Por Germano Viana Xavier
"(...)
O coqueiro e a cana lhe ensinam,
sem pedra-mó, mas faca a faca,
como voar o Agreste e o Sertão:
mão cortante e desembainhada."
(João Cabral de Melo Neto, em A Escola das Facas)
Quando atravessei a Chapada Diamantina e me deparei com o Pernambuco do meu pai pela primeira vez, ali ainda em minha infância mais tênue e profunda, senti que aquele chão esbranquiçado e desmentido pelas sortes, de poeira mais fácil que a do solo baiano, impregnaria em mim com muita facilidade e quase nenhuma relutância. E não deu outra. Hoje, já bem crescido em idade e apesar da certidão chapadeira, sinto-me pernambucano em vários detalhes de alma, a começar pelo prazer que desenvolvi em ler a poesia deste “estado-trampolim”, como diria o incomensurável João Cabral de Melo Neto, autor do monumental A ESCOLA DAS FACAS.
Lendo este livro, vi de perto a superação da palavra-imagem em transformação consoante ao que é real. Uma espécie de transposição das águas ficcionais em águas de beber, de viver e, principalmente, em águas de sobreviver. Sobre-ser. Digo por experiência própria que já adentrei os pernambucos por todos ou por quase todos os lados, vez ou outra vindo de Paulo Afonso-BA, outrora descendo pela Paraíba de João Pessoa ou por Campina Grande, e até enfrentando-o de frente pelas rodovias de Alagoas, e aquele mesmo verde-nervoso e balouçante do poeta João Cabral de Melo Neto tão bem traduzido em seus poemas respinga até hoje pelas telas e pelas paisagens do mundo pernambucano-nordestino a todo instante.
Bem verdade, faz-se necessário salientar, um verde já carcomido pela ação do tempo, principalmente em localidades por onde o “progresso” oriundo do funcionamento das grandes usinas de cana-de-açúcar deixou de herança apenas as ruínas de suas construções e o maquinário em ferrugem, como feridas abertas sob o sol. Porém, assim mesmo digo de relance: sou um homem transformado pelas transformações que meus olhos viram, um homem lapidado pela intersecção das caudalosas águas negras diamantinas e a secura latente de um agreste pernambucano aparentemente sempre à beira de um colapso. De um lado, a exuberância divinal das pedras úmidas, do outro o seixo inamovível das artérias agrestinas por onde o Rio Una passou. Una morto, nascituro e natimorto, que quase só existiu em mim sem nem conseguir existir direito.
Em A ESCOLA DAS FACAS, de lírica extremamente cabralina, aceitei-me mais pelo que realmente sou ou pelo que me tornei ao longo da vida e de minhas caminhadas, quase sempre solitárias. Distanciei-me da surrealidade com a qual me afogo em alguns dias de nuvem. E vi o quanto isso foi bom, o quanto isso é bom. Livros assim são como pontes, fontes inquestionáveis de aprendizado e de des-razão. E até mesmo quando Cabral passeia seus versos verdes nada-verdes pela área metropolitana do Recife ou até pela própria capital, locais ainda muito incógnitos para mim, conferi em pessoa uma espécie de confiança nos passos já dados.
Bahia e Pernambuco me inventaram, e eu inventei estes lugares. Por inventá-los, criei estradas e abri picadas no verde dos coqueirais e das canas e também na cor seca de suas paragens. Fui menino ali e acolá, ancorei banguês nos ombros dos dois orvalhos e bebi da melhor garapa dos engenhos múltiplos. Tive e tenho este privilégio. Nasci com dois sangues e duas almas e vivi em dois estados supremos deste gigante país. Vivi. E vivo. Dois povos, os sertões, os rios, os canaviais, os agrestes, as pedras, as cachoeiras, os diamantes, a sombra dos diamantes... E o que há de belo em todo este movimento alargado por minhas pernas é o fato de que beber dessas duas águas me fizeram suportar com serenidade as impostoras belezas que porventura outros mundos emprestaram-me aos olhos.
João Cabral de Melo Neto completaria 100 anos se vivo fosse no dia 09 de janeiro de 2020. Hoje, com o início desta coluna sobre livros, literaturas e afins, um Sergipe aclarado pelo sol da belíssima Aracaju me abre portas para minhas visagens em formato-palavra. Estou implicado em meu dizer crítico-analítico, pois sei que várias são as tradições literárias e encarnados são os badalares do Tempo. Quero que meus leitores se apaixonem pela poesia, que os curiosos se intrometam e que algumas fomes humanas sejam saciadas. Num país que parece regressar às mais grotescas escuridões, trazendo à tona censuras e maldades as mais variadas para com seu já castigado povo, eu aposto na esperança. Aqui, neste espaço, recolheremos a própria Vida estampada nos livros, para que dela aprendamos a reproduzir somente as mais magníficas formas de se rebelar e de se tolerar.
TEXTO ESCRITO PARA O PORTAL SÓSERGIPE.COM.BR.
Referência
NETO, João Cabral de Melo. A escola das facas. Rio de Janeiro: J.Olympio, 1982.
Imagem: http://www.bvl.org.br/aniversario-de-joao-cabral-de-melo-neto/