domingo, 23 de julho de 2023

A senhora das manhãs


 

Por Germano Xavier


Uma senhora perambula pela avenida onde costumo fazer caminhadas com uma sacola plástica contendo ração para gatos e cães. Sempre que saio do meu apartamento, geralmente antes das seis da manhã, e passo pelo local, ali na parte final do muro de uma faculdade de Direito instalada no bairro há anos, faço demorar mais meus passos e fico a observar o ritual daquela mulher.

Com uma calma estrondosa, ela deita a sacola no chão e abre-a lentamente. Como num rompante, gatos e gatas se aproximam caminhando pelos altos muros, cachorros e cadelas em situação de rua aparecem dobrando esquinas e vencendo logradouros, afoitos e brincantes. Logo, todos estão reunidos ao lado dela. Esperam, pacientemente, ela terminar de ajeitar potes e completar a água que restou do dia anterior.

Automaticamente, como se soubessem já os gatilhos do “estão liberados, podem comer e beber!”, aninham-se como irmãos de fome e de sede, numa fotografia de rara beleza e harmonia. São muitos. São para mais de dez. Os animais vez ou outra param, entre uma mordida e outra no alimento, entre um gole e outro na água, para olhar aquela altiva senhora que agora inicia o fechamento da sacola e os ajustes finais de seu rito. Eles parecem agradecer com os olhos.

Ela permanece ali, ao lado dos caninos e dos felinos, por um bom momento. Um instante muito singular. Ajusta alguma coisa que saiu do lugar, encaminha olhares para os mais magrinhos, deixa um carinho naqueles que mais se aproximam. É uma cena realmente muito bonita. De uma grandeza e de uma naturalidade incomuns. Aquela senhora ama estar com eles e, certamente, eles sentem o mesmo.

Não vi isso acontecer uma ou duas vezes no mesmo local. É uma imagem constante, como já falei, que abre as minhas manhãs com uma esperança desmedida na humanidade (ou no que restou dela). Depois de toda a movimentação, ela sai de mansinho quando ainda poucos terminam de comer. Gatos e gatas a olham de cima dos muros, cães emparelham-se a acompanhá-la por um bom trajeto, até ela se embrenhar por um pequeno trecho de chão batido e mato ao redor.

Não sei o que a move nem os reais motivos para tal esforço diário. Sua presença, para mim, naquele setor da avenida por onde passo com certa frequência, é como a de uma entidade mística, alguma deidade superior, que precisa ser resguardada dos perigos e das infâmias, para assim poder realizar o milagre imperativo de seus dias: o da distribuição gratuita de compaixão e de amor.

É ela a senhora das manhãs. Quando ela some do horizonte de meus olhos, aperto o passo outra vez, com um conforto insólito instalado em meu coração e em minha alma. Os gatos e as gatas somem de vista, os cães partem para seus dias nas ruas da cidade. Os carros também passam velozes. A manhã passa. Até a vida passa. Mas passa bem melhor agora.


* Imagem: https://www.nationalgeographic.pt/meio-ambiente/as-mentes-dos-caes-e-dos-gatos-afinal-o-que-sabem-eles_2229

Um comentário:

Prof. Esp. Jovana Lima disse...

Se olharmos em volta vamos encontrar inúmeras possibilidades de sermos úteis, mas infelizmente algumas pessoas olhará para essa senhora e irá ignorá-la ou até achar errado o que ela faz. Às vezes, nossa atitude mínima a esses animais de rua, é tudo o que é necessário para eles se sentirem acolhidos. Não tenhamos vergonha de mostrar nossa solidariedade aos bichinhos. A maioria das vezes, pessoas abandonam eles... e só um olhar de atenção ao passar por eles... ajuda, imagina então alimentá-los e dedicar-se um mínimo de tempo por dia a eles... e quanto ao ver essa senhora o que ela faz... com toda certeza, quando se é olhado com carinho e bondade, renova a nossa alma. (lindo relato)