domingo, 31 de maio de 2020

Um café




Por Germano Xavier



Um café coado antes do Verbo. A roda gigante do mundo que não para. Relógios badalam. Um café expresso para o pecado original. E tudo fora penetrado. O homem não sabe mais para onde ir. Um café com especiarias, por gentileza, para nossos desertos e futuros. Um lágrima para nossos prantos de crocodilo, por vezes inevitáveis. Um café breve para alimentar o temporal. Sim, o mundo lá fora é uma loucura. Outra dosa do americano para as ordens de desordem. Em tudo se pode confiar?

Um caribenho para revoluções. Um mocha para desanuviar, meramente. “Saindo um machiatto para o sonhador na mesa 43!”, vocifera o garçom. Um cortado para equilibrar o doce e o salgado da vida. Um capucinno, amigo. Ou melhor, dois. Não temos tempo para desperdiçar. Sente aqui. Precisamos conversar. O dia está lindo. Como vai a sua família? Há muito tempo não passo por lá. Como o tempo lhe fez bem! Um panna. Merecemos. Dois, sim. Dois. Estamos congregando. O café nos aproxima de Deus. Você acredita em Deus?

Deus é café com leite, um clássico. Prefiro um latte. Sou de exageros, de discórdias. A rebeldia é o que nos trouxe até aqui, não acha? Essa conversa não termina aqui, amigo. Estou na Praça do Vigário, 656. Apareça por lá, quando possível. Será um prazer. Tomaremos um irlandês, preparado com um whisky 18 anos. Se preferir, um amaretto. Sua esposa ainda aprecia um caramelo? Meu filho do meio adora um hawaiano, com leite de côco da região. Você não envelhece nunca, Doutor. Dê um abraço em seu pai. Diga a ele que jamais me esquecerei daquele dia.

Amigos são para essas coisas. Deixa eu lhe dizer... você sabia que meu querido avô plantava conilon? Sim, mas depois percebeu que negócio mesmo era mexer com o arábica. Está cedo. Boa noite. Bom dia, vizinha. Não quer entrar para tomar uma xícara de café? Não, ela viajou. Fique à vontade. Com ou seu açúcar? Na cama. O homem não sabe mais para onde ir. E tudo fora penetrado. Até a madrugada que embala os sonhos mais reais. Um café para depois do fim do mundo, please.


sexta-feira, 1 de maio de 2020

Um tripé literário de dor e esperança (ou Para que servem as histórias?)




Por Germano Xavier


Você já pensou em quantas vezes estamos a contar histórias, dia após dia? Já parou para pensar que a todo instante estamos diante da necessidade de contar algo, de narrar algum acontecimento, de expor em forma de "contação" ou "resenha" um fato recente ou até mesmo um mais antigo? Mas, para que servem as histórias que insistimos tanto em contar ou, pasmem, que precisamos, por um ou outro motivo, esconder? Certamente não chegaremos a nenhuma definição plena, mas podemos mexer neste imenso baú interpretativo que nos rodeia desde que começamos a nos importar com os efeitos da comunicação em nossas vidas - ou seja, desde sempre. Sim, chegaremos a respostas razoáveis, mas não definitivas.

Os argumentos que podem ser utilizados para explicar (ou tentar responder) este questionamento nos remete à própria trajetória do Homem, de forma direta ou indireta. Nossos ancestrais possuíam o belo costume de se reunirem assim que a noite tombava através dos horizontes e, ao redor de fogueiras em brasa e de labaredas crepitantes, os mais velhos exerciam seus dotes e poderes de historiar (estoriar) aos mais jovens. Era desta forma que as lendas e os mitos iam sendo transmitidos gerações após gerações. E desta maneira a vida era perpetuada, as árvores eram tomadas de uma magia vital e as belezas naturais realçadas, os campos se alongavam em distâncias, os sóis se repartiam em vários tons e estações, e tudo o mais vencia a barreira imposta pelo ser-Tempo.

