quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O recheio dos dias


Por Germano Xavier



A revistaria


O homem entrou na revistaria suando pelos orifícios da pele. A mulher no caixa o olhou sem nenhuma palavra nas pálpebras. Ficou olhando para baixo e fingindo estar preocupada com a gaveta que não abria mais com certa facilidade de nova. Ele levantou a cabeça para as prateleiras mais altas e foi olhando coisas sobre literatura, cinema, música, sem querer notar a fileira de magazines com muitas mulheres nuas. O suficiente permaneceu para que seu suor secasse na própria roupa, como se nela o líquido pudesse coagular. Separou três revistas e um jogo de palavras cruzadas nível difícil. Colocou no balcão onde a mulher passava boa parte do dia sentada a espera dos clientes. Depois o homem foi na seção dos livros de bolso. Pegou um Camões. Olhando para o homem, a mulher notou seu suor voltando a transpor a barreira da pele. Não falou nada. Com o braço direito, o homem enfiou a mão no bolso e pagou pela compra. Já se virando, pediu um maço de cigarros: “Não, aquele da ponta... Isso. Obrigado.” Virou-se e saiu com a sacola. “Você não sabe quem sou eu, menina!”, exclamou consigo mesmo em voz muda e interna. Os olhos da mulher seguiram-no até perdê-lo de vista, quando assim se fez dobrar a esquina que dava para a rua principal. Meio boba, viu uma cliente entrar na loja, mesmo assim não deixou de se perguntar se haveria relação do suor na testa do homem com o livro que ele levou cujo título versava algo sobre luzes, pareceu.



O especialista


Um homem dono de uma marcenaria estava contratando um marceneiro para a sua marcenaria. O marceneiro estava procurando emprego pela cidade e soube da vaga para marceneiro na já citada marcenaria. O marceneiro foi ver do que se tratava. O dono da marcenaria, que também era marceneiro, foi logo abrindo uma entrevista com um “então, caba, me fale de tu”. O marceneiro que estava procurando emprego começou a falar dele mesmo, mesmo tendo pouca coisa a dizer. O dono marceneiro estava meio que aprovando o discurso. Mas aí veio a pergunta crucial, e os dois terminaram num diálogo espantoso.

- Quié que tu sabe fazê? – perguntou o dono da marcenaria.

- Eu sei fazê porta e portão – respondeu o aspirante a marceneiro, puxando um pouco da letra erre quando no dizer das palavras.

- Quê mais?

- Só isso mermo, doutor.

- Só?

- Só.

- Oxe, home, e cadeira? Sabe fazê cadeira? – relutou o dono da marcenaria, meio que abrindo os braços em desagrado ou espanto.

- Não, só faço porta e portão.

- Janela, umbral, escada, biombo, armário... nada?

- Só porta e portão, doutor.

- Moço, moço, e tu é especialista, é? – disse, meio que finalizando o papo contratual.

- Sou nada disso não, doutor. É que eu só gosto de fazer porta e portão mesmo.



O convívio


Dois homens estão sentados no restaurante e esperam pelo prato do dia. De repente entra uma mulher de saia e chapéu, aos farrapos e muito suja, segurando uma garrafinha de cachaça junto ao peito, e senta-se perto dos dois. Os homens entreolham-se por um breve momento, um olha para a tela digital do seu relógio, o outro procura as chaves do automóvel cor verde-mamona estacionado na frente do estabelecimento, mas de onde estou a cena condensa uma notória e deslumbrante humanidade. 



Imagem: Deviantart.

8 comentários:

Germano Viana Xavier disse...

Crédito da imagem:

"saturday's news by *damien-c2"
Deviantart

eder ribeiro disse...

Sempre deleito sobre as tuas crônicas. Todas as tuas personagens são tão bem descritas que o nonsense não tem lugar aqui, então é muito fácil imaginá-las. Qto ao filme, ele marcou uma época em minha vida, onde a busca para resposta do porquê da vida era uma constante, e ver aqueles replicantes tentando dominar o mundo era uma catarse. Fez uma bela aquisição. Abçs.

Anônimo disse...

Belas descrições, por assim dizer, do cotidiano, da vida. Por identificação com o recinto, sublinho a primeira.
Grande abraço,

SAM disse...

Germano, "O recheio dos dias" foi um belo prato para o leitor. Obrigada.

Beijos, com carinho.

Anônimo disse...

Vejo das coisas escritas a tentativa do distanciamento daquilo que é tão notável quanto a quentura do suor descendo a testa misturada com a fome urgente de querer fugir das próprias fraquezas.

Gosto das tuas evidências e me farto.
Sempre...

Joop Zand disse...

Perfect picture Germano.....well done my friend.

greetings, Joop

Letícia Palmeira disse...

Muito bom mesmo. Eu acho até que mudanças aconteceram. Não sei se as narrativas são novas, mas, de onde estou, parece que algo mundou em seu modo de escrever.

lisa disse...

Literatura do cotidiano urbano, cenas próximas da realidade.

Parabéns