Por Germano Xavier
Uma
senhora perambula pela avenida onde costumo fazer caminhadas com uma sacola
plástica contendo ração para gatos e cães. Sempre que saio do meu apartamento,
geralmente antes das seis da manhã, e passo pelo local, ali na parte final do
muro de uma faculdade de Direito instalada no bairro há anos, faço demorar mais
meus passos e fico a observar o ritual daquela mulher.
Com
uma calma estrondosa, ela deita a sacola no chão e abre-a lentamente. Como num
rompante, gatos e gatas se aproximam caminhando pelos altos muros, cachorros e
cadelas em situação de rua aparecem dobrando esquinas e vencendo logradouros,
afoitos e brincantes. Logo, todos estão reunidos ao lado dela. Esperam,
pacientemente, ela terminar de ajeitar potes e completar a água que restou do
dia anterior.
Automaticamente,
como se soubessem já os gatilhos do “estão liberados, podem comer e beber!”,
aninham-se como irmãos de fome e de sede, numa fotografia de rara beleza e
harmonia. São muitos. São para mais de dez. Os animais vez ou outra param,
entre uma mordida e outra no alimento, entre um gole e outro na água, para
olhar aquela altiva senhora que agora inicia o fechamento da sacola e os
ajustes finais de seu rito. Eles parecem agradecer com os olhos.
Ela
permanece ali, ao lado dos caninos e dos felinos, por um bom momento. Um
instante muito singular. Ajusta alguma coisa que saiu do lugar, encaminha
olhares para os mais magrinhos, deixa um carinho naqueles que mais se
aproximam. É uma cena realmente muito bonita. De uma grandeza e de uma
naturalidade incomuns. Aquela senhora ama estar com eles e, certamente, eles
sentem o mesmo.
Não
vi isso acontecer uma ou duas vezes no mesmo local. É uma imagem constante, como
já falei, que abre as minhas manhãs com uma esperança desmedida na humanidade
(ou no que restou dela). Depois de toda a movimentação, ela sai de mansinho
quando ainda poucos terminam de comer. Gatos e gatas a olham de cima dos muros,
cães emparelham-se a acompanhá-la por um bom trajeto, até ela se embrenhar por
um pequeno trecho de chão batido e mato ao redor.
Não
sei o que a move nem os reais motivos para tal esforço diário. Sua presença,
para mim, naquele setor da avenida por onde passo com certa frequência, é como
a de uma entidade mística, alguma deidade superior, que precisa ser resguardada
dos perigos e das infâmias, para assim poder realizar o milagre imperativo de
seus dias: o da distribuição gratuita de compaixão e de amor.
É
ela a senhora das manhãs. Quando ela some do horizonte de meus olhos, aperto o
passo outra vez, com um conforto insólito instalado em meu coração e em minha
alma. Os gatos e as gatas somem de vista, os cães partem para seus dias nas
ruas da cidade. Os carros também passam velozes. A manhã passa. Até a vida
passa. Mas passa bem melhor agora.
* Imagem: https://www.nationalgeographic.pt/meio-ambiente/as-mentes-dos-caes-e-dos-gatos-afinal-o-que-sabem-eles_2229