Estrevista para o Blog O EQUADOR DAS COISAS
LIVRO: CERCO, de Stenio Erson.
Germano Xavier – O que a literatura significa para você?
Stenio Erson – A literatura significa uma possibilidade que o ser humano encontrou para poetizar a vida real. É uma manifestação artística que utiliza-se das diversas possibilidades que a comunicação, através da linguagem e criatividade, permite. Nesse sentido, a literatura é um instrumento de liberdade e expressividade, capaz de despertar sentimentos diversos e transformações infinitas.
GX – Em sua jornada como leitor e professor ligado à difusão da literatura, qual a experiência de leitura que mais te marcou? E por quê?
SE – Sempre busquei em minha trajetória enquanto professor, criar estratégias de apreciação e disseminação da arte literária. Nesse processo, o trabalho que mais me marcou foi a ação que desenvolvi com a obra “Felicidade não tem cor” de Júlio Emílio Braz. O enredo traz a questão do preconceito e aborda a história de Fael, narrada por uma boneca de pano chamada Maria Mariô. Ambos se sentem muito incomodados por serem negros. Por um lado, nenhuma das meninas escolhia a boneca negra para brincar. Por outro, Fael era um menino muito excluído que sofria muito preconceito por conta dos apelidos que seus colegas colocavam nele. Por isso, decidiu ir atrás de Michael Jakson para descobrir como ele conseguiu ficar branco.
No início do ano letivo, observei que na sala de aula do 7° ano, havia muitas ocorrências de preconceito entre eles, muitos alunos sofrendo bullying por meio de apelidos racistas. Isso me incomodou bastante, pois os alunos não percebiam o quanto a sala era composta por uma diversidade étnica.
Durante a leitura da obra ocorreu muitos debates relevantes, sempre relacionando com o que acontecia na sala de aula. No dia da culminância do projeto os alunos fizeram uma análise completa da obra para os presentes apontando a depreciação que os apelidos causam, a relevância de respeitar a diversidade existente na sociedade. Nos estandes um painel com as fotos individuais de cada alunos, de modo a se observar a diversidade e valorizar cada característica, além de fotos de negros que ficaram famosos por habilidades artísticas ou esportivas.
Enfim, após essa ação observei o quanto as pessoas que convivem na escola e que possuem características negras, passaram a valorizar sua identidade étnica, principalmente em relação ao uso de penteados que potencializam as características do povo negro. Passou a ocorrer uma aceitação natural do outro, não só em sala de aula, mas também na relação com alunos de outras turmas.
Essa ação mostrou a potência que a literatura tem de promover a reflexão e a transformação.
GX – Como surgiu a ideia para o seu livro de estreia CERCO e como está sendo a receptividade da obra?
SE – A ideia de elaboração da obra Cerco surgiu a partir dessa real necessidade que a sociedade atual tem de conquistar um território de atuação da nossa liberdade. Vivemos numa sociedade que a cada dia reduz a liberdade que temos e nos conduz para o nosso cerco, seja ele social, emocional, afetivo, psicológico, moral, violência física, dentre outros.
Após as eleições de 2018, com a aceitação e a implantação das ideias bolsonarianas no cenário social brasileiro, o autoritarismo e as decisões autocráticas, passaram a serem utilizadas em muitos setores que antes tinha uma relação democrática habitual. Tal ocorrência contribuiu para o crescimento de uma tentativa de negar ou tentar descaracterizar as lutas de segmentos sociais que em algum momento da história tiveram que se mobilizar e articular estratégias para desarticular o cerco anunciado.
Essa instabilidade social, demonstrou que a luta contra o nosso cerco deve ser diária e que precisamos enfrentar esses elementos que ameaçam nossa liberdade. Sinalizou que a conquista de território só ocorre com movimento, seja ele feminista, étnico, de gênero, enfim.
Então, com base nesse conceito, procurei adequar alguns contos antigos para essa temática e a produzir contos novos para compor a coletânea da obra, de modo que se pudesse apresentar os personagens e sua relação com os elementos de opressão e desarticulação da nossa liberdade.
GX – Fale-nos um pouco sobre o seu processo de criação, Stenio.
SE – Iniciei meu processo de escrita no teatro. No ano de 2003 fui um dos fundadores do Grupo Cultural Lamparinas do Sertão, em atividade até hoje. Nessa instituição cultural, além de atuar e dirigir espetáculos, escrevi inúmeros enredos teatrais. Esses momentos de formação artística me qualificou para ler e analisar obras literárias significativas, bem como adaptar e produzir enredos teatrais, adequando-os a uma identidade sertaneja e uma linguagem teatral peculiar.
Esse contato com a arte teatral, foi extremamente significativo para o meu processo de criação literária, pois passei a prestar muita atenção nos movimentos que ocorrem em minha volta e também nas narrativas orais que tenho acesso através de memórias vivas que me levam a realizar pesquisas.
Muitos desses elementos: uma frase, uma palavra, uma expressão, uma imagem, uma história; sinalizam caminhos para a construção de enredos literários; ora totalmente fictícios; ora com pitadas de um caráter memorial; ora baseados em fatos reais, mas com traços fortes de ficção.
Geralmente, primeiro registro a ideia, depois organizo a ideia para uma proposta de construção de uma malha literária, em seguida desenvolvo a ideia, deixo-a por um tempo sem voltar ao que foi produzido, por fim, releio e vejo se a proposta será original e relevante para, só após prosseguir com a proposta literária ou engavetá-la.
GX – Seu livro CERCO possui um caráter memorial muito forte, quase predominante, e que se estende a toda estética social que envolve o território da Chapada Diamantina e seu povo. Foi um traço proposital? Como se deu isso em CERCO?
SE – A Chapada Diamantina sempre foi narrada por olhares externos de mídias diversas que valorizam, predominantemente, as belezas naturais. Ficava sempre questionando o porquê de tantas narrativas ricas ficarem ocultadas ou silenciadas na memórias desse povo, sempre desconsiderado nesse cenário. Nesse processo, acredito que de forma predominante, prevaleceu na obra Cerco, o perfil de narrativas narradas por personagens originários da Chapada que apresentam com o olhar peculiar, o nosso o cenário, a nossa identidade cultural, as nossas histórias. Ou seja, o olhar nosso sobre o que é nosso, uma visão peculiar sobre a identidade cultural da Chapada que vai além do que as belas paisagens. A ideia foi dá voz aos oprimidos, de modo que eles pudessem apresentar seu olhar sobre essa luta diária de enfrentar tudo que reduz nosso território e viabiliza o nosso cerco, diante desse cenário que não é somente feito de paisagens, mas também de pessoas.
GX – Como você vê, hoje, o cenário literário e artístico da Chapada Diamantina?
SE – Acredito que o cenário de produções literárias na Chapada Diamantina ainda se apresenta de forma um tanto tímida, porém em ascensão. Alguns eventos literários têm acontecido de forma muito consistente, abrindo possibilidades para que escritores da região possam disseminar suas produções literárias. No entanto, acredito que ainda falta uma conscientização das secretarias de educação de cidades da Chapada Diamantina para incentivar o consumo dessas obras no âmbito educacional, de modo que a literatura regional possa se estabelecer e contribuir para a formação de leitores e novos escritores.
GX – Achei o conto “Nunca mais vi Irene”, presente em CERCO, de uma plasticidade arrebatadora. É um conto bem curto, um tanto diferente dos outros do livro. Fale-nos um pouco acerca dele.
SE – A ideia da construção da malha literária do conto “Nunca mais vi Irene” sempre havia sido de uma narrativa curta. Essa proposta, viabilizou o uso de frases reduzidas, dinâmicas, capazes de produzir movimentos que conduzem o leitor a um desfecho surpreendente. A ideia surgiu a partir de um suicídio que ocorreu no cenário da Cachoeira da Fumaça. Esse fato, teve repercussão e muitas mídias começaram a tentar denegrir, desconstruir, condenar o cenário como perigoso e um ambiente para não se visitar. Diante disso, procurei dá um novo rumo a esse fato a partir do fazer literário, um ar de misticismo misturado com sonho, de modo a valorizar tanto a cena narrada quanto o cenário. Não se sabe a verdadeira intenção de Irene ao levar seu amor para o deslumbrante cenário da Cachoeira da Fumaça, se vivenciar um momento romântico num lugar encantador ou registrar seu desaparecimento misterioso justamente no clímax do enredo, deixando o leitor diante da labuta de tentar compreender se o desfecho é algo real, místico ou apenas um sonho.
GX – Stenio, vem novidade por aí? Se sim, compartilhe com os leitores d’O Equador das Coisas”? Deixe suas considerações finais aqui, se possível.
SE – Sim. A obra que talvez esteja mais pronta para lançamento é uma peça teatral que narra o retorno nos dias atuais, por conta de uma crise hídrica, dos primeiros portugueses que navegaram o Velho Chico no ano de 1501. Nesse processo, os portugueses irão se deparar não só com elementos da modernidade, mas também com elementos que caracterizam as comunidades ribeirinhas e a identidade sertaneja do rio São Francisco. O espetáculo foi apresentado como forma de experimento, pela primeira vez, na UNEB Campus XXIII em Seabra, no dia 17 de abril de 2015 no evento “Fifó Cênico: Iluminando a Arte Sertaneja” por atores do Grupo Cultural Lamparinas do Sertão, com direção minha. A proposta é que esse espetáculo seja retomado nesse ano de 2020.
Além dessa proposta, tenho trabalhado bastante em um romance, novos contos e poesias, além de livros infantis.
* Imagem: Arquivo Stenio Erson