A
série de textos que ora vos é apresentada, da autoria de Germano Xavier, poeta,
contista, professor e jornalista, reflete as andanças atribuladas do homem pós-moderno,
as suas incongruências e fragilidades. Na visão do poeta, este homem
encurralado por um sistema do qual ele é também uma ínfima parte,
simultaneamente vítima e cúmplice involuntário, tenta, a duras penas,
desfazer-se das teias poderosas que o envolvem, como tentáculos. O materialismo
excessivo e sufocante é parte da condenação deste personagem sem saída, moldado
por angústias e dúvidas, como a grande maioria dos seres humanos; dir-se-ia que
é um homem excluído, transparente, desenquadrado e inclassificável, que não se
pode etiquetar.
Identifiquei-me
plenamente com a poíesis de Germano
Xavier, empolgante e reveladora, peculiar e depurada desde o primeiro verso,
como se observa na atmosfera densa que rodeia este homem tão completamente
cercado; por isso propus-me traduzi-lo para francês, atrevimento que
rapidamente se transformou numa doce rotina até se converter numa necessidade
pessoal ou inapelável tentação.
O
maior desafio com que me deparei, para proporcionar uma viagem, entre a língua
fonte e a língua alvo, e um destino condignos, foi garantir que a mensagem
chegava intacta. Nem sempre terá sido o caso em virtude das singularidades de
cada idioma e cultura mas o objetivo foi sempre, ao longo do processo, acercar-me
desse ideal. Outro escolho – estimulante – foi o facto de eu não ser
brasileira, embora falante nativa de português. Germano, como autor brasileiro
com ligações a dois Estados, inclui também alguns regionalismos ou marcas
culturais muito específicas e singulares. Todos esses aspetos se tornaram numa inesgotável
e fascinante fonte de aprendizagem para mim, uma vez que a cultura do Brasil me
é muito próxima, por via dos afetos, da literatura, da gastronomia, do cinema e
da música, mas não me é inata nem intrínseca; e a nossa aproximação tem sido
filtrada no decurso da vida, como é natural, por uma sucessão de eventos
inclusive extra literários. Tampouco sou francófona não obstante ter começado a
construir, na infância, uma relação de intimidade e respeito com a língua
francesa, desenvolvida posteriormente pela via académica, profissional e
social. Assim sendo, questiono-me frequentemente sobre o seguinte: será
imperativo que o tradutor seja nativo da língua fonte ou da língua alvo? A primeira
hipótese garantiria uma compreensão total do contexto e da mensagem, mas a
segunda criaria a expetativa de um texto sem mácula, à chegada. Fazer as
escolhas tradutórias mais sensatas e adequadas pressupõe também alguma
sensibilidade, experiência, conhecimento dos ambientes e intuição por forma a
assegurar que a beleza e a força de um texto não saem prejudicadas nessa
metamorfose, que se pretende inócua, discreta, invisível ou pelo menos
translúcida. No nosso caso, o conhecimento prévio do autor e de parte da sua
obra facilitou a familiarização com o texto. Devemos ter sempre presente que
uma tradução é uma leitura, uma
interpretação, uma proposta, sujeita a ser polida, que não exclui outras
soluções igualmente válidas.
Entendo
que O Homem Encurralado, “desautor”
da sua vida, é submetido à narração diagnóstica do poeta através de versos
livres como de prosa poética, assumidamente “engagée”: começa por mostrar-se um
homem esvaído de si, caracterizado pela falta de opções, pelas condicionantes
externas, pela voz que lhe é roubada, pelos sonhos que não pode ter. Germano
deu-lhe forma corpórea e uma condição estável dentro de um conjunto de poemas
porventura biográficos. Mais do que um homem ele é sobretudo sociedade,
despojos, mundo, presente, alterações climáticas, uma espécie de cicatriz na
Terra, com um futuro incerto e muito nebuloso. Em francês procurei manter-lhe o
significado, o ritmo, a música abrupta e áspera. Mas sobretudo a emoção, a voz
surda, as pausas, os silêncios, a inação. Traduzir o dito e o não dito, os
momentos de introspeção, a mágoa cansada da permanência orbital em torno de uma
pobreza inconsciente e nua próxima da miséria humana. Ao traduzir procuramos
outra voz para expressar o mesmo ambiente. Talvez as palavras não estejam todas
lá, talvez algumas sobrem. Outras irão mancando pelo poema até chegarem ao
término, que não é um desfecho, mas um recomeço intermitente.
É
justificado e legendário o “medo” ou “desconfiança” de alguns autores em
relação à tradução das suas obras. Todavia, Germano concedeu-me liberdade total
para trabalhar os seus textos e prepará-los para esta viagem inaugural, deixando
o homem encurralado à minha guarda com
tal naturalidade que fez com que o sentido do dever se acentuasse, como sua
primeira tradutora. Oxalá não tenha excedido os limites implícitos dessa liberdade.
Se for o caso os leitores perdoarão as eventuais zonas textuais controversas,
assim o espero, as derivações da tradução, que é tanto uma adaptação como uma
recriação pontual. Ora literal, ora livre, tão dissemelhante ou inconsistente aqui
e ali como este homem que agora se diz acculé,
l’homme acculé, o tal cuja única esperança reside na força fraterna, indivisa,
da empatia do leitor e da poesia.
Luísa
Fresta
Queluz,
28/12/2020
Imagem: Marcel Gama
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