Com esta força simbólica impressionante e incomensurável, o que temos a dizer, a falar, a gritar, a externar, sempre teve papel fundamental em nossas vidas, em nossa evolução enquanto seres humanos detentores de uma tal capacidade racional perante nossas escolhas e decisões. Seduzidos, pois, pelo fascínio causado pelas palavras, sempre estivemos diante de seus caprichos. Porém, a palavra dita, escrita, falada, cantada, expressa ou o que quer que seja, também é hoje uma espécie de arma contra as diversas formas de injustiça, de destemperança, de intolerância, de desigualdade, de afrontamento às nossas liberdades, de aprisionamento, de opressão e de terror. As histórias também servem para nos salvar de nós mesmos. Acredite!

Bem como Sherazade, personagem da milenar narrativa oriental AS MIL E UMA NOITES, que se viu na necessidade de envolver o sultão até mais não pode com suas historietas fantásticas na justa finalidade de escapar da morte, milhares de mulheres hoje se sentem na obrigação de narrar suas histórias ao mundo para que também não se tornem as mais novas vítimas do machismo, da repressão e de uma sociedade orientada por um mecanismo-dejeto que abafa o som da mulher e que tende sempre a expandir em ecos os guturais sons do homem, mas principalmente para incentivar outras mulheres a fazerem o mesmo. E é justamente aqui que a literatura, e a palavra, entra em ação e pode ainda mais fazer perante círculos viciosos desta natureza.

Todos sabemos. Literatura é arte. Arte é também ação política. Literatura é enfrentamento e contestação. Literatura é denúncia e crítica, janela para o outro que também somos. A literatura está a todo instante se renovando, até mesmo em suas funções, em suas finalidades, em seu teor pragmático. Nesta toada, as histórias servem para expôr o que de mais impiedoso há nos convívios em sociedade, revelar as agruras das relações interpessoais antes camufladas, desvelar o que antes eram espectros impostores de um perfeição padronizada pelos costumes e pelas crenças. A literatura contemporânea tem se concentrado nisso e talvez aqui esteja o seu grande mérito ou papel a ser desempenhado. Principalmente a literatura mais consciente, que não se prende ao sistema mercadológico que há por detrás de livros de venda em massa e editoras descompromissadas com a tais causas.

Ao escrever, em 2018, uma resenha sobre o livro O PESO DO PÁSSARO MORTO, da escritora Aline Bei, fiz questão de interrogar aos meus leitores: "Quanto custa para uma pessoa ter de conviver com as suas negações de vida, os seus infortúnios, as suas farsas, as suas danças mirabolantes em prol do Nada, suas angústias e destemperanças, suas aflições e suas impossibilidades? É possível sair ileso de uma perda significante? E de duas? E de três? E de infinitas perdas? Até onde se pode ir com tamanho peso nas costas? E que tipo de lacuna se configura na alma de um ser humano quando ele não mais enxerga em si força suficiente para sonhar, ou simplesmente para continuar? Quanto custa para desentalar de dentro de nosso corpo (que vai morrendo) o caroço dos trágicos fins cotidianos que nos afetam sem pena? É possível estancar a dor que dói lá no fundo de nós?"

O premiado livro da Aline Bei dialoga profundamente com dois outros livros que andei lendo neste ano de 2020: REDEMOINHO EM DIA QUENTE, de Jarid Arraes, e A PRINCESA SALVA A SI MESMA NESTE LIVRO, da Amanda Lovelace. Os três juntos formam um tripé que versa sobre a dor quase insustentável de não caber em si mesma, por conta de tanta negação e de tamanha violação, bem como funcionam como caminhos a se trilhar para que a esperança em dias melhores estejam sempre disponíveis àquelas que se disponham a seguir seus sonhos de ser no mundo. Enfim, viva está a literatura, motor de tantas histórias que ainda precisam ser narradas, difundidas e debatidas. Todavia, voltando, para que servem mesmo as histórias? Talvez a leitura destes três últimos livros aqui supracitados lhe ajudem a chegar à resposta. Tomara.


* Imagem: google