Por Germano Xavier
Qual a diferença entre uma história escrita por alguém que realmente viveu a história que foi narrada em seu livro e uma história escrita por alguém que não viveu na pele a respectiva história que é narrada por suas mãos? Há quem diga que não há diferença alguma, que existem meios de o escritor desviar-se de possíveis entraves referentes a tal imbróglio, já outros argumentarão de mil formas diversas apoiando a ideia de que fazer parte literalmente do que é contado no enredo dá a obra um caráter mais denso e aumenta a sua credibilidade enquanto fonte de informação. Roberto Piva, poeta marginal paulista, tem uma frase que pode resumir o pensamento de muitos. Dizia ele que só acreditava “em poeta experimental que tenha vida experimental”. Apesar de não lhe cair bem a alcunha de poeta, o jornalista Zuenir Ventura, autor do clássico
1968 – O ano que não terminou, viu-se impregnado de nódoas oriundas de sua própria realidade quando decidiu escrever o supracitado livro.
1968 – O ano que não terminou é um livro-reportagem, gênero que consagrou os fundadores do New Journalism norte-americano em meados do século XX e que depois se espalharia pelo mundo revolucionando a maneira de se escrever para periódicos e afins. E por pertencer a este padrão, conseguiu dar conta de revelar, com uma sensação de veracidade muito amplificada, boa parte dos acontecimentos que marcariam de uma vez por todas o cenário político-social do Brasil pós-golpe militar até anos após o decreto do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), que promoveu a censura no país, entre tantos outros desmandos de irracionalidade social-administrativa.
O autor, estudante e militante naquela época, narra com detalhes desde a festa de réveillon na casa de Heloísa Buarque de Hollanda, composta de muitos intelectuais brasileiros, até o fim do ano de 1968, marco de um sentimento de rebelião e desregramento não só nacional, mas mundial, haja vista o nunca esquecido Maio de 68 francês, esboçando também algumas consequências após algumas décadas vividas sob o regime ditatorial. Esta festa seria, como diz o título do capítulo, uma espécie de rito de passagem para o formigamento das expressões humanas e também para o surgimento de uma efervescente juventude disposta a lutar até as últimas consequências a favor de ideias que acreditavam ser relevantes para o progresso da nação.
Parece, ao ler o texto, que o mundo para o povo brasileiro havia sido descoberto justamente naquele ano. O consumo de drogas explodiria em diversos setores da sociedade. As pessoas mudariam quase que totalmente o jeito de se vestir, de concatenar com ideologias reformuladas acerca das relações interpessoais, o mundo, i.e., o povo brasileiro arregimentaria uma condição nunca vista no tocante ao tema liberdade. A música viria a se tornar uma arma contra os mandos e desmandos das autoridades e das máquinas abstratas do poder, com o começo do movimento Tropicalista.
Tudo era ou podia ser ferramenta para construção, instrução e formação humana. O Cinema Novo vingava, fortalecido pelo sucesso dos filmes de Glauber Rocha & Cia, os partidos políticos de esquerda e as organizações clandestinas pintavam os muros com cores de discussões intermináveis, as organizações estudantis eclodiam em congressos e mais congressos, lideranças políticas e artísticas entravam em ebulição e o debate massivo acerca do Brasil militar não arrefecia fácil. Tempos de paixão, pressa, afobamentos e verdades que, senão outra coisa, revelavam ao povo que, unido, ele tinha vez e voz.
Entre as passagens mais marcantes do livro, estão a organização sem organização do movimento que viria a ser conhecido como Passeata dos Cem Mil e a preparação para a votação do AI-5. Lições que Zuenir Ventura nos presenteia com maestria típica de quem fez da própria vida um caderno rabiscado de pautas jornalísticas.
Tomando o assunto para os nossos tempos, o livro ganha ainda mais relevância, apesar de há muito já não ser uma novidade nos meios livrescos, pois constantemente nos deparamos com situações de embate político-ideológico entre diferentes camadas das sociedades, a citar o exemplo do último choque entre estudantes da Universidade de São Paulo (USP) e o Estado, na figura da polícia.
Livros como este ajudam a entendermos melhor o porquê da mecânica humano-social do agora, pois serve de manual para sabermos o que houve de bom e de ruim num passado próximo, ou seja, o que pode ser imitado ou melhorado e aquilo que jamais pode voltar a acontecer.
1968 – O ano que não terminou é uma aula de jornalismo para eternos estudantes do jornalismo que, como eu, interessam-se em aprimorar todas as suas técnicas e, também, um registro de civilidade e respeito ao próximo (neste caso, o próximo somos nós, geração esta e outras do porvir), por nos abrir os olhos da história de um país que incrivelmente e quase que inexplicavelmente existiu um dia.