita chuva nos últimos dias, fina, mas constante. E ainda em clima de São João, dos festejos, dos pipocos barulhentos e coloridos no céu, da música tradicional, da algazarra mundana, a vida que segue. Penúltimo dia de festa aqui, hoje, neste dia em escrevo a você. Muitos nomes famosos, entre cantores e bandas nacionais, vieram tocar aqui no Pátio de Eventos de Caruaru. Nomes que estão na moda, que frequentam as telas da televisão, mas que nem sempre possuem relação íntima com o tipo de comemoração que se é para fazer nestes dias aqui no nordeste brasileiro. Os jovens adoram. Os mais velhos viram o pescoço, abandonam o sorriso e vão para suas casas. O certo é que o São João de Caruaru foi mercantilizado de tal forma que só o que parece imperar mesmo é a vontade das empresas patrocinadoras. A tradição, aquela raíz bruta que se via em outros anos, está se perdendo aos poucos. Culpa de quem? Não sei. Vejo poucas pessoas acendendo suas fogueiras na frente de suas casas, as crianças não soltam mais fogos pela rua, as ruas estão escuras, não vejo a animação de antes. É apenas o meu olhar, eu sei, mas é bastante visível a mudança. 

Sobre o que me contas, penso ser deveras interessante o fato. Ainda não posso me considerar um velho, no auge de meus 30 anos, mas tenho certeza que alguma coisa muda na gente com o passar do tempo, física ou mentalmente. Eu entendo o senhorzinho, entendo você, as colocações. Há muito preconceito envolvido. Parece até que não podemos expressar vida e amor quando temos mais idade. Quem inventou isso? Eu simplesmente não aceito essa ideia. Acho a idade na mulher mais uma forma de beleza que a acomete. Vocês são incríveis. Para o homem, nem sei, mas não somos tão encantantes como vocês, donas de toda a beleza humana. Mas, Clara, o que é mesmo “a aviar”?

Ainda sobre essa coisa nostálgica de se falar do amor por objetos antigos, Clara... digo a você que meu pai sempre gostou de carros. Muito cuidadoso, sempre possuiu um bom gosto para escolher seus possantes. Lembro-me de carros emblemáticos que meu pai teve, a maioria da Chevrolet, marca predileta dele, como a citar uma Caravan Diplomata 1987 e um Opala SS bicolor 1978. Na época, eram verdadeiras máquinas! Era muito amor. Mas você sabe, com os anos, fica mais díficil de manter o que é antigo. Peças ficam mais difíceis de encontrar, especialistas somem das oficinas, enfim. Sem falar que os carros antigos, por terem motores maiores, são beberrões comparados aos “carrinhos de plástico” de hoje em dia. Creio que herdei um pouco desta fascinação nutrida por ele. A garagem lá de casa era um local de encontros e conversas. Quase tudo acontecia por lá durante o dia. Sou apaixonado por motos. Amo mesmo. Tive algumas, andei em muitas outras, motos clássicas como a “Viúva Negra” da Yamaha, motos com os incríveis motores V2, enfim... penso ter sempre uma por perto. Já escapei de quedas, caí duas vezes, venci distâncias incríveis em cima delas. Eu gosto da sensação. Motocicletas são perigosas, ariscas. É preciso respeitá-las ao máximo. De resto, é diversão na certa e vento no rosto.

Então, seu amor pela música consegue embalar você até na hora de escrever! Bonito isso. Confesso que já tentei, Clara, escrever ouvindo canções que admiro. Poucas vezes fui feliz. Perco a concentração parcialmente e a coisa toda não flui como deveria. Não consigo, só se for com muita pressão. Na hora de escrever, preciso de um ambiente silencioso. Eu me dou muito bem com o silêncio. Sou amigo do silêncio. Você já deve saber, não gosto muito de. Você me fez lembrar de um colega meu de 3º Ano do Ensino Médio chamado Paulo Thiago, um craque da física, só tirava dez. Eu, coitado, suava para tirar a média nesta disciplina. Certo dia, marcamos de estudar juntos para uma prova. Quando cheguei ao lar dele, adivinha, Bob Marley às alturas!, e ele lá fazendo cálculos mirabolantes, compenetrado. Já eu, ai, ai!

Eu queria me espantar com a situação relatada por você, Clara, nos termos da violência. Infelizmente, não consigo. É tão comum na atualidade a vista de tais situações que já não nos abocanha a estupefação diante de. Aqui, em Pernambuco, mata-se muito. Falo de homicídios mesmo. É uma questão histórica, desde já há muito revisitada pelos livros. O cangaço é apenas uma das demonstrações. Você já ouvir falar em Virgulino Ferreira, o Lampião? E em Maria Bonita? O povo daqui tem fama de “brabo”. Conhece o filme Abril Despedaçado? Se não, tente vê-lo. A película revela uma entre tantas tradições de morte que por aqui se vivenciava. O nordeste brasileiro tem muitas histórias neste âmbito. Lendas, contos, narrativas. Matar e morrer aqui sempre foi um modo de sobrevivência. Há um certo exagero no que lhe digo, mas há verdade também. Em quase todo lugar é assim, não é mesmo? A história está aí para nos contar. Cada tempo com seus modos.

Prometo que vou tentar ver Duplex. Gosto muito de filmes. De todos os tipos e qualidades! (risos) Eu não sou certo do juízo, eu sei. Vejo cada coisa, que meu deus! A curiosidade que é demais da conta! E me conte mais sobre o encontro de literaturas, Clara. Fiquei realmente curioso. Meus pais estiveram aqui comigo por alguns dias. Quase não saímos de casa. Muita chuva, como falei. Deu para matar um pouco da saudade. Meu irmão não pode vir. Saudade dele também. Foram ontem. Estou aqui só. Faz frio. O coração meio perdido. Meio triste, sabe, com algumas coisas. Muitos passos sem sentido. Eu muito mecânico. Poucos eventos me animando a alma. Vontade de fazer logo a vontade do meu coração. Tentar a verdade necessária da vida. Você me entende, Clara?

Nem sei como pude escrever tanto ainda. Hoje não estou no meu melhor dia. Fica bem, minha amiga. Um abraço em Portugal.

Caruaru-PE, 28 de junho de 2015.

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Clara e Viana são dois amigos de longa data que se redescobrem e desenham o mundo à sua volta pelas palavras que encontram, que constroem e que usam para pintá-lo. (De longa data em face da finitude da vida, recentes diante da imensidão da eternidade). Mas, que importa isso? Eles propõem-se descobrir dois universos complementares, sem artifícios nem maquilhagem, para além das máscaras habituais, as que protegem o ser humano da solidão e das agressões.

Clara e Viana são dois heterónimos, duas personagens que ganham vida através do tempo, do ritmo da palavra e do sabor dos respectivos sotaques.

Luísa Fresta e Germano Xavier dão vida a este projecto.
* Imagens de Cristina Seixas.

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