quarta-feira, 1 de julho de 2020

Sobre a Alice e sobre os Dias em Daniela Delias




Por Germano Xavier


"(...) não vê que ela acorda meus mortos
quando entre um rio e outro
desova-me viva"

Do poema  A PEDRA, de Daniela Delias.



A gente sabe que o poeta é uma deformidade. A Claudia Roquette-Pinto já nos avisou sobre isto, certa vez. Fernando Pessoa nos consagrou o dom de fingir, escrevendo sob diversas personas. Vários outros poetas já nos provaram que esta afirmação é verdadeira ou por demais possível. Somos tantos, outros, múltiplos, diversos, quandos e quantos, por isso somos o que somos: poetas. O sólido que se desmancha no ar, na água, no fogo, ao vento... o sólido que, na poesia, é algo muito líquido. A linguagem, por vezes, toma até a "forma" de um gás e simplesmente invade os espaços vazios de quem lê um livro de poemas, com arte, puro. Mas esta dada pluralidade do poeta é, na verdade, um caminho que é reflexo de muito labor e de muita astúcia.

É de se suspeitar que o poeta só é multiforme se se tenta sê-lo. Daniela Delias, natural de Pelotas-RS, é um bom exemplo deste movimento de variação de formas poéticas, e de formatações humanas, imprescindível para o fazer literário em tempos também tão (des)personalizados. A cada livro novo lançado, mesmo muito sutilmente, reinventa-se a poeta na professora e na psicóloga Daniela Delias. Ela, mulher de olhares necessários, acaba se transformando na poesia que a continua enquanto artesã de dúvidas e sentidos insondáveis. Em seu último livro, Delias finge ser Alice, quando na verdade Alice finge não ser Delias. Um verdadeiro embate que, inteligentemente, sempre a renova e sempre a renovará.

Conheço o BONECA RUSSA EM CASA DE SILÊNCIOS e o NUNCA ESTIVEMOS EM ÍTACA, ambos publicados pela Editora Patuá. Delias se desmanchou para fazer a travessia do primeiro para o segundo livro, assim imagino. Quem leu estas duas obras, sabe. Ela era uma, tornou-se duas, sem deixar de ser quem se era. E agora, com o lançamento do seu ALICE E OS DIAS (Editora Concha, 2019), Delias já é três, tornada. Delias é outra, mas os seus caraterísticos versos curtos e livres foram mantidos - para o nosso deleite. Mas nem tudo pode ser analisado a partir de sua respectiva forma. Fingindo no dito, a poeta parece escolher ser o contraponto entre a solidez da palavra escrita e a cronicidade do que porventura flui, intermitentemente. Um fenômeno, outros movimentos. Aqui está o campo da memória, o paraíso do desconhecimento, a visão dos medos e o nome dos assombros: o não-existir, o existir e o instante.

ALICE E OS DIAS, de 72 páginas, está dividido em cinco partes: 1: OS OLHOS; 2: A PELE; 3: A LÍNGUA; 4: O PASSO; e 5: AS HORAS. Numa análise muito pessoal, e apesar deste caprichado ALICE E OS DIAS nos sugerir uma outra leitura de linguagem e também de autodescoberta, algumas linhas de voz que sempre estiveram presentes nos textos escritos por Delias permanecem vívidos e por demais explicitados nos poemas do livro. Alguém pode perguntar: E isso é ruim, pode ser ruim? Não, definitivamente não. Neste caso, não. Um dos traços de maior destaque da poesia de Daniela Delias é o trato suave que se dá às forças de desertificação da vida. Isso, definitivamente, é parte de sua verve.

Agora pegue o livro. Vamos juntos. Ali, onde nunca pode ser o que é para acontecer, rio de atravessar sem asas a ideia do Amor, tão fácil durante a noite, quando quase nada consegue ser escondido da memória. Ali é onde a rosa se avermelha nas reminiscências e explora seus segredos de fogo. OS OLHOS são os nossos próprios escombros. Os olhos nos espatifam. Peça o tempo que quiser, Alice. Tudo se demora, sempre. Mas nem sempre Alice sabe esperar. Por isso Alice aprendeu a chorar. E foi assim que descobriu que A PELE que importa é a do coração. Devota em aforas, protegeu os adentramentos. Tudo lhe chama à ferida das partidas: essas fomes. Para entrecortar o couro que pulsa sob a válvula dos Dias, A LÍNGUA faz de seu sentido a lâmina, a seta que se move por sobre os seixos da alma e do desejo, como pedra-viva.

Cantaremos, também, a queda.

Depois do desfiladeiro, de conhecermos o abismo que o Amor guarda, faz-se necessário O PASSO. Entre as cordas, Alice perde seus Dias. Perde para ganhar. Perde para reler possibilidades. Para se destrancar. Para sair de um novelo. A linha se une à agulha e com ela resolve viver de atravessar. Toda agulha é nômade. Faz casa onde. Faz casa quando. Faz casa e é percurso. AS HORAS são postas em caixinhas para se organizar o passo, para orientar a língua, para acobertar a pele, para endereçar os olhos. Agora saia dessa armadilha. Feche o livro. Fica o estranhamento nítido e pouco caro aos livros que nos propõem e que movem algo, seja um indício a mais de conhecimento a respeito de si mesmo ou da própria literatura. Fica o desfio. A agulha, presente entre os dedos, sem o devido fio para coser. Costuramos a impossibilidade dos silêncios e a beleza do porto criado, mesmo aquele irreal.

Por fim, estamos. Estamos, apenas. E não estamos.