Por Germano Xavier
A menina está escorada no barco que eu vou pegar em poucos minutos. Parece triste. Parece sozinha. Certamente não era dali. Camamu era uma cidade com duas camadas. Feito a capital baiana. Havia a parte superior e a inferior. Ricos, clericais e coronéis em cima e a ralé na parte de baixo, dando o duro dos dias. Tudo muito estratégico. Dava para ver a longa esteira de mangue e o rio Acaraí deitado no horizonte azulado. Como em algumas cidades por onde já passei, Camamu só me serviria de trampolim aquele dia para eu conhecer outra paragem: a Península de Maraú.
Descalcei-me antes de entrar no barco. Gosto de sentir a madeira úmida dessas pequenas embarcações com nomes femininos. Uma espécie diferente de frio, quase quente. Estou no Danúbia II. O dono é o Seu Jeremias, um nativo de pele cor-de-sol. De esguelha, vi a menina debruçar-se na proteção de ferro do barquinho. Seu Jeremias aperta o botão. Em um instante o motor soltou um tufo de fumaça preta pelo escape, rente à água marinha espumosa. Ela está quase deitada no parapeito, a menina. Fico olhando-a de longe.
O velho e barulhento motor rema. Eu também remo. E me faço presente, por um instante. Encosto o olhar no rosto dela. Ela me olha com um riso terreno. Demasiado terreno. Não me oferece nenhuma palavra. Acendo um sol em mim e pergunto:
- Você também vai para Barra Grande?
A menina não sorri. Vou junto, como se eu tivesse ficado triste também por algum motivo. Engraçado como me permito acompanhar a dor dos outros. Aí sofro junto. Pode ser um desses males atrelados ao meu signo. A embarcação bamboleia. Tudo é uma dança. De repente, todos os que embarcaram veem a camisa de Seu Jeremias se enroscar na polia central do propulsor. O motor apaga, num rompante. As pessoas cochicham entre si. Outras se exasperam, gritam, pedem por socorro. Seu Jeremias, coitado, agora sem camisa, tenta acalmar todo mundo enquanto inicia a retirada dos panos embaralhados.
Apesar da tarde solar, a menina rema. Para mais perto de mim. Também remarei. Em sua direção. Não é assim a vida? Remarei. Remei. Talvez eu lhe ensinasse meu sentimento. Talvez eu lhe falasse sobre o silêncio. Ou simplesmente conversasse sobre alguma coisa desimportante. Mansa era a água. O movimento, dormente. Estivéssemos em terra e nada seria igual, tão incerto e ao mesmo tempo tão maravilhoso. Por isso respeito tanto o mar, as águas de uma forma geral. A água nos põe em equilíbrio. Estávamos à deriva. Eu era o oceano.
- Você parece cansada. Não quer dizer algo?
O motor logo irá zunir novamente. Novas ondinhas serão geradas pelas pás. O mar está muito calmo. O Seu Jeremias levanta as mãos. Diz que conseguiu, enfim. Continua sem camisa, agora muito suado. Meia hora depois o motor acorda novamente. Brum-brum-brum. Já vejo o pôr-do-sol. Barra Grande se aproxima. O lugar é lindo. Para trás, a cidade passageira, com suas duas elevações. Igrejas pomposas apontam para o céu de Camamu. A menina sorri. Parece até menos triste. Parece menos só. Curvo meu corpo e olho para baixo. Tenho pés de madeira. Integrei-me. Sou o meu próprio barco. Estou remando. Remando. E ela vai comigo.
* Imagem: https://www.deviantart.com/art/Spirit-of-the-Sea-743618862
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