segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Borges e a escrita do esquecimento



Por Germano Xavier

Jorge Luis Borges nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1899. Viveu perto de 87 anos e adquiriu a cegueira mais incorrigível como prêmio por tanto amor e devoção à literatura. Autor de diversas obras, Borges sempre esteve no mais alto patamar do cânone literário. Dono de uma palavra tecida sobre o sudário do misterioso, do secreto e mitológico, do metafísico e do fantástico, o homem que tinha verdadeira paixão por livros, principalmente enciclopédias, é possuidor de uma linguagem marcada por construções e narrativas labirínticas - leia-se "labirinto" como lugar de achar-se e perder-se. Para ele, é no espaço do texto onde tudo pode acontecer, inclusive o despertar para a vida, inclusive o entendimento perante o dilema da morte, genitora de outros nascimentos. 

O Fazedor, publicado primeiramente em 1960 é, segundo ele, seu livro mais pessoal, mais íntimo, mais próximo do homem Jorge Luis Borges. Quase sem linearidade, desprovido de uma unidade morfológica e temática, misto de poemas, ensaios e contos, O Fazedor revela um Borges preocupado com as nuances de sua vida "comum", como pode ser percebido já no texto de abertura do livro intitulado homonimamente. Neste texto, falando sobre sua cegueira, Borges finaliza com a construção: "Sabemos estas coisas, mas não as que sentiu ao afundar até a última sombra". 

Remoído e remoendo-se diante da tão extensa potência da memória, e agora sobrepujado pela presença da possibilidade do esquecer, do deslembrar o sentido das coisas e suas faces, suas sensações e iminências sígnicas, o escritor parece amargar um sentimento de derrota frente à evolução do seu corpo, do seu organismo que, velho e já gasto pelo uso, pressente o fim chegando. Ainda no texto, Borges questiona: "Por que lhe vinham essas lembranças e por que chegavam sem amargura, feito mera prefiguração do presente?", duvidando, talvez, ou simplesmente incrédulo ao suspeitar da existência dessa forma viva, autônoma, agente de si: a memória. 

Atulhado de emoções e recortes de lembranças, livrescas ou não, Borges altera a morosidade da mecânica das reminiscências e põe na superfície do tempo, à mostra de tudo e de todos, o rosto que há por debaixo do capacho humano, do tapete de nossa mente, livrando-nos de certas mortalidades e fragilidades infantis. "O que morrerá comigo quando eu morrer?", pergunta o argentino, falecido em Genebra no ano de 1986. Percebe-se a sapiência e o alumbramento diante da existência de algo mais que não somente a armadura do corpo, da matéria, e essa percepção vai perlongar as páginas do livro inteiro. 

Mais a frente, no texto Dreamtigers, diz assustado: "(Ainda me lembro dessas figuras: eu, que não consigo recordar sem engano a fronte ou o sorriso de uma mulher.)" É a memória que persiste em não morrer, mesmo dentro da escuridão da visão ofuscada, opaca, translúcida. O susto de ter um outro olho, um olho que não para de lembrar, de ver, de rememorar, de reviver. 

Após iniciado o confronto, Borges retalha-se em perguntas, a tomar como exemplo: "O que pratiquei com fervor na infância?" - quase uma tentativa de descobrir as razões que o fizeram possuir o "bem" ou o "mal" do guardar tudo, dentro de si. E continua: "Você se suicidou naquele dia?"; "O que ele sentiu?"; "O que buscam os espelhos?"... no centro do furação, no redemoinho da batalha que o autor trava consigo mesmo, surge a presença de Deus: "Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo, talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido seu número?", e finaliza o seu argumentum ornithologicum cosendo a frase: "ergo, Deus existe". 

A experiência de conhecer o algo a mais que apenas humano faz com que Borges receie, sem muito titubear, que a morte não passa de uma ilusão. Portanto, o esquecimento, ou seja, a morte do que um dia existiu, é simplesmente uma mentira que criamos, ora por nos acharmos fracos ora por não tendermos à resolução de nossos próprios problemas, quaisquer que sejam eles. Nada morre, porque tudo é imortal. A morte pode ser uma invenção da debilidade do homem, uma espécie de doença. E o sonho, "o sonho de um é parte da memória de todos", escreve no texto martín fiero, onde ainda cita: "o que aconteceu uma vez volta a acontecer, infinitamente". 

Navega pelas estradas do seu passado tentando averiguar os motivos para tanta liberdade entregue a sua memória, tanta incapacidade de manipular, domar o seu ato de esquecer ou o de lembrar. Depois de já ter lutado consideravelmente contra tais mistérios, Borges relata: "O esquecimento devora tudo". Como um rolo compressor, o "parecer e o não ser" adquire o que tanto ele temia: a imortalidade. E o que fazer diante de uma coisa que nos parasita, que mora dentro de nós e que não podemos cercá-la? Buscar o silêncio, seria essa a resposta? Calar-se? Deixar-se? O que operar em nós mesmos quando somos muitos e ao mesmo tempo não somos ninguém? Qual a ordem do jogo e a dos dominados? Nesta celeuma, "sempre se perde o essencial?", interroga Borges. Qual a voz que prevalece, qual o som que fica? O que vive, se "tudo já teve fim há muitos anos?" O que permanece, se "toda glória é somente uma das formas do olvido?" 

A leitura borgeana não adormece quando fechamos o livro. Toda uma esfera de edificações se apronta no momento destinado à reflexão. Mestre da ficção, Borges confessa que muito do que está contido em sua obra não foi vivido, mas lido. Abre-se, então, a porta que dá para o vestíbulo da irremediável memória, este demônio que temos dentro de nós, tantas vezes ponto de partida para sofrimentos, angústias e alegrias várias. 

No labirinto onde nos perdemos e nos encontramos dia ante dia, noite após noite, assombro vis assombro, resta-nos contentarmos com a ideia de que não estamos sozinhos dentro de nossa individualidade, que não estaremos mortos depois da morte, que não estamos vivos quando pensamos que estamos. Até porque, o que existe por detrás dos espelhos, pode não ser muito bem o que imaginamos que seja. Porque nada pode ser tão óbvio quando suspeitamos que a escuridão é o nosso maior vigia.


Trecho da obra:

Poema la lluvia (A chuva)

Bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
Cae o cayó. La lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.

Quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.

Esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto

patio que ya no existe. La mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.

***

Bruscamente a tarde se há desanuviado
Porque já cai uma chuva minuciosa
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
Que, sem dúvida, sucede no passado.

Quem a ouve cair há recobrado
O tempo em que a sorte venturosa
Lhe revelou uma flor de nome rosa
De tão peculiar avermelhado.

Esta chuva que escurece os vidros
Há de alegrar os subúrbios perdidos
As uvas pretas de uma parra em certo

Pátio que já não existe. A molhada
Tarde me traz a voz, a voz desejada,
De meu pai que volta e que não morreu.

sábado, 1 de agosto de 2020

Meu encontro com Sophia de Mello Breyner





Por Germano Xavier


Lisbon Art Stay, em algum dia de janeiro de 2020.

 

Quando pagamos o bilhete que dava direito ao ingresso no Oceanário de Lisboa, ali dentro da sala de recepção do Lisbon Art Stay, jamais imaginaria o que estava por acontecer em minha vida. A Rua dos Sapateiros parecia tranquila àquela hora da manhã. Lisboa é uma cidade tímida nas primeiras horas do dia, bem como acontece com grande parte das cidades turísticas pelo mundo. Depois de um rápido preparo, lá fui eu. Na verdade, estávamos em número de três. Porém, a experiência que narro aqui certamente só a mim cabe explanar. Tomamos autocarros e bondinhos, cruzamos viadutos, atravessamos pontes, e logo o bairro do Chiado começou a ser visto através dos reflexos das janelas.

O objetivo do dia era desbravar a região do Parque das Nações, realizar algumas visitas naquela freguesia e, em especial, conhecer o grande expositor de vida marinha da capital portuguesa. Não gosto de zoológicos ou de locais semelhantes, confesso, todavia resolvi apostar algumas horas naquilo de estar entre animais exóticos confinados. O Parque das Nações é um imenso conglomerado de espaços físicos voltados a exposições ao ar livre, congressos e movimentos de arte ou negócios diversificados. Particularmente, naquele dia, fazia bastante frio, mas tranquilamente suportável.

Fomo-nos achegando ao local. O rio Tejo mostrava-se bravio, com suas águas fazendo ondas nervosas e balouçantes, auxiliadas pelos ventos fortes que por ali emanavam logo ao meio da manhã. Depois de voltearmos por quase a totalidade dos espaços, tomamos a direção ao Aquário Central do Oceanário, maior da Europa e segundo maior do mundo.

Subimos as rampas. Placas me chamavam a atenção. Foi como estar diante de uma espécie de anunciação. Todas elas davam conta de nos preparar para uma exposição de poemas, na área central do Oceanário, precisamente de uma exposição de poemas da escritora Sophia de Mello Breyner Andersen. Enfim, entramos. E, para minha sorte, os corredores não se mostravam abarrotados de pessoas. Um sinal de que seria possível ver tudo com calma.

Os grandes vidros, a enorme quantidade de água marinha represada, os peixes e as outras criaturas marinhas realmente despertavam muito a minha curiosidade, ao passo que não entendia como nós, seres humanos, chegamos ao ponto de sacrificar a liberdade de todos aqueles seres vivos daquela maneira. Isto nunca vai entrar em minha cabeça como algo saudável à sociedade. Porém, por ora, esqueçamos isto. Vamos ao motivo de eu estar escrevendo este texto.

No alto do primeiro grande vidro, Sophia já nos alertava para toda a sua potencialidade poética: “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto ao mar”. Depois de ler aquilo, não dava mais para me arrepender por ter ido ao Oceanário, tido por muitos como o melhor e mais completo em todo o planeta. Enquanto os outros dois companheiros de viagem se deliciavam com os mistérios do fundo do mar, eu me prostrava silenciosamente aos versos de Sophia. Espalhados por todo o Aquário Central, estavam “submersos” nas paredes poemas inteiros feito de sal e saudade, de medo e de desejo, escritos por Sophia.

Quase uma manhã inteira a ziguezaguear, a perambular, e a cada passo dado em direção ao fim do percurso, a certeza de que eu me aproximava e me apaixonava mais pelo ideário poético dos mares de Sophia de Mello Breyner Andersen. Foi um verdadeiro encontro. Inusitado, diriam alguns, como aqueles que sempre costumam nos marcar para todo o sempre. Um verdadeiro encontro, indubitavelmente. Guardei imagens em minha mente, em meu celular, e voltei ao Brasil com o intuito de estudá-la, de lê-la e também de homenageá-la, de alguma forma.

Deste ímpeto, nasceu uma série de poemas bilíngues (português-francês) em homenagem à Sophia, com a grandiosa parceria da escritora luso-angolana Luísa Fresta, que belissimamente traduziu a série intitulada de AS COISAS MINHAS DE SOPHIA e que é constituída de 10 poemas.

Uma palhinha:

 

AS COISAS MINHAS DE SOPHIA (Parte III)

 

ao longe,

lá onde o sol se confunde com o fim,

uma água lisa e pura abraça

toda a impossível matéria.

 

nesta ondular existência sem sal,

os sonhos dos alguns

se abraçam, dissipados ao vento,

 

e para conter

o avanço das misérias,

livres no horizonte e perdidas, fecho os olhos

e sinto toda uma escola de sensações.

 

autossuficiência | dor | escape

 

o alto mar engole o Grande Peixe

que é você, e por serem tão claros os tormentos,

outros azuis vão, seguidamente,

se modulando.

 

 

MES CHOSES À MOI ET SOPHIA (Partie III – em francês)

 

au loin,

là où le soleil se confond avec la fin,

des eaux lisses et pures enlacent

toute l’impossible matière.

 

dans cette flottante existence sans sel,

les rêves de certaines personnes

se serrent, dissipés dans le vent,

 

et pour contenir

l’avancée des misères,

égarées et libres à l’horizon, je ferme les yeux

et je ressens tout un éventail de sensations.

 

l’autosuffisance | la douleur | la fuite, l’échappatoire

 

la haute mer avale le Grand Poisson

qui n’est autre que toi, et puisque les chagrins sont si clairs

d’autres bleus, modulaires

se suivent.

 

Uma combinação incrível entre o azul vindo das lâminas das vidrarias do Aquário Central e o negro quase total dos corredores. Era o que eu via lá dentro. Em pequenas entradas que nos aproximavam dos vidros, bancos me serviam para sentar por bons minutos em contemplação passiva. Não era cansaço. Era estupefação. Na frente das banquetas, impressos na parede, ficavam instalados os poemas da Sophia, como já dito. Para os leitores. E para mim. Os peixes em círculos, vagando ao meu lado, transformaram-se em meros detalhes diante de meus olhos realmente interessados em Sophia.

Se um dia alguém me perguntar como e quando conheci a poesia de Sophia de Mello Breyner Andersen, responderei sem titubear: nas paredes escurecidas do Aquário Central do Oceanário lisboeta, numa exposição de poemas que, depois, ficaria sabendo que tinha se iniciado em comemoração ao Dia do Mar, em 2004. Sophia, falecida em 2 de julho de 2004, sempre teve o mar como um de seus maiores personagens e motivos para encantamentos íntimos, tanto na esfera vital quanto em sua obra literária. Eu, a partir daquele dia, havia encontrado o Grande Peixe. E isto é demais até hoje